Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia

Rec. nº 10/A/98
Proc.:R-4233/96
Data:1998.03.05
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – DEMOLIÇÃO – INEXECUÇÃO ADMINISTRATIVA – SUSPENSÃO – ILEGALIDADE – PRINCÍPIO DA IRRENUNCIABILIDADE DA COMPETÊNCIA.

Sequência: Não Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Em queixa que me foi dirigida, contestava o Sr. L… a inexecução administrativa de ordem de demolição de um muro dirigida em Fevereiro de 1987 ao Sr. A…

2. Contestava o reclamante a omissão das medidas adequadas a promover a execução do despacho do Exmo. Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, datado de 17 de Fevereiro de 1987, que ordenou ao proprietário do lote n.º 152, do loteamento titulado pelo alvará n.º 51/79, que fosse efectuada, no prazo de oito dias, contados a partir da respectiva notificação, a demolição do muro de vedação do referido lote.

3. Fundamentou-se a ordem de demolição na desconformidade da implantação do muro com aquela que constava do alvará de loteamento e do projecto submetido a licenciamento municipal de obras particulares.

4. Impugnado contenciosamente o acto, veio o Supremo Tribunal Administrativo, por Acordão de 14 de Fevereiro de 1995, a negar provimento ao recurso.

5. Entre a matéria de facto apurada pelo Tribunal, ficou provado que o muro contestado havia sido implantado em área de terreno que, nos termos da operação de loteamento, faz parte do lote contíguo, tendo sido, por isso, a obra implantada em desconformidade com as condições do respectivo loteamento.

6. A fim de permitir a instrução do processo, foi o Exmo. Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia inquirido sobre as razões que obstavam a que, nos termos do disposto nos arts. 149º e ss. do Código do Procedimento Administrativo, fosse determinada a execução coerciva da ordem de demolição, dando-se sequência ao procedimento regulado no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

7. Em resposta, informou o antecessor de V. Exa. que, por despacho de 29.09.1987, havia sido suspensa “a ordem de demolição do muro até que a demarcação entre os lotes 151 e 152, conflito privado de propriedade e posse, se mostrasse judicial ou extrajudicialmente resolvido”. Subjacente à suspensão deste acto estaria a preocupação de se saber com exactidão onde seria implantado o novo muro, uma vez demolido o existente.

8. Manifestamente carecida de fundamento se apresenta tal motivação, uma vez decorrer a implantação da construção, tão só, das plantas de implantação anexas ao alvará de loteamento e à licença de construção.

9. Pelos motivos expostos, não procede a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia à execução coactiva da ordem de demolição, permitindo a subsistência, por tempo indefinido, de uma obra formal e materialmente ilegal, porquanto desrespeita os condicionamentos do respectivo licenciamento e se mostra insusceptível de legalização por atentar contra o alvará de loteamento.

10. Por seu turno, não se vislumbra qual o interesse público que norteia a abstenção camarária em questão. A ordem jurídica não se compadece com a subsistência de obras ilegais: não se mostrando viável a legalização, mais não resta que ordenar a demolição das construções (art. 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, e art. 58º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro).

11. Com efeito, apenas a demolição garante a completa reposição da legalidade urbanística e a adequada reintegração dos interesses legítimos de terceiros, sendo a única medida de tutela da legalidade urbanística possível no caso em presença.

12. Nos termos do art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, compete às câmaras municipais ordenar “a demolição ou o embargo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1º a 7º”. Também o art. 58º do Decreto?Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, prevê poderes de demolição “das obras realizadas sem a respectiva licença ou em desconformidade com ela, quando for caso disso, por parte do presidente da câmara municipal”.

13. Trata-se, como decorre do enunciado literal dos preceitos citados, de um poder aparentemente discricionário. O município através dos seus órgãos competentes avalia os pressupostos de facto e decide em ordem à boa prossecução do interesse público local sobre o mérito da demolição da obra ilegal.

14. Com efeito, “se a obra apesar de não licenciada corresponder às exigências materiais da ordem jurídica não há interesse público na sua demolição” (MONTEIRO, Cláudio, O embargo e a demolição de obras no direito do urbanismo, FDL, 1995, p.147).

15. Contudo, certo é que este poder discricionário sofre uma importante limitação por via de quanto estabelece o art. 167º do RGEU. Ali se reduz a discricionariedade a uma de duas alternativas: ou o presidente da câmara municipal ordena a demolição da obra ilegal ou reconhece que a mesma é “susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”, devendo para tal efeito, obter do interessado a legalização. O exercício do poder conferido no art. 167º irá produzir uma vinculação no poder de domolir.

16. Por outras palavras, nada resta à câmara municipal ou ao presidente se não ordenar a demolição da obra, caso esta não possa ou não venha a ser legalizada.

17. É esta a posição que tem ganho crescente acolhimento no Supremo Tribunal Administrativo, ilustrada no Acordão de 11.6.1987 (in Acordãos Doutrinais, 322, pp. 1176 e segs) e no Acordão de 6.11.1990 (Procº 28440, in AJ, n.ºs 13-14, p.35). Neste aresto pode ler-se que “caso os particulares ou pessoas colectivas procedam a construções sem licença ou com inobservância das condições desta, dos regulamentos, posturas municipais ou planos directores, de urbanização ou de pormenor em vigor, devem as câmaras municipais, no exercício de um poder vinculado, ordenar a demolição dessas construções”.

18. Isto significa, em conclusão, que caso não seja ou não possa ser exercido o poder de legalização a posteriori (art. 167º do RGEU), a discricionariedade optativa do art. 165º do RGEU – entre ordenar a demolição ou legalizar – fica reduzida a um poder-dever de ordenar a demolição. Neste mesmo sentido se deve entender o art. 58º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, ao atribuir ao presidente da câmara o poder de ordenar a demolição, quando “for caso disso”.

19. No caso em apreço a obra é ilegalizável porquanto a sua implantação se mostra desconforme com a que lhe é atribuída pelo alvará de loteamento, pelo que a V. Exa. mais não resta que promover a execução do despacho de 17.2.1987 que ordenou a demolição do muro.

20. Objectará V. Exa. que os efeitos de tal ordem se encontram suspensos até integral resolução do conflito sobre os limites dos lotes do infractor e do queixoso em virtude do despacho de 29.9.1987. Não permitem, porém, as competências legalmente atribuídas às câmaras municipais, em matéria urbanística, a renúncia ao exercício de um poder por razões de índole exclusivamente privatística, para mais tratando-se de um poder vinculado.

21. Aos municípios não compete exercer poderes de polícia administrativa da propriedade privada. No âmbito do procedimento de licenciamento municipal de obras particulares, apenas compete à câmara municipal, uma vez apresentado o pedido respectivo, verificar a legitimidade do requerente (art. 14º, n.º 1, e 16º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e n.º 2, ponto 1, alínea b), da Portaria n.º 1115/B/94, de 15 de Dezembro). Para este efeito, do requerimento deve constar a indicação da qualidade de proprietário, usufrutuário, locatário, titular do direito de uso e habitação, superficiário ou mandatário, comprovada através de documento adequado.

22. O requerente deve, assim, fazer prova de que é titular de um direito relativo ao prédio objecto de intervenção, sob pena de rejeição liminar do pedido (art. 16º do Decreto?Lei n.º 445/91). A exigência exposta é de índole meramente formal. Comprovada a legitimidade, a câmara não pode obstar, por esse motivo, ao recebimento do pedido nem aferir da validade do título invocado pelo particular no domínio das relações jurídico-privadas, sob pena de estar a usurpar poderes que estão constitucionalmente atribuídos aos Tribunais comuns.

23. Assim, à câmara municipal não cumpre verificar, em concreto, se os limites do prédio são ultrapassados, nem tomar posição quanto a eventuais conflitos entre várias pessoas que, porventura, apresentem título jurídico relativo ao mesmo prédio. E não cumpre fazê-lo, repito, por se tratar de matéria reservada, em exclusivo, aos Tribunais, de acordo com o disposto no art. 202º, n.º 2, da Constituição.

24. No que ao caso concerne é irrelevante para a reposição da legalidade urbanística, a resolução do conflito de propriedade sobre os limites dos lotes, porquanto a implantação do muro não pode ser outra que aquela que se encontra definida pelos instrumentos urbanísticos vigentes: o alvará de loteamento e a licença de construção.

25. Verifica-se, assim, ser ilegal o acto de suspensão da ordem de demolição. Através deste, renunciou o Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia ao exercício das competências legais em matéria de demolição de obras acima descritas, obstando à reintegração da legalidade urbanística infringida.

26. Rege no que se refere à irrenunciabilidade da competência o art. 29º do Código do Procedimento Administrativo, que sanciona com a nulidade qualquer acto que tenha por objecto a renúncia à competência. Estando a Administração adstrita à prossecução do interesse público, não pode o titular da competência abdicar ou desistir de exercer os poderes que a lei lhe atribui.

27. Dir-se-á que, no caso em análise, o Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia não abdicou das respectivas competências, mas, apenas, diferiu no tempo, transitoriamente, o respectivo exercício. Não será assim, uma vez que se mantém a ordem de demolição suspensa desde 1987, mas mesmo que assim sucedesse, nada legitima que razões de direito privado impeçam o recurso aos poderes camarários de direito público, em matéria de execução de actos administrativos.

28. Como se decidiu no Acordão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Junho de 1987 (cit., p. 1181), ao indeferir um pedido de legalização de uma obra, a câmara municipal fica “obrigada a ordenar vinculadamente a demolição, por força do art. 167º do RGEU”. E a ordená-la sem a faculdade de escolher o momento mais oportuno de agir, porquanto o juízo que, com base em critérios técnicos, formulou acerca da obra, não se coadunava com a abstenção, por esta afectar desde logo os interesses colectivos de estética urbana que a competência conferida às câmaras municipais visa proteger”.

29. Pelas razões expostas, urge definir a situação e promover a execução da ordem de demolição. Como V. Exa. de certo não deixará de reconhecer a manutenção de uma situação de facto precária por um período de tempo demasiado longo (onze anos) acaba por ocasionar lesões no interesse público e nos interesses legalmente protegidos de terceiros, contribuindo para a ineficácia da acção administrativa e para a quebra de respeito da autoridade das câmaras municipais por parte dos infractores.

II-Conclusões

Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, n.º 1, da CRP), RECOMENDO,
A V. Exa:

1º Que, nos termos do disposto no art. 134º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, seja declarada a nulidade do despacho de 29.09.1987, do Exmo. Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia que ordenou a suspensão da ordem de demolição do muro contestado;
2º Que seja promovida a execução coactiva da demolição da referida construção, nos termos do disposto no art. 157º do Código do Procedimento Administrativo, dando?se início ao procedimento constante do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL