Ministro da Saúde

Rec. nº 153/A/94
Proc.: R-1969/91
Data: 1994-10-04
Área: A3

ASSUNTO: SAÚDE

Sequência: Não Acatada

I. De acordo com a queixa apresentada pelos pais do menor …, e no seguimento da orientação dada ao processo, importa apurar se a actuação da médica hematologista, Dra …, responsável pelo tratamento clínico daquele, é, ou não, passível de um juízo de censura, susceptível de responsabilizar civilmente o Estado por acto de gestão pública.

DOS FACTOS:

1) O menor foi assistido no Serviço de Hematologia do Hospital dos Capuchos entre 25.5.90 (com internamento em 13.9.90) e 05.11.90, data em que veio a falecer, vítima de leucemia.

2) O Inquérito promovido pela Inspecção-Geral dos Serviços de Saúde concluiu pelo arquivamento dos autos, por considerar “Não existir qualquer conduta ou omissão susceptível de ser imputada à médica visada”.

Todavia, porque há elementos de natureza jurídica que podem apontar noutro sentido, passo a descrever sumariamente a evolução do assunto.

3) Em 25.05.90, o … foi atendido pela Drª … no Serviço de Hematologia do Hospital dos Capuchos, apresentando um quadro clínico que evidenciava análises de sangue com plaquetas baixas, peito e cara cheia de petéquias e baço dilatado.

4) Foram feitas ao paciente análises de sangue e um mielograma, tendo-lhe sido diagnosticada uma púrpura trombocitopénica imune (PTI), e receitado o medicamento Lipicortinol – 40 mg diários, ministrado durante os meses de Junho, Julho, Agosto e parte de Setembro.

5) Nos meses de Junho e Julho foram efectuadas novas análises de sangue.

6) Porque o quadro clínico apresentado pelo doente se vinha agravando, foi-lhe feito um novo mielograma no final de Agosto.

7) Nesta data é feito o diagnóstico definitivo de leucose linfoplástica T.

8) Internado em 13.09.90 naquela unidade hospitalar, o doente não respondeu positivamente ao tratamento instituído – cateter no pescoço e quimioterapia -, acabando por falecer no dia 05.11.90.

9) A queixa de imediato apresentada pelos pais ao Senhor Ministro da Saúde, originou a abertura do referido Inquérito da IGSS, cujo despacho de arquivamento se baseia no parecer do perito médico Dr. …, que, em suma, considera:

9.1) Ao ser inicialmente diagnosticada ao paciente uma PTI, não houve erro de diagnóstico.

9.2) O tratamento inicial com administração de prednisolono foi correcto, “habitual e lógico”.

9.3) O diagnóstico de leucemia não poderia ter sido feito antes de 31 de Agosto, pois só após esta data apareceram células blásticas na medula óssea.

9.4) “Antes não havia quaisquer parâmetros laboratoriais para que tal diagnóstico pudesse ter sido suspeitado”.

9.5) “A PTI pode ser o primeiro sinal de várias situações entre as quais o linfoma ou a leucemia”.

9.6) “Os sinais apresentados inicialmente seriam o início da leucemia”.

9.7) “A apresentação da leucemia somente como púrpura trombocitopénica meses antes, é uma situação relativamente frequente”.

9.8) “A actuação da Drª … foi a correcta nesta situação anómala, difícil e impossível de diagnosticar de início”.

9.9) Os exames clínicos e laboratoriais e o tratamento seguido foram os habituais.

10) Após ter sido alertado pelos pais do … por ter elaborado um parecer médico que omitiria determinados factos que evidenciariam o erro do diagnóstico inicial – sintomas apresentados, incorrecto tratamento, e insuficientes exames médicos -, o Dr. … elabora novo parecer, em que reafirma:

10.1) Mielograma em 4/09 em que se detectam pela primeira vez blastos no sangue, único elemento que leva ao diagnóstico de leucemia aguda”.

11) Em exposição dirigida a diversas entidades, os pais do menor, através de mandatário, insistiram na existência de erro do diagnóstico inicial, demonstrando um conjunto de procedimentos que deveriam ter sido seguidos, de modo a respeitar a “leges artis” instituída para situações desta natureza. Referem que:

11.1) Apresentando o … em 24.05.90 um quadro clínico caracterizado por trombocitopénia, esplenomegalia e petéquias abundantes na cabeça e no torax, era obrigatório:

11.2) Ter realizado um diagnóstico diferencial, relativamente a outras doenças e, nomeadamente, anemia aplástica atípica, leucemias agudas e metásteses tumorais.

11.3) A trombocitopénia é uma manifestação muito comum e frequente, como primeira manifestação das leucemias agudas.

11.4) Impunha-se de imediato a realização de um estudo morfológico e funcional da medula óssea, sendo mais correcto uma biópsia.

11.5) Contrariamente ao referido pelo perito, é corrente as leucemias agudas apresentarem de início trombocitopénia com ausência de blastos no sangue.

11.6) O mielograma feito em 24 de Maio de 1990 forneceu elementos que, com elevadíssimo grau de certeza, apontavam para a malignidade da doença (hiato leucémico, celuleridade aumentada, megacariócitos não formadores de plaquetas).

11.7) Era obrigatório ter feito nesta data testes citoquímicos marcadores de superfície celular, marcadores citogenéticos, quadros de crescimento e cultura de células, estudos de citometria de fluxo, tac ao baço.

12) Em face de elementos tão contraditórios – o relatório do perito nomeado pela IGSS, que concluía não poder ter sido outro o diagnóstico inicial tendo a leucemia sido identificada apenas quando tal se tornou possível, e a exposição do mandatário dos pais do …, concluindo que só uma grave negligência explica o erro de diagnóstico inicial podendo e devendo a doença ter sido imediatamente diagnosticada e tratada -, entendi dever a Provedoria de Justiça dispor do parecer de perito qualificado.

13) Para o efeito contactei o Prof. Dr. …, médico distintíssimo.

14) De acordo com o seu parecer:

14.1) “Nem todos os médicos descansariam num exame morfológico de medula óssea apontando para mononucleose infecciosa acompanhada de púrpura trombocitopénica imune (PTI) acompanhada de esplenomegalia (…) que é uma situação rara nas PTI.”

14.2) “Talvez, portanto, se justificasse a realização, no início da doença, de outros exames complementares, apontados pelo referido Advogado. Seguramente eu assim procederia.”

14.3) “É óbvio que no caso em apreciação, o resultado final prova que o senso clínico não foi bem aplicado.”

14.4) “Será que o erro de diagnóstico derivou de níveis de ignorância inaceitáveis ou de negligência médica passíveis de processo judicial incriminatório? Em minha opinião julgo que não.”

14.5) “Houve um erro que alguns clínicos talvez o não cometessem, mas a natureza do acto médico da acusada está longe de corresponder a negligência ou a níveis de ignorância passíveis de acção punitiva.”

15) Compete ao Provedor de justiça levar até ao fim a análise dos procedimentos da Administração, pelo que solicitei o contributo da ordem dos Médicos, no sentido de ainda assim tentar esclarecer mais o assunto.

16) Nesta sequência o Conselho Nacional para o Exercício Técnico da Medicina, daquela Ordem, pronunciou-se nos seguintes termos:

16.1) “Após a leitura atenta de 4 relatórios elaborados por distintos Hematologistas pertencentes ao Colégio de especialidade de Hematologia Clinica concluiu que a Drª… agiu com toda a correcção técnica e sentido profissional irreprovável, não sendo possível encontrar para a situação em apreço, qualquer outro meio mais eficaz de diagnóstico e terapêutico que pudesse incutir melhor prognóstico à situação patológica do paciente.”

II. Eis, por conseguinte, o panorama da situação. Assim, sem pretender colocar em causa a seriedade e isenção daqueles que se pronunciaram a respeito da conduta profissional assumida pela Drª …, e não obstante estarmos perante uma obrigação de meios, a verdade é que o assunto não se me oferece como tratado até às suas últimas consequências: concretamente do ponto de vista jurídico. Há outras soluções plausíveis de direito, que, por isso mesmo, não podem deixar de ser tidas em consideração, com vista a se encontrar a solução tanto mais justa quanto possível.

O afirmar que há outras soluções de direito que são dignas de aceitação, implica reconhecer-se a existência de direitos, sendo certo que a justiça, enquanto algo de dinâmico que é, prossegue o direito.

Aliás, ponto de partida da justiça é não só a existência de direitos, como a situação de interferência de que estes podem ser objecto (Javier Hervada, Lecciones de Filosofía del Derecho, Vol. I, Teoria de la Justicia y del Derecho, Pamplona, 3ª ed., 1991, cfr. p. 150).

ENQUADRAMENTO JURÍDICO:

1) Mas, passemos a concretizar. Está em causa uma possível lesão culposa do direito à vida, direito que se encontra no topo das dignidades tuteladas pela ordem jurídica.
Daí que, face ao interesse em jogo, se tenha de ter um cuidado acrescido, ou melhor, extremo, quer no que concerne ao problema da repartição do ónus da prova, quer no que se refere ao problema da natureza jurídica da responsabilidade dos hospitais públicos, isto para que possa obter-se uma solução de direito justa.

2) Porém, antes de irmos adiante, convém recordar que o Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis por acções ou omissões dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, desde que praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, resultando daí violação de direitos.
Esta a previsão contida no artigo 22º da C.R.P., não obstante a fórmula equívoca utilizada no texto constitucional (neste sentido cfr. Prof. Sinde Monteiro, no seu estudo Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica, in “Direito da Saúde e Bioética”, 1991 , v.g. pp. 138 a 145, onde o autor mostra a compatibilidade entre os preceitos constitucionais e o Dec-Lei nº 48051, de 21.11.67).

3) Assim, temos que, em princípio, o médico não responde pessoalmente, mas tão-só pela via do exercício de um direito de regresso da instituição hospitalar, o qual todavia pressupõe que “…tenha actuado com diligência e zelo manifestamente inferiores aos que eram devidos em razão do cargo” (artº 2º, nº 2 do citado Dec-Lei nº 48051 ). Só existe responsabilidade pessoal e directa do médico quando este tiver excedido os limites das suas funções ou quando tiver actuado com dolo (caso em que a administração hospitalar responde solidariamente, verificando-se o regime jurídico previsto nos nºs 1 e 2 do artº 3º daquele mesmo Dec.-Lei).

4) Feito este parênteses – importante -, cumpre regressar às ditas questões formuladas, mas que mantivémos em suspenso: a do ónus da prova, e a da natureza jurídica da responsabilidade dos hospitais públicos no que respeita à relação com o utente.

5) Desde logo, e começando por esta última questão, há que ter em conta que o doente é alguém que, em relação à entidade hospitalar, tem positivamente direito a um certo número e qualidade de cuidados de saúde.

6) Referindo-se àquela relação, afirmam os Profs. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, a pp. 49 da sua obra Responsabilidade Médica em Portugal (in BMJ 332 – 1984): – “A qualidade daquele quadro de direitos e deveres, fixado genericamente, mas individualizável e individualizado em relação a cada doente em concreto, como integrando um contrato, parece-nos fazer presa na realidade, não sendo uma pura ficção”.

7) Defendem assim a responsabilidade contratual da própria organização hospitalar, sendo que – como referem – tal entendimento encontra fundamento jurídico quer nos chamados “contratos de adesão” (ideia posta em destaque por Moitinho Almeida), quer na denominada “relação contratual fáctica” (cfr. p. 50, autores e op. cit.). “Qualquer destas qualificações da relação que se estabelece entre o doente e o hospital público – sustentam Figueiredo Dias e Sinde Monteiro – se afigura tecnicamente correcta, sendo portanto perfeitamente defensável à face do direito positivo a solução (existência da responsabilidade contratual)” (cfr. pp. 50-51, op. cit).

8) Na responsabilidade contratual a culpa presume-se, verificando-se a inversão do ónus da prova (nº 1 do artº 799º C.C.). Daí que esta questão da prova, que agora abordamos, também ela venha reforçar a bondade do entendimento propugnado designadamente por Figueiredo Dias e Sinde Monteiro. Não podem perder-se de vista os interesses em jogo. E que assim deve ser, mostram-no aqueles Professores quando, de forma categórica, discordam da tese segundo a qual, porque a obrigação do médico é uma obrigação de meios, o ónus da prova de culpa deverá recair sempre sobre o lesado (credor).

9) Entendem, e bem, que a natureza da obrigação há-de influenciar a repartição do ónus da prova, e que, nesta área o doente só tem objectivamente de provar que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis, nisto consistindo o incumprimento do contrato.

10) Neste sentido sustentam: – “Dir-se-á que isto é o mais difícil de conseguir. E é. Mas, em todo o caso, é diferente ter de provar a verificação de um erro de técnica profissional, com recurso às leis da arte e da ciência médica, ou ter de provar que aquele médico, naquelas circunstâncias, podia e devia ter agido de maneira diferente. A prova de que estas circunstâncias não se verificaram, estará o médico em melhores condições de a fazer. Parece pois justo impor-lhe esse ónus.” (cfr. op. cit. pp. 46), com o que concluem: – “Assim, verificando-se uma lesão que, de acordo com a experiência médica, é tipicamente de atribuir a um determinado erro culposo de tratamento, deve presumir-se a existência deste erro de tratamento, podendo naturalmente o médico provar que se verificou um decurso atípico dos acontecimentos”.

11) Resulta que, in casu, se justificava, no início da doença, a realização de outros exames complementares. Os referidos supra, nos pontos 11.1 a 11.7. Tal entendimento foi aliás subscrito pelo Prof. …, que, neste sentido, afirma: – “Seguramente eu assim procederia” (cfr. supra pontos 14.1 e 14.2). Mais: entende mesmo como óbvio que o senso clínico não foi aqui bem aplicado (cfr. ponto 14.3).

12) Ter-se-á verificado portanto um erro de técnica, sendo certo que, atenta a natureza deste tipo de responsabilidade civil, não compete ao Provedor de Justiça, em defesa do reclamante, fazer a demonstração da culpa.

13) O ónus da inexistência de culpa cabe à médica que assistiu o … .

14) Deste modo configura-se – parece-me – solução mais equilibrada e equitativa para o doente que, face à organização hospitalar, pretende uma indemnização por eventos danosos ocorridos no âmbito desta.

EM CONCLUSÃO:

1) Nos termos do artº 22º – da C.R.P., é o Estado e demais entidades públicas directamente responsável por acções ou omissões dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, desde que praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, daí resultando violação de direitos.

2) A natureza contratual da relação doente/hospital público em nada é contrária ao direito, encontrando antes fundamento jurídico em conceitos como os de “contrato de adesão” e “relação contratual fáctica”.

3) Tal como entendem designadamente os Profs. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, trata-se de uma solução tecnicamente correcta, sendo portanto perfeitamente defensável face ao nosso direito positivo.

4) O doente só tem objectivamente de provar que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis, nisto consistindo o incumprimento do contrato.

5) No caso concreto, após mielograma feito em 04/9, em que se detectam pela primeira vez blastos no sangue – único elemento que leva ao diagnóstico de leucemia aguda (cfr. pontos 10 e 10.1: “novo parecer do Dr. … “) – o … deveria ter sido de imediato internado.

6) Contudo, só em 13/9 tal internamento se verificou, não lhe tendo portanto sido prestados os melhores cuidados, e incumprindo-se também desta feita a obrigação de meios.

7) Aliás, no início da doença, justificavam-se outros exames complementares, tal como reconhece o Prof. … , que, ao referir-se-lhes, afirma: – “Seguramente eu assim procederia” (cfr. supra ponto 14.2), acrescentando ser óbvio que no caso em apreciação o senso clínico não foi bem aplicado (cfr. ponto 14.3).

8) Ter-se-á, portanto, verificado um erro de técnica, sendo certo que, atenta a natureza deste tipo de responsabilidade civil, não compete ao Provedor de Justiça, em defesa do reclamante, fazer a demonstração da culpa.

9) A natureza contratual da relação jurídica doente/hospital público leva a uma solução mais ponderada e acabada do que a que resulta da responsabilidade extracontratual, uma vez que aquela, com maior equilíbrio, impõe ao médico fazer a prova, de acordo com a sua experiência profissional, de que a lesão não se deveu à sua conduta (799º/ 1 C.C.).

10) Parece pois justo, e, antes de tudo, conforme com o direito, impor-lhe esse ónus.

11) Não produzida a prova, deve por conseguinte responsabilizar-se o Estado (organização hospitalar) nos termos do artº 22º – da C.R.P..

12) Assim, em face do exposto, e com base nas competências que lhe são conferidas pela Lei nº 9/91, de 9/4 (artigos 20º), nº 1/a, e 21º nº 1/c), entende o Provedor de Justiça

RECOMENDAR

a Sua Excelência o Ministro da Saúde se digne determinar a reabertura do Inquérito por parte da Inspecção-Geral da Saúde, a fim de ser a questão analisada desta perspectiva de direito.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel