Ministro da Saúde

Rec. n.º 158/A/93
Proc.: R-2440/93
Data: 1993-11-09
Área: A 3

Assunto: FUNÇÃO PÚBLICA – CARREIRA MÉDICA – REALIZAÇÃO DE CONCURSOS – DESTACAMENTO.

Sequência:

Tenho registado a actividade de Vossa Excelência no âmbito da colocação de especialistas médicos nos hospitais dos centros urbanos mais carenciados.

Não posso deixar de exprimir a minha concordância com os nobres fins que, sem dúvida, originaram essa acção, quais sejam a efectiva concretização da norma constitucional programática que consagra o direito à saúde de todos os portugueses, bem como a melhor adequação dos meios ao dispor da Administração Pública para esse efeito.

Não é, pois, uma posição contrária a esses fins que o Provedor de Justiça vem tomar pela presente Recomendação.
A Instituição que ora encarno é, como Vossa Excelência bem sabe, um meio mais que a Constituição prevê para a dignificação das instituições democráticas. Não se trata de uma forma de contra ou de para-governação, mas sim de um modo autorizado de consciencialização das atitudes dos Poderes legislativo e administrativo, servindo assim para uma maior legitimação (rectius aceitação e eficácia) dessas decisões.

Na verdade, se aos fins nada se pode assacar, quanto aos meios parecem sobrar as razões para intervenção do Provedor de Justiça, quer em termos de pura legalidade, quer em termos de justiça das decisões em causa.

A situação criada com o destacamento de médicos especialistas, com a categoria de assistentes eventuais, para outros hospitais que não aqueles onde vinham prestando serviço, presumivelmente onde tinham terminado o seu internato complementar, é, sem dúvida, resultante da interacção de uma complexa teia de interesses que, mais do que contrapostos, se quereriam ver compatibilizados. A zona mais premente de conflito gera-se no ponto de confluência entre a garantia do direito à saúde e o dever de boa administração, por um lado, e a garantia da segurança no emprego, conjugada com toda uma sequência de garantias individuais que o Estado não pode deixar de respeitar e fazer respeitar.

A categoria dos assistentes eventuais, tal como a define o artigo 25.º, b), do Decreto-Lei n.º 128/92, de 4 de Julho, comporta duas realidades bem distintas. Assim, na sua segunda parte, faz-se referência aos médicos cujo internato complementar tenha sido iniciado depois de 1 de Janeiro de 1989 (por remissão para o art.º 24.º, n.º 2, do mesmo Decreto-lei, na redacção que lhe foi dada, por ratificação, pelo art.º 1.º da Lei 4/93, de 12 de Fevereiro), que, em determinadas condições, beneficiam da possibilidade de verem prorrogados os seus contratos administrativos de provimento por um termo certo, não se gerando qualquer dúvida sobre a transitoriedade da sua situação e não sofrendo reparo a forma minimamente detalhada como o art.º 27.º, n.ºs 2 e 3, do Decreto-lei 128/92 cit., estabelece as regras para a sua mobilidade.

0 problema gera-se quanto à segunda subespécie de assistentes eventuais, ou seja, aos médicos com o internato complementar iniciado antes de 1 de Janeiro de 1989 (art.º 24.º, 1., b), do Decreto Lei 128/92, alterado pelo art.º 1.º da Lei 4/93). Estes beneficiam também de uma prorrogação do seu contrato administrativo de provimento mas, ao contrário dos primeiros, sujeito a uma condição resolutiva e não a um termo final. Isto é, o seu contrato administrativo de provimento só cessará os seus efeitos se se produzir um facto futuro e incerto – a sua colocação num lugar de assistente.

Não é altura para grandes considerações de jure condendo ou de jure condito sobre a adequação da utilização da figura do contrato administrativo de provimento para estes casos. 0 que deve ser retido é a possibilidade de estes profissionais poderem nunca vir a obter um lugar de assistente e, assim, verem os seus contratos administrativos de provimento, forma jurídica para a constituição de uma relação transitória de emprego público (cf. art.º 8.º do Decreto Lei 184/89), servirem para titular uma relação com carácter permanente entre o servidor do Estado e a Administração. Esta possibilidade deve obrigar a um regime bastante mais exigente do que o estabelecido para os assistentes eventuais do primeiro tipo acima mencionado, ou seja, aqueles com contrato administrativo de provimento a termo certo final de 18 meses. Isto porque a relação daqueles com o Estado é já permanente, independentemente do título jurídico que o titula, sendo mais gravosa a situação de indefinição de regime aplicável perante o Estado, em termos de segurança no emprego ou de outros direitos fundamentais reconhecidos pela ordem jurídica constitucional.

A mobilidade indiscriminada destes médicos afigura-se lesiva dos seus interesses de forma inadmissível (e não se esqueça que o Bem público passa, também, pelos bens particulares), sem que seja demonstrável um claro benefício para os interesses públicos em jogo. Não há progresso na saúde pública, não há maior concretização do direito fundamental à saúde de todos os Portugueses, que possa prescindir da existência de uma classe médica com condições efectivas de actividade. Estas condições passam também pelo regime jurídico da sua actividade
nos serviços de saúde da Administração Pública, devendo a avaliação da sua justeza e eficácia passar mais por critérios qualitativos que quantitativos. E, julgo, a qualidade do serviço prestado pode começar pela qualidade da regulação jurídica que fundamenta e autoriza a Administração Pública a destacar os profissionais médicos ao seu serviço.

Essa regulação não pode deixar de ter em conta a dimensão pessoal e profissional da actividade desses profissionais. No primeiro aspecto, impõe-se um conhecimento prévio das condições em que o destacamento é efectuado, no que toca, nomeadamente, à transparência do processo, prazo da deslocação, garantias oferecidas, etc. No que releva para o segundo aspecto, tais movimentações devem possuir um carácter de razoabilidade face à carreira pretérita e futura dos médicos em causa, salvaguardando a existência de meios técnicos e humanos, no lugar de destino, para o desenvolvimento da sua carreira profissional.

Deste modo e como condição básica para a credibilidade e aceitabilidade da aplicação do n.º 1 do art.º 27.º do Decreto-lei 128/92, recomenda-se vivamente a realização de concursos públicos para provimento dos lugares que, após levantamento exaustivo, se demonstrem necessários e hábeis para entrar em funcionamento. Segundo dados da Ordem dos Médicos, tal requisito não foi cumprido no caso concreto dos destacamentos que agora estão em curso, não existindo correspondência entre os destacamentos e as necessidades demonstradas pelas vagas postas a concurso.

Este concurso poderia ter carácter obrigatório, sempre ou a um número certo de vagas por opositor/ano, sendo a não propositura dos assistente eventuais a concurso sancionada com a cessação do contrato ou, preferivelmente, com a sujeição prioritária ao regime do destacamento.

Só após a realização do procedimento atrás descrito parece admissível o recurso a meios de mobilização de pessoal que, pese embora o título formalmente temporário, que liga à Administração, tem por vocação legal a integração num lugar do quadro (cfr. art.º 24.º, 1, b), do Decreto-Lei 128/92 e art.º 15.º do Decreto-lei 73/90, de 6 de Março).

Esses meios de mobilização não podem consistir, sem mais, na mera aplicação singela do art.º 27.º, n.º 1, do Decreto-Lei 128/92. 0 art.º 53.º da Constituição, na sua vertente positiva, bem como outros normativos constitucionais directamente aplicáveis e vinculativos dos poderes públicos (entre outros, um direito à realização profissional e pessoal, que se pode extrair dos art.ºs 24.º, 25.º, 1, e 58.º, da Constituição), impõem uma maior concretização e definição do regime jurídico.
Não se compreenderia, aliás, que os assistentes eventuais cuja ligação à Administração cessa 18 meses após a conclusão do internato complementar tivessem um regime mais favorável do que aqueloutros cujo vínculo está já estabelecido de forma permanente e duradoura. Não se argumente com a natureza eventualmente mais transitória da posição dos assistentes eventuais com direito à prorrogação até alcançarem um lugar do quadro, na medida em que, como se viu, essa prorrogação está sujeita a condição e não a termo, ainda que incerto.

Sendo assim, na falta de regulamentação do regime aplicável aos casos do art.º 27.º, 1, do Decreto-lei 128/92, há que concluir pela existência de uma lacuna. Recorrendo aos instrumentos propostos pela doutrina para integração de lacunas, consagrados no art.º 10.º do Código Civil, há que recorrer, em primeiro lugar, à norma aplicável em casos análogos. Ora, quer por esta via, quer, se se preferir, por via da aplicação subsidiária (a que não se opõe o art.º 44.º, 3, do Decreto-
-lei 427/89, de 7 de Dezembro), parece que o regime a recorrer para integrar a disposição do art.º 27.º, 1, do Decreto-Lei 128/92, é o quadro traçado pelo cit. Decreto-lei 427/89, nos seus artigos 27.º e 25.º, 2 e 3 (ex vi o mesmo art.º 27.º, n.º 6), para o caso da requisição e destacamento, quando a analogia da situação o permita e, evidentemente, quando o art.º 27.º, 1, do Decreto-lei 128/92, não disponha diversamente.

0 exposto no parágrafo antecedente parece ser o limiar mínimo a que, em casos de comprovada urgência, a Administração estará sempre obrigada no tratamento da situação funcional dos médicos em causa.

Nestes termos, ao abrigo da competência que me é conferida pelo artigo 20.º, n.º 1, a) e b), da Lei 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a Vossa Excelência que:

1) Promova a realização de concursos, após determinação das necessidades públicas, com carácter obrigatório ou facultativo, mas determinando a não oposição a sujeição preferencial ao regime do destacamento.

2) Recorra, só após a realização dos concursos mencionados em 1) e se sobrarem vagas, aos meios previstos no art.º 27.º, 1, do Decreto-lei 128/89, possibilitando uma melhor gestão dos recursos, mas integrando o seu regime com o constante do Decreto-lei 427/89, no que toca à requisição e destacamento, quando a analogia das situações tal permita ou obrigue.

3) 0 recurso ao instrumento referido em 2) deve ter lugar em condições de razoabilidade, sem prejuízo da carreira dos médicos destacados ou lesão desproporcionada das suas posições jurídicas. Nomeadamente, devem prever-se os meios técnicos e humanos adequados à prática da especialidade médica respectiva.

4) Suspensão imediata, com consequente eliminação dos efeitos já produzidos, do processo de destacamentos em curso, com observância posterior do proposto acima ou, em alternativa,

5) Aplicação imediata da segunda parte do n.º 2) e do n.º 3) precedentes ao processo em curso, com realização no mais breve espaço de tempo possível, de concursos para os lugares em causa, dando-se preferência aos médicos neles destacados.

0 PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL