Ministro da Educação

Proc.R-1255/98
Rec. n.º 10/B/98
1998.09.16

1. Foram recebidas nesta Provedoria de Justiça diversas reclamações contestando as alterações que o ofício-circular em epígrafe veio introduzir na estrutura curricular do Ensino Secundário, por ter vindo criar uma situação de desigualdade entre os alunos que, a partir do próximo ano lectivo, iniciam o curso secundário em alguns dos seus agrupamentos.

A questão é a seguinte:
O Decreto-Lei n.º. 286/89, de 29 de Agosto, que definiu uma nova estrutura a aplicar aos cursos do ensino básico e secundário, dando seguimento ao que a esse respeito dispõe a Lei de Bases do Sistema Educativo, determinou a obrigatoriedade da inscrição, no ensino secundário, numa segunda língua estrangeira curricular quando, no ensino básico, tiver sido estudada uma única língua estrangeira (cfr. artigo 5º, n.º 4).

Nesse contexto, estabeleceu o mesmo diploma que os alunos que estivessem a iniciar o terceiro ciclo do ensino básico poderiam optar por iniciar, nessa altura, os estudos de uma segunda língua estrangeira ou, alternativamente, inscreverem-se em Educação Musical ou Educação Tecnológica. Os alunos que, naquele nível de ensino, não optassem pela disciplina de Língua Estrangeira II, teriam obrigatoriamente de a frequentar durante todo o triénio correspondente ao ensino secundário, que seria aí inserida na componente de formação específica e ministrada a par da Língua Estrangeira I, integrada na componente de formação geral.

A prática veio entretanto demonstrar algumas deficiências do Decreto-Lei n.º. 286/89, tornando necessária a adopção de correcções várias, que permitissem o aperfeiçoamento do sistema por si introduzido. Nessa medida, veio o Despacho n.º 134/ME/92, de 21 de Julho do mesmo ano, estabelecer a alteração de alguns aspectos do Decreto-Lei referido.
Um desses aspectos foi exactamente o modo como a Língua Estrangeira II passaria a estar inserida no ensino secundário (nos casos em que esta disciplina não fosse objecto de opção no 3º ciclo do ensino básico). Assim, os alunos que, no ensino secundário, tivessem de frequentar a disciplina de Língua Estrangeira II poderiam optar por uma de três alternativas (cfr. ponto 7):
a) a que estava já prevista no Decreto-Lei n.º 286/89, integrando-se a disciplina na componente da formação específica, permanecendo a Língua Estrangeira I a ser ministrada no âmbito da componente da formação geral;
b) frequentar a disciplina de Língua Estrangeira II no âmbito da componente de formação geral, em substituição da disciplina de Língua Estrangeira I (que passaria, neste caso, a ser ministrada apenas até no 9º ano de escolaridade); e
c) frequentar a disciplina de Língua Estrangeira II integrada na componente de formação técnica, em substituição de uma outra qualquer disciplina.

Verifica-se portanto, que o Despacho n.º 134/ME/92 inovou em relação ao Decreto-Lei n.º 286/89, designadamente ao permitir a inserção da disciplina de Língua Estrangeira II nas componentes de formação geral ou técnica e não apenas, como até aí, na componente de formação específica, permitindo ainda que essa inserção se fizesse à custa de outras disciplinas que até aí integravam essas componentes. O enquadramento decorrente do Despacho n.º 134/ME/92 permaneceu inalterado até à formulação do ofício-circular n.º 36/98, do Departamento do Ensino Secundário. De facto, esta Circular veio transmitir aos serviços instruções para, a partir do ano lectivo de 1998/99, se passar a aplicar o Decreto-Lei n.º 386/89, no que se refere à inserção de Língua Estrangeira II no ensino secundário, suprimindo portanto as opções disponibilizadas pelo Despacho n.º 134//ME/92.
Ora, é a propósito desta nova orientação dada aos serviços que se suscita a questão aqui apreciada, já que a integração da disciplina de Língua Estrangeira II na componente de formação específica dos diversos planos de estudo do ensino secundário, não se fez em substituição de nenhuma das disciplinas já inseridas nessa componente, mas a acrescer às mesmas.

Em consequência, os alunos que, no ensino básico, não tenham optado pela frequência da disciplina de Língua Estrangeira II – e que previam poder realizá-la no ensino secundário nos termos das opções disponibilizadas pelo Despacho n.º 134/ME/92 – foram confrontados com a necessidade de realizarem a disciplina em causa adicionalmente às restantes disciplinas do agrupamento a que venham a pertencer.
Ficaram desse modo prejudicados relativamente aos seus colegas que tenham optado pela disciplina de Língua Estrangeira II no ensino básico, uma vez que, relativamente a estes últimos, irão ter mais uma disciplina no ensino secundário, de quatro horas semanais e com necessidade de, no final do 12º ano, realizarem o respectivo exame nacional (por ser esse o processo avaliativo correspondente às disciplinas trienais do ensino secundário).

2. Da enunciação dos termos em que o problema se coloca, ressaltam dois aspectos a propósito dos quais o ofício-?circular n.º 36/98 merece ser contestado: o primeiro, relativo a condicionalismos de natureza formal; o segundo, relativo às consequências materiais que as orientações contidas na Circular vieram gerar.

3. De tudo quanto ficou exposto, ressaltam algumas ilegalidades de carácter formal de que padecem quer o Despacho 134/ME/92, quer o ofício-circular n.º 36/98. O Despacho porque alterou um regime constante de um diploma, o Decreto-Lei n.º 386/89, que lhe era hierarquicamente superior, violando nessa medida o princípio da hierarquia das fontes, consagrado no artigo n.º 112.º da Constituição da República Portuguesa – circunstância que, de todo o modo, não obstou à sua plena vigência e aplicabilidade, por a sua inconstitucionalidade não ter sido nunca suscitada ou declarada. Por outro lado, à Circular poderão ser também reportados outros vícios de carácter formal. Com efeito, na medida em que alterou o regime que a precedeu, a Circular reveste uma natureza regulamentar externa: regulamentar, por introduzir um comando legal aplicável de forma geral e abstracta; externa por, ainda que formalmente dirigida aos serviços, produzir directamente efeitos na esfera jurídica dos particulares, independentemente de qualquer intermediação nesse sentido por parte da Administração.
Nesse contexto, não se pode considerar ter sido a forma utilizada para dar corpo à alteração do regime a mais correcta e adequada. Não foi a mais correcta uma vez que, considerando a natureza e o âmbito de aplicação das suas disposições, deveria ter sido observada uma das formas que a Lei n.º 6/83, de 29 de Julho, reserva para os diplomas normativos, designadamente para os regulamentos. Mas não foi, sobretudo, a mais adequada uma vez que, sendo o ofício-circular um instrumento interno da Administração, destinado essencialmente a fornecer instruções aos serviços, não carece de qualquer publicação oficial.

Ora, a inexistência de qualquer publicidade , que não seja a mera afixação – temporária e eventual – nas escolas, é francamente censurável quando se tenham presentes as implicações curriculares que a aplicação da Circular representa para um número significativo de alunos.
Esse juízo é aliás reforçado pelo facto de o regime que a Circular veio afastar constar de um diploma publicado em Diário da República, aconselhando a boa técnica legislativa que qualquer alteração ao mesmo se fizesse com observância daquele procedimento, em ordem ao respeitos dos princípios da certeza e segurança jurídicas.
É portanto forçoso concluir que o enquadramento jurídico-formal do modo como a disciplina da Língua Estrangeira II se insere no ensino secundário está, desde há muito, viciado por diversas irregularidades que urge rectificar – podendo essa rectificação suceder por ocasião da reforma curricular recentemente anunciada por esse Ministério, a realizar num futuro próximo, por via legislativa.

4. Mas não é só na vertente formal que a Circular a que me tenho vindo a referir merece crítica, sendo que também noutros aspectos apresenta a mesma deficiências que importa corrigir.
Atenho-me agora ao objecto das reclamações propriamente dito, no âmbito do qual é a Circular contestada apenas na medida em que abrange os alunos que, no último ano lectivo, frequentavam o terceiro ciclo do ensino básico e que, a partir do corrente ano lectivo e durante os próximos anos, venham a ingressar no ensino secundário.
Assim sendo, a apreciação do problema que neste ponto se realizará restringir-se-á a esses casos. Relativamente aos mesmos, afigura-se ter a Circular eficácia retroactiva, ainda que não explícita.
Com efeito, embora aplicando-se apenas aos alunos que iniciarão o ensino secundário a partir do ano lectivo que agora se inicia, a verdade é que o seu regime se irá repercutir sobre uma situação constituída em data bastante anterior à da sua emissão.
De facto, a configuração curricular do ensino secundário no que se refere à aprendizagem das línguas estrangeiras decorre, em grande medida, da opção disciplinar tomada no início do terceiro ciclo do ensino básico. Ora, é sobre essa configuração que a Circular veio agora incidir.

Assim,
A Circular fez corresponder à opção pelas disciplinas de Educação Tecnológica ou de Educação Musical um regime curricular novo, significativamente mais desfavorável do que o anterior, por via do qual ficam os seus destinatários grave e objectivamente prejudicados.
Desse modo, a Circular alterou um dos pressupostos essenciais subjacentes àquela decisão, de tal modo que é razoável supor que, a ser esta situação conhecida quando a opção disciplinar foi tomada, nenhum aluno do ensino básico que tencionasse prosseguir os seus estudos no ensino secundário, optaria pelas disciplinas de Educação Tecnológica ou de Educação Musical, indo naturalmente preferir a Língua Estrangeira
II.
É óbvio que, nesse contexto, os alunos que optaram por Educação Tecnológica ou por Educação Musical se vêem agora profundamente defraudados nas suas expectativas. Nessa medida, a aplicação do regime constante da Circular a esses alunos não poderá deixar de se considerar ilegítima, por violar o princípio da confiança, decorrente do Estado de direito democrático (cfr. artigo 2.º da Constituição). Por via deste princípio é garantido aos cidadãos um mínimo de certeza nos direitos e nas expectativas que lhe sejam juridicamente criados (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 93/84, no BMJ n.º 355, 135-156; 150).
Ocorre violação deste princípio quando a segurança jurídica a que o mesmo confere protecção seja afectada de um modo inadmissível por via de uma actuação da Administração qualificada de arbitrária ou desproporcionada (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 365/91, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 19, 143 ss.).
Ora, é exactamente esta situação que se verifica no caso em apreço: existe por um lado uma lesão intolerável na situação escolar dos alunos implicados, já sobejamente definida; por outro lado, o benefício para o interesse público que o regime que a circular veio implantar representa, não é de todo proporcional à lesão sofrida por estes alunos.
Violando o princípio da confiança, a Circular viola também o princípio do Estado de direito democrático, de onde aquele decorre, contido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

5. Do exposto resulta que, sendo embora desejável a reformulação da base legal a que se reporta a inserção curricular da Língua Estrangeira II no ensino secundário para os alunos que não tenham frequentado essa disciplina no ensino básico, é imperativo que, desde já, seja rectificada a injustiça decorrente da aplicação do ofício-circular n.º 36/98, salvaguardando-se as expectativas dos alunos prejudicados.
Nestes termos, RECOMENDO,
a Vossa Excelência, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, o seguinte:
a) que o ofício-circular em apreço seja revogado, repondo-se para o ano lectivo 1998-1999 a regulamentação resultante da aplicação conjunta das disposições do Decreto-Lei n.º 386/89, de 29 de Agosto e do Despacho 134/ME/92, de 21 de Julho de 1992;
b) que seja reformulado o enquadramento legal a que se reporta a inserção da disciplina de Língua estrangeira II, eventualmente no âmbito da reforma curricular recentemente anunciada por esse Ministério, rectificando-se as ilegalidades que ao mesmo ficaram atrás apontadas.
c) que, caso venha a ser retomado futuramente e por via legislativa, o regime que o Ofício-circular pretendeu aplicar, fiquem devidamente salvaguardadas as legítimas expectativas dos alunos que já tenham, nessa ocasião, iniciado o terceiro ciclo do ensino básico.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA
Menéres Pimentel