Presidente da Assembleia da República
Nº 9/B/98
P-16/98
Data:2.09.1998
Área: A4

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – CARGOS DIRIGENTES – CONCURSO – BUROCRATIZAÇÃO EXCESSIVA – RELAÇÃO DE CONFIANÇA

Sequência: Sem resposta

No desenvolvimento da análise de quatro queixas dirigidas a este órgão do Estado, respeitantes à alteração legislativa operada pela Lei n.º13/97, de 25 de Maio, relativamente ao segmento normativo que define o concurso como forma exclusiva de recrutamento para os cargos de director de serviços e de chefe de divisão dos serviços e organismos da Administração Pública, vim a concluir que a solução legislativa encontrada para o recrutamento do escalão inferior do grupo de pessoal dirigente parece ter mais custos do que benefícios, não logrando mesmo cumprir os objectivos que com ela se pretendem atingir.

1. E, se de um ponto de vista conjuntural, redobram as preocupações com a aplicação desta solução, o problema tem, a meu ver, raiz estrutural e é susceptível de afectar o sistema de gestão da Administração Pública, contaminando o próprio funcionamento dos serviços.

2. Tendo presente que as leis orgânicas de diversos departamentos ministeriais, publicadas após 1 de Janeiro de 1996, fizeram cessar as comissões de serviço do respectivo pessoal dirigente, a que acresce o facto de ter sido determinada a suspensão das nomeações para os cargos de director de serviços e de chefe de divisão (cfr. Despacho de Sua Excelência o Ministro Adjunto, de 9 de Julho de 1997) não é arrojado admitir que, durante o corrente ano, cerca de metade do conjunto desses cargos (3961 : 2 = 1980) venha a ser objecto de um processo de recrutamento.

3. Nesse processo, estarão envolvidos 5941 dirigentes da Administração Pública (1980 concursos x 3 membros efectivos do júri), a que correspondem 495 dias de trabalho, se se considerar que o Júri não despenderá mais de 20 horas (definição dos factores e parâmetros de avaliação – 4 horas ; avaliação curricular – 6 horas ; entrevista – 8 horas ; elaboração da lista de classificação final – 2 horas) com a sua participação em cada concurso.

4. Não perdendo de vista que o número de cargos dirigentes da Administração Pública se cifra num total de 4679 (296 directores-gerais, 422 subdirectores-gerais, 1635 directores de serviços e 2326 chefes de divisão), sem levar em linha de conta os 2773 dirigentes, que se agrupam na categoria indiferenciada de “outros dirigentes”, não é difícil concluir que alguns dirigentes terão participação em mais de um concurso, até por estarem vagos os cerca de 1980 lugares dirigentes que acima referimos.

5. Do lado dos virtuais opositores aos concursos, não é de temer, para já, que se candidatem os 15000 potenciais funcionários que, globalmente, reúnem os requisitos gerais de admissão a concurso, uma vez que o conhecimento da realidade em que se inserem fá-los-á admitir como longínqua a hipótese de a escolha do melhor candidato se fazer contra a vontade do dirigente máximo do serviço.

6. Teremos, assim, praticamente todo o pessoal dirigente comprometido, nos próximos meses, no recrutamento de dirigentes, num processo melindroso e sujeito a pressões da mais diversa natureza. O tempo gasto neste domínio constituirá um período manifestamente improdutivo para a prossecução das atribuições dos serviços em que esse pessoal se integra.

7. Mas esta preocupação de ordem eminentemente conjuntural, não passa de um reflexo momentâneo de uma opção legislativa que comporta custos bem superiores aos que acabamos de referir.

8. Para os cargos de director-geral e de subdirector-geral manteve-se o regime de livre escolha, com fundamento no facto de serem cargos cujos titulares devem merecer a confiança política do Governo. Se não nos deixarmos iludir pelas palavras, o que releva nesta expressão é o termo confiança e não a qualificação que lhe vai associada.

9. A confiança é, por natureza, uma atitude de cariz eminentemente pessoal. Confia-se, sempre, numa determinada pessoa, embora essa confiança possa incidir em diferentes planos. Quando nos referimos a confiança política, no contexto das nomeações de cargos dirigentes da Administração Pública, o qualificativo justifica-se por advir de uma relação profissional que se exerce no domínio da execução da actividade política do Governo (cfr. artigos 185º, 191º, 202º, alínea d) e 204º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). Será, pois, neste âmbito que se definem alguns dos campos de incidência que serão tidos em conta por quem oferece a sua confiança, designadamente a competência técnica, certas qualidades pessoais, as aptidões profissionais, a capacidade de liderança, consonância quanto à execução do programa do Governo na área de actuação desses dirigentes, mas, também, a lealdade que se espera, como contrapartida da confiança que se depositou na pessoa escolhida.

10. Sublinhe-se que aqueles cargos dirigentes não são cargos políticos (cfr. o já citado artigo 202º, alínea d), da Constituição), o que permite, tendo esse facto em atenção, situar a referida confiança no seu verdadeiro plano institucional. O direito de escolher os dirigentes de topo encontra a sua justificação no facto de os actos e omissões destes funcionários se repercutirem na esfera de responsabilidade da entidade que os nomeia.

11. No que respeita aos modelos de funcionamento das organizações, a relação hierárquica e funcional que se estabelece entre directores-gerais e os directores de serviços e chefes de divisão não é substancialmente diferente daquela que liga os primeiros aos membros do Governo. Atentas as competências do director-geral (cfr. artigo 11º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, bem como os mapas I e II anexos ao diploma), relativamente à unidade orgânica que dirige, não se compreende que lhe seja recusada a faculdade de intervir na escolha dos seus colaboradores mais directos.

12. A relação de confiança, que se reputa indispensável na escolha dos dirigentes de topo, não é, de forma alguma, negligenciável, no recrutamento dos restantes dirigentes. As organizações não funcionam eficazmente sem uma articulação capaz entre os diferentes níveis da hierarquia, muito em especial na conexão do vértice estratégico com os gestores intermédios.

13. Cabe aqui perguntar se será legítimo assacar a um director-geral a responsabilidade por um recrutamento que se venha a revelar inadequado. Mas se não é legítimo assacar-lhe essa responsabilidade, então quem responde por um mau desempenho de um director de serviços ou de um chefe de divisão? Não é certamente o Júri do concurso. E, no entanto, é esta a entidade responsável pela escolha destes dirigentes, sendo, contudo, irresponsável quanto às consequências desse seu acto. Ao contrário dos membros de um Júri, o dirigente máximo do serviço não se pode alhear dos resultados do recrutamento, tanto mais que tem um interesse pessoal e directo em garantir colaboradores capazes para formarem equipa consigo.

14. Sabendo-se quem escolhe e que essa entidade sofre ou beneficia dessa decisão, não só se dispõe de um modo de recrutamento dotado da máxima transparência, como se define com clareza a responsabilidade pelo exercício dessa competência.

15. O recrutamento e a selecção de pessoal (cfr. artigo 4º do Decreto-Lei n.º 498/88, de 30 de Dezembro), não têm outro fim que não seja proporcionar a escolha do(s) candidato(s) mais capaz(es). A livre escolha não é um acto arbitrário, mas uma operação de selecção simplificada, visando o recrutamento para determinado tipo de cargos, designadamente os que apelam a uma relação de solidariedade institucional.

16. Não se deve perder de vista que os métodos de selecção não são processos milagrosos e infalíveis, dada a margem de aleatoriedade a que estão sujeitos. Como se sabe, as mesmas provas aplicadas ao mesmo universo de candidatos em dias diferentes não produzem os mesmos resultados globais. Para além disso, há métodos de selecção mais propícios que outros a manipulações de resultados. É justamente o caso da avaliação curricular e da entrevista, como se comprova pelos inúmeros acórdãos dos tribunais administrativos, anulando actos da Administração, com fundamento numa utilização daqueles métodos em desconformidade com a lei. Não nos deteremos neste aspecto, uma vez que a jurisprudência administrativa é por demais eloquente no que respeita a esta questão.

17. Se o concurso é considerado o único meio idóneo para o recrutamento dos dirigentes a que nos vimos referindo, entregar a amadores o encargo de proceder à selecção dos candidatos configura uma contradição entre os dois termos. A entrevista profissional de selecção é um método complexo, que exige a aplicação de um saber especializado, não se confundindo com uma apreciação subjectiva, de natureza reactiva, estimulada por impressões e impulsos. É necessário dominar as técnicas de entrevista, não se podendo afirmar que a grande maioria dos membros dos vários júris possua as qualificações indispensáveis para aplicar este método (cfr. artigo 4º, n.º 3, in fine, do Decreto-Lei n.º 231/97, de 3 de Setembro). Mesmo, no que se refere à avaliação curricular, a definição dos critérios de avaliação e dos seus parâmetros, a determinação dos factores de ponderação, a adaptação e conversão dos critérios ao universo concreto dos candidatos não são meras operações ditadas pelo bom senso, mas técnicas que relevam da psicologia, da estatística e da sociologia.

18. Tendo presente que o Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, na sua versão original, permitia o recrutamento por concurso, se fosse essa a opção da entidade competente (cfr. a primitiva redacção do artigo 4º, n.º 3, deste diploma), o objectivo da Lei n.º 13/97, de 25 de Maio, é o de afastar a possibilidade de o recrutamento se fazer por escolha.

19. Dir-se-ia que este sistema se revelou inadequado, ao longo dos cerca de 18 anos em que vigorou (recorde-se que o Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de Junho, já acolhia a livre escolha como forma principal de recrutamento dos cargos dirigentes), inadequação que se teria traduzido na nomeação de um número muito significativo de dirigentes incompetentes, verificada em sede de avaliação do seu desempenho.

20. Numa abordagem empírica da situação, uma vez que não se conhecem estudos sobre esta matéria, não é essa ideia que prevalece, examinando os movimentos de prorrogação e de cessação das comissões de serviço de directores de serviços e chefes de divisão, ao longo do período atrás referido.

21. Mais importante, porém, que esta análise empírica, é o facto de nenhuma das entidades promotoras da alteração convocar como fundamento da mudança a má qualidade da gestão dos serviços por incompetência das chefias intermédias.

22. Como é óbvio, houve más ou sofríveis chefias intermédias, do mesmo modo que outras tiveram bons ou excelentes desempenhos.

23. Compulsando os trabalhos preparatórios, verifica-se que a alteração legislativa se integra no objectivo de despartidarizar e desgovernamentalizar a Administração Pública, visando eliminar o clima de suspeição que associa a nomeação dos cargos dirigentes da Administração à satisfação de clientelas partidárias, através de um sistema dotado de transparência, que dignifique e motive os recursos humanos da Administração, premiando o mérito e a competência.

24. Se se rejeitou ficar refém de uma fantasmática suspeição, no que toca aos cargos dirigentes de topo, pareceria justificar-se a adopção de idêntica postura relativamente às chefias intermédias. Nenhuma explicação, todavia, é adiantada para justificar esta (aparente) dualidade de critérios. No entanto, quem assim legisla parece não confiar nos políticos, virtuais titulares de cargos governativos, ou nos directores-gerais, que têm a confiança política dos membros do Governo.

25. O objectivo de despartidarizar a Administração confronta-se com o direito de acesso a cargos públicos e ainda com o direito de participação em partidos políticos, com consagração constitucional, nos artigos 50º, n.º 2 e 51º, n.º 1, do diploma fundamental.

26. A circunstância de um funcionário ser militante ou simpatizante do partido do Governo não pode constituir um impedimento para a sua nomeação para um cargo dirigente da Administração Pública, embora essa condição não possa, nem deva erigir-se como factor de preferência no provimento desses cargos. Não se vislumbra qualquer perversidade do sistema se se verificar que a alternância de partidos no poder determina alguma oscilação na inclinação partidária dos dirigentes nomeados, até porque os funcionários da Administração não podem actuar neste âmbito ao serviço de interesses partidários, como se colhe do disposto no artigo 266º da Constituição.

27. A desgovernamentalização é um objectivo impossível da alcançar, desde logo porque o governo é o órgão superior da Administração Pública (cfr. artigo 185º da CRP). No entanto, assumindo o termo em sentido restritivo, esse propósito seria exequível, podendo a lei atribuir aos directores-gerais competência própria mas não exclusiva para nomear os directores de serviço e chefes de divisão (cfr. artigo 202º da CRP), libertando o Governo deste “ónus”, que parece ser tão indesejado.

28. A nomeação de uma pessoa para um cargo dirigente não pode servir para premiar o mérito e a competência de um funcionário, pois não é essa a finalidade do provimento. Um funcionário competente e dedicado não é forçosamente um dirigente capaz. As funções dirigentes são substancialmente diversas das que os funcionários integrados em carreiras exercem. Nessa medida, o mérito e a competência revelados por um funcionário, no desempenho da sua actividade pretérita são apenas um dos factores a ter em conta na ponderação da sua eventual nomeação para um cargo de chefia.

29. O concurso como único modo de recrutamento dos gestores intermédios da Administração Pública retoma métodos caracteristicamente burocráticos de desresponsabilização das hierarquias. Por outra parte, o modelo de selecção adoptado não possui aptidão para arredar o clima de suspeição que se quer ver banido, antes contribuirá, decisivamente, para o fomentar, uma vez que os métodos utilizados são susceptíveis de serem afeiçoados, antes ou durante o procedimento, ao currículo e perfil de um determinado candidato. Para quem trabalha em recrutamento ou já participou num júri esta é uma verdade insofismável. Não significa isto que se deva abandonar a aplicação destes métodos de selecção, só porque existe a possibilidade da sua manipulação.

30. Na senda da burocratização, teremos ciclicamente o envolvimento de 11883 a 19805 dirigentes da Administração Pública, participando em 3961 concursos para provimento de directores de serviços e chefes de divisão, repartidos por três anos, o que perfaz uma média de 3,4 concursos por cada um dos 4679 dirigentes que efectivamente existem.

31. A habituação ao novo sistema de recrutamento conduzirá inelutavelmente a que os potenciais candidatos (todos os técnicos superiores com mais de seis ou quatro anos de experiência profissional , conforme se trate de lugares de director de serviços ou de chefe de divisão) se transformem em incansáveis opositores aos concursos, posto que, rapidamente, concluirão que nada têm a perder com esse intento.

32. Assim, para além, dos 4679 dirigentes, haverá cerca de 15000 funcionários a participar nos 1300 concursos que se realizarão anualmente, transformando o espaço convivencial da organização num mero espaço institucional, sem dimensão humana.

33. Durante estes períodos (cuja duração dificilmente será inferior a seis meses, sem levar em conta as fases de recurso), a organização voltar-se-á sobre si própria, prestando menos atenção às solicitações externas que, embora correspondam ao exercício das suas atribuições, são alheias aos interesses específicos da instituição.

34. Uma última reflexão se impõe, quando se cria uma classe de dirigentes de primeiro nível, com um grau de legitimação superior ao dos dirigentes de topo. Estes poderão ter a confiança política do Governo, mas não possuem uma certificação, outorgada por uma entidade dita isenta e imparcial, que lhes reconhece mérito, competência e isenção. Sobre os primeiros recai a suspeição de terem sido escolhidos pela sua filiação político-partidária, os segundos estão acima de qualquer suspeita. A situação ora criada consubstancia uma inversão estatutária, que não se conforma com a estrutura hierarquizada da Administração Pública, devendo consequentemente ser banida.

35. Verifica-se, agora, com a publicação da Proposta de lei n.º 189/VII, no Diário da Assembleia da República, II série-A, n.º 62, de 25 de Julho último, que o Governo parece comungar das preocupações explicitadas nesta Recomendação, no que respeita aos problemas de funcionamento e de gestão dos serviços, gerados pela introdução dos concursos como única via de recrutamento das chefias intermédias da Administração Pública. Os artigos 4º, n.ºs 2, 3, 9, 10 e 12, 18º, n.º 5, 21º, n.º 3 e 39º, n.º 8 visam criar válvulas de escape à sufocação imposta pelo novo regime, criando um conjunto de excepções que, relativamente ao seu campo de aplicação, acabarão por se substituir à regra geral.

36. Pelo razões técnicas acima explicitadas, bem como pelas projecções ensaiadas da aplicação do novo sistema de recrutamento dos directores de serviços e dos chefes de divisão, julga-se que seria aconselhável a revogação da Lei n.º 13/97, de 25 de Maio.
Assim, nos termos do artigo 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO,
A revogação da Lei n.º 13/97, com excepção do artigo 1ª, na parte em que altera a redacção do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro.
Solicito a Vossa Excelência se digne pôr à disposição dos Grupos Parlamentares uma cópia deste documento, que, também, farei chegar ao conhecimento de Sua Excelência o Primeiro Ministro, atenta a proposta de lei que, sobre a matéria, o Governo apresentou à Assembleia da República.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel