Ministro do Planeamento e Administração do Território

Rec. nº 43A/94
Proc.: IP-13/93
Data:1994-02-11
Área:

ASSUNTO:SAÚDE – ÁGUA – QUALIDADE DA ÁGUA – REDE DE CONSUMO PÚBLICO – UNIDADE DE HEMODIÁLISE DO HOSPITAL DISTRITAL DE ÉVORA – RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR DO ESTADO.

I – ANTECEDENTES

1. Em 01.04.93, numa conferência de imprensa do Sindicato dos Médicos da Zona Sul foi referida a existência de graves deficiências de funcionamento da Unidade de Hemodiálise (UH) do Hospital Distrital de Évora (HDE) a qual provocara, no decurso do mês anterior, a morte de insuficientes renais crónicos (IRC) que ali recebiam assistência regular.

2. Face ao impacto que aquela informação teve na comunicação social e às intervenções públicas de diversos responsáveis do Ministério da Saúde foram por mim solicitadas em 16.04.93, ao Inspector-Geral de Saúde (IGS) diversas informações, incluindo inquérito preliminar então em curso.
Paralelamente, solicitei e recolhi junto de outras fontes variada documentação relativa ao mesmo assunto.

3. Por ofício de 03.06.93 o IGS remeteu-me “para conhecimento e devidos efeitos”, fotocópias certificadas do Relatório Final do processo de inquérito nº 403/93-IGS.

4. Do Relatório extrai-se que no dia 01.04.93 foi pelo IGS determinada a deslocação de um inspector assessor ao HDE para uma primeira abordagem da situação.
Na mesma data de 01.04.93 recebeu o IGS ofício do Conselho de Administração (C.A.) do HDE solicitando “a instauração de um processo de averiguações”, “visando o esclarecimento e resolução do problema”.

5. o Relatório Final, com as propostas nele feitas, sustenta o despacho de 25.05.93 do Ministro da Saúde, que instaurou procedimento disciplinar a funcionários e agentes do HDE, cuja conclusão ainda desconheço.

6. Depois de analisada a documentação reunida nesta Provedoria, passo a destacar o contexto e os factos que suportam a análise que posteriormente desenvolvo.

II – CONTEXTO

7. Verificava-se em princípios de 1993 uma situação generalizada de seca em todo o território nacional, com particular incidência no Alentejo.

A seca decorria desde o Inverno de 1991 e, além de notória, era referida frequente e dramaticamente nos órgãos de comunicação social.

8. Entrara em vigor o Dec-Lei nº 74/90, de 7 de Março, fixando características mínimas de qualidade da água e regras objectivas para actuação da Administração Pública (directa, indirecta e autónoma).

9. Estavam em vigor o Dec-Lei nº 19/88 e o Dec-Reg. nº 3/88, respectivamente de 21 e 22 de Janeiro, que regem a natureza, orgânica e funcionamento dos hospitais públicos, e regulam os órgãos de gestão hospitalar, sua composição, competência e funcionamento, e responsabilidade dos respectivos titulares.

10. Fora aprovada a Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90, de 24 de Agosto) regulamentada em 15 de Janeiro pelos Dec-Leis nºs 10 e 11/93.
0 primeiro extinguiu a Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (DGCSP) e criou a Direcção-Geral da Saúde (DGS), mantendo em funcionamento os serviços da daquela até entrada em vigor do Dec-Lei nº 345/93, de 1 de Outubro.

III – FACTOS

11. No processo de inquérito reconhecem-se as deficiências de funcionamento da Central de Tratamento de Águas da UH do HDE.

12. Apura-se que essas deficiências foram verificadas inicialmente em Set/90, mas que se tornaram frequentes a partir de Jan/92.
Essas deficiências traduziram-se na perda de rendimento do sistema de filtragem da água utilizada no tratamento dos IRC, repetidamente descendo o débito da água filtrada abaixo dos 3801/h referidos como indispensáveis para a correcção e segurança do tratamento.
As sucessivas lavagens das membranas, substituição de filtros, membranas e módulos de osmose inversa não asseguravam a permanência do consequente aumento daquele débito de água, e apurou-se que a insuficiência sistemática da água resultava da colmatagem das membranas e dos filtros com matéria orgânica e sais minerais transportados pela água
da rede de abastecimento público.

Tal situação conduziu a empresa especializada que instalou e prestava assistência ao equipamento (ENKROTT) a propor em Fev/Março de 1992 a construção de um novo depósito para recolha de água pré-tratada.

A construção, não prevista no plano de actividades, nem no orçamento do HDE, importando cerca de 3.000 contos de encargos, foi considerada prioritária e autorizada pelo Administrador-Delegado, Dr. … . Não obstante, iniciou-se apenas em Outubro/92.
Na mesma altura o Administrador-Delegado autorizou também a remodelação do sistema de filtração.

13. Foram detectadas deficiências no tratamento e conteúdo analítico das águas das Estações de Tratamento de Águas, no equipamento de dosagem do sulfato de alumínio, nas condutas da água de abastecimento público.

14. As deficiências da água da rede suscitaram diversas reuniões de técnicos da Câmara Municipal de Évora (C. M. E.) ,da Administração Regional de Saúde de Évora (A.R.S.), do H.D.E. e ENKROTT que foram sucessivamente sugerindo e adoptando diversas medidas correctoras.

Em Fev/Março-92, a ENKROTT aconselhou a C.M.E. usar polielectrólitos.

Mas a maioria das sugestões e/ou correcções, foram ineficazes até 1.4.93, quer qauanto à água da rede de abastecimento público, quer quanto à água utilizada na UH do HDE.

Todavia nunca as autoridades ou serviços de saúde afirmaram à população a não potabilidade da água de consumo.

15. As medidas que se revelaram eficazes na melhoria da qualidade da água para os dois fins acima referidos começaram a ser tomadas, atenta, persistente e eficazmente pelas entidades competentes dependentes do Ministério da Saúde a partir da denúncia pública das deficiências e mortes já aqui mencionadas.

16. Evidenciam-se as conclusões dos peritos ouvidos no inquérito, segundo os quais “na instalação de um centro de hemodiálise é pressuposto que a água a ser utilizada provém da rede de abastecimento público. As características qualitativas especiais para tal utilização exigem tratamento específico que é da inteira responsabilidade desse Centro” (fls. 1057 dos autos).

17. A Autoridade de Saúde, antes de 01.04.93, não desempenhou as suas funções de órgão do Estado responsável pela vigilância da actuação e decisões dos serviços públicos com reflexos na saúde pública nem tomou medidas coercivas sobre a matéria.

18. Também a divulgação em 01 .04.93 das ocorrências na UH não determinou a Autoridade de Saúde a proceder à oportuna discricionária tomada de medidas, inclusivé a do encerramento daquela Unidade.

19. Os serviços de saúde e a Câmara não comunicavam regular e atempadamente à DGQA os resultados das análises cujos valores excediam os limites fixados, o mesmo sucedendo com a Autoridade de Saúde.

20. Não resulta da documentação analisada que, quer a Direcção-Geral da Qualidade do Ambiente (DGQA), quer a Direcção-Geral dos Recursos Naturais (DGRN), quer a Comissão Coordenadora Regional do Alentejo (C. C. R.) tenham tomado quaisquer iniciativas tendentes a zelar pela existência e reforço das condições de abastecimento de água com qualidade, face ao prolongamento da situação de seca.

A DGQA limitou-se a pedir, rotineiramente, em Julho de 92 e Abril de 93, os mapas com os registos das análises efectuadas, nos anos imediatamente anteriores.

E a Autoridade de Saúde só em 22.04.93, apesar de quase diariamente a comunicação social fazer referência ao sucedido na UH do HDE e ao excesso de alumínio na água da rede pública, solicitou a intervenção dos serviços da DGQA por recomendação do Ministro da Saúde.

IV – LEGISLAÇÃO REGULADORA DA SITUAÇÃO EM ANÁLISE.
APLICAÇÕES

21. 0 Dec-Lei 74/90, de 7 de Março.

21.1 Define as categorias da água em função dos seus usos principais, destacando-se aqui a água para consumo humano ( artº 2º, nº 1 a) .

21.2 Caracteriza o tipo de acções que integram o “sistema de controlo de qualidade da água”.
0 “controlo” cabe à entidade responsável pela exploração dos recursos hídricos, no caso em apreço, à CME (v. artº 4º, nº 13 a).

A “fiscalização” é da competência das entidades gestoras de recursos hídricos, para defender a saúde pública. No caso em estudo, a DGRN (v. arte 4º, nº 2 f) e h).

A “vigilância sanitária” é realizada “pelos serviços de saúde, nomeadamente no âmbito da exploração técnica dos sistemas de abastecimento de água para consumo humano”.

Os serviços de saúde referidos no artº 4º são a DGCSP (hoje DGS) e as ARS (então regidas pelo Dec-Lei nº 254/82, de 29 de junho), a quem compete “planear e assegurar a vigilância sanitária da qualidade da água para consumo humano” (artº 49, nº 3 e) e elaborar relatórios anuais sobre a qualidade da água (artº 4º nº 3 f).

A “inspecção” é da competência da DGQA (nº 1 b) do artº 4º e no artº 18º, nºs 1 e 2) e das C.C.R. (artº 4º nº 4 a).

As inspecções podem ser de iniciativa oficiosa (v.Código do Procedimento Administrativo artº 54º ) mas as câmaras e os servicos de saúde estão vinculados ao dever comunicar à DGQA, no prazo de 3 dias, sempre que os valores apurados nos seus controlos ultrapassam os limites fixados no Anexo IX da Lei (v. artº 18º, nº 2).

Também, nos termos do nº 1 do artº 56º, “qualquer das entidades competentes dará conhecimento à DGQA das ocorrências detectadas”.

Estes deveres de informar não parece terem sido cumpridos, antes de 1.04.93, por qualquer das entidades competentes.

21.3 Mas, “salvaguardados os imperativos de protecção da saúde pública”, não são aplicáveis os parâmetros referidos nos anexos à Lei, por exemplo, em situação de seca (artº 6º nº 1 a).

Esta diminuição de exigências “é obrigatoriamente confirmada pela entidade com competência para a fiscalização na área correspondente (artº 6º, nº 2), que, no caso em análise, julgo ser a DGRN, e comunicada à DGQA nos 15 dias subsequentes (artº 6º, nº 3).

A iniciativa nesta matéria não parece depender de um pedido da entidade responsável pela qualidade da água de abastecimento para consumo humano (a CME), antes cabe às câmaras fornecer à DGQA e às ARS as informações que estas lhes solicitem (artº 4º, nº 13 c).

A iniciativa de confirmação da situação de excepção pode ser oficiosa, considerando-se que teria sido indispensável sobretudo nos anos de 1992 e 1993 devido à prolongada situação de seca.

Por sua vez, a CME apenas requereu a declaração da situação de seca em 27.04.93, não obstante dispôr há muito de análises com resultados elevados em alguns parâmetros matéria orgânica).

0 pedido não mereceu provimento.

21.4 As águas que “requeiram uma maior exigência de qualidade” não são consideradas de abastecimento para consumo humano (artº 15º, nºs 1 e 2). É o caso da utilizada nas UH, à qual não se aplicam os normativos que vêm sendo citados.

21.5 Entre ás características de qualidade da água de abastecimento para consumo humano destaca-se: “não pôr em risco a saúde (pública), ser agradável ao paladar e à vista dos consumidores (…) – (cfr. artº 16º, nº 1).

0 sulfato de alumínio é referido nos autos como tendo uma função “estética”, fazendo precipitar substâncias que dão à água um aspecto turvo desagradável.

Mas a CME não dispunha de equipamento adequado para fazer o doseamento do sulfato de alumínio necessário, e isso poderá ter contribuido para exceder continuamente as exigências de potabilidade definidas no Anexo IX que são, quanto ao alumínio, o VMR de 0,05 e o MA de 0,2.

22. A C.R.P., o Código Penal, o Estatuto Disciplinar (A Responsabilidade Disciplinar)

22.1 Os artºs 22º e 271º da Constituição (C.R.P.) fazem decorrer a responsabilidade, e a subsequente solidariedade do Estado ou de outras entidades públicas, de actos ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes.

Da mesma forma, o artº 10º do Código Penal, para os crimes de resultado, equipara a comissão por acção à comissão por omissão.

A responsabilidade disciplinar decorre da mera culpa do autor do acto ou omissão (artº 3º, nº 1 do Estatuto Disciplinar) do qual resulte violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce.

Deveres, para fins disciplinares, são todos os que visam assegurar o regular funcionamento dos serviços, destacando-se aqui os deveres gerais de zelo e de lealdade, definidos, respectivamente, nos nºs 6 e 8 do artº 3º do Estatuto Disciplinar.

0 primeiro “consiste em conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho de modo a exercer as suas funções com eficiência e correcção”.

Desdobra-se em diligência e competência.

0 segundo “consiste em desempenhar as suas funções em subordinação aos objectivos do serviço e na perspectiva da prossecução do interesse público”.

Embora o artº 33 do Dec. Reg. nº 3/88, de 22 de Janeiro, refira que os membros dos órgãos da administração e direcção técnica são responsáveis disciplinar, civil e criminalmente, nos termos da lei, pelos actos que pratiquem no exercício das suas funções, não podem considerar-se excluidas da mesma responsabilidade as omissões dos citados titulares.

22.2. Dos elementos constitutivos da infracção destaco a culpa e a ilicitude.

A culpa é apreciada “pela diligência de um bom pai de família” (cfr. C. Civil, artº 487º, nº 1).

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “o julgamento (da culpa) não está vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria que porventura se tenham generalizado, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento” (in Código Civil Anotado, vol. I, pág. 462, 3ª ed.).

Por isso, a “referência expressiva ao bom pai de família acentua mais a nota ética ou deontológica do bom cidadão (…) do que o critério puramente homem médio” (idem).

A ilicitude disciplinarmente traduz-se na violação de valores superiormente protegidos (v.g., os direitos à vida, à integridade pessoal, à protecção da saúde) que devam ser prosseguidos pela Administração.

23. Aplicações do Regime de Responsabilidade

23.1 A Câmara não diligenciou atempadamente no sentido de efectuar uma dosagem correcta do alumínio a introduzir na água de abastecimento público, nem deu regularmente conhecimento à DGQA dos resultados das análises que excediam os valores de referência.

Fizeram-se reuniões, espaçadas no tempo, com participação da engenharia sanitária (ARS e DGCSP) para discutir problemas e aconselharam-se algumas medidas correctoras, quer à Câmara, quer ao Hospital.

Mas não se conhece, antes dos acontecimentos serem divulgados na comunicação social, qualquer comunicado alertando a população para o perigo decorrente do consumo da água da rede para a saúde pública, não obstante a matéria orgânica e os teores de alumínio serem frequentemente superiores aos recomendados.

23.2 Todavia, as responsabilidade relativamente à qualidade e potabilidade da água de abastecimento público são distintas das referentes às águas cuja utilização requer uma maior exigência de qualidade.

23.3 Estão neste caso, e a coberto da excepção do nº 2 do artº 15º do Dec-Lei nº 74/90, as águas utilizadas em hemodiálise, num hospital em que as particulares e rigorosas exigências de pureza devem ser asseguradas pelo serviço utilizador da água, em termos adequados às circunstâncias, conclusão a que também chegaram os peritos que depuseram no inquérito da I.G.S. .

V – CONCLUSÕES

24. De acordo com o que ficou exposto e em nome da atribuição constitucional que lhe é conferida de conduzir à prevenção e reparação de injustiças (artº 23º, nº 1, CRP), entende o Provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são confiados pelo seu Estatuto (Lei nº 9/91, de 9 de Abril), no artº 20º, nº 1, alíneas a) e b) e, como tal, RECOMENDAR:

A determinação da realização de inquéritos visando o apuramento de actos e omissões com incidência disciplinar, verificados no contexto atrás descrito (ver pontos 7 e 8), no âmbito das competências dos órgãos, funcionários e agentes dos serviços integrantes desse Município.

Estes inquéritos devem ter lugar independentemente do conhecimento dos relatórios das autópsias dos IRC já falecidos, e quaisquer que sejam as suas conclusões.

Admito a existência de emissões insuficientemente apurados no inquérito realizado pela Inspecção-Geral de Saúde, por não aprofundamento da instrução, ou porque parte dos factos estão fora de jurisdição do Ministério da Saúde.

Quanto aos actos ou omissões eventualmente não investigados pela IGS, envio também nesta data uma Recomendação ao Ministro da Saúde.

Recordo a Vossa Excelência ser a presente Recomendação formulada ao abrigo do disposto no artº 20º, nº 1, alínea a) do Estatuto aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril.

Como tal, vincula o seu destinatário ao cumprimento dos deveres contidos no artº 38º, nºs 2 e 3, do citado diploma, sem prejuízo da informação a este órgão do Estado sobre todas as medidas eventualmente tomadas quanto aos fins visados, nos termos do artº 29º, nº 4 (idem), para cujo cumprimento é fixado o prazo máximo de vinte dias.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL