Governador Civil do Distrito de Beja
Número :52/A/98
Processo:R-4843/96;R-3872/97(apenso)
Data:31.07.1998
Área: A1

Assunto:AMBIENTE – ANIIMAIS – PROTECÇÃO DE ANIMAIS – TAUROMAQUIA – TOUROS DE MORTE – TUTELA JURÍDICA PENAL – COSTUME CONTRA LEGEM – PRINCÍPIO DO PRIMADO DA LEI – PREVENÇÃO DO CRIME – PRINCÍPIO DA SUBORDINAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO A LEI – MEDIDAS DE POLÍCIA.

Sequência:Não acatada.

I-Dos Factos

1. Em Barrancos, integrado nas festas de Nossa Senhora da Conceição – que têm o seu início a 28 de Agosto de cada ano -, e durante dois ou três dias, vacas e touros vão sendo soltos pelas ruas da vila, sendo alguns deles concentrados frente a uma bancada improvisada numa das praças da localidade, terminando a lide com a morte das reses (em geral duas vezes por dia) que são, então, consumidas no decurso dos festejos que se prolongam pela noite.

2. Deslocam-se, habitualmente, ao local, para assistir a esta exibição, vários milhares de pessoas (cerca de seis mil) vindas do país e de Espanha, onde a prática de touros de morte é consentida.

3. Alertado para o facto pela delegação de Viseu da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, veio esse Governo Civil, já em 13 de Agosto de 1996 (ofício n.º …) invocar o desconhecimento de tal intenção comprometendo-se, não obstante, a proceder a averiguações sobre a matéria.

4. Certo é que os factos se repetiram nas festas locais em honra de Nossa Senhora da Conceição em finais de Agosto de 1996 e de 1997.

5. Tendo sido instado por este Órgão do Estado, pela primeira das vezes através do ofício n.º …, a informar, circunstanciadamente, quanto às medidas tomadas com vista a evitar o sucedido, veio V. Exa. responder, em 3 de Abril p.p., que não constam dos registos quaisquer pedidos de autorização para a lide de touros de morte, nem para os anos transactos, nem para o ano em curso, acrescentando que se tal vier a acontecer se procederá às necessárias averiguações.

II-Dos Fundamentos

6. Fazer depender do pedido de autorização para a lide de touros de morte a tomada de medidas que impeçam a repetição do sucedido, parece-me postura de difícil compreensão e eficácia.

7. Não se vislumbra que, com efeito, alguém venha a formular tal pedido de autorização sabendo que o acto que pretende praticar é criminalmente punido.

8. Verifica-se, na verdade, que o facto de aqueles animais serem dotados de sensibilidade foi considerado condição suficiente para que merecessem tutela jurídica penal.

9. A conduta em apreço já vem sendo incriminada desde a publicação do Decreto n.º 15 355, de 14 de Abril de 1928 (e ainda em vigor), que proíbe, absolutamente, as touradas com touros de morte realizadas em qualquer recinto improvisado para esse fim.

10. Ali se prevê a aplicação aos intervenientes (“proprietário” dos animais, “empresário” e “matador”) das penas determinadas no § único do art. 1º (note-se que para o “matador” a pena poderá ascender aos três anos de prisão).

11. Mais ali se determina “a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução do presente decreto com força de lei pertencer, o cumpram e façam cumprir” (art. 3º).

12. Acresce, que o facto de a carne dos animais abatidos ser destinada ao consumo do público faz com que a conduta descrita, porque perpetrada fora de matadouro licenciado ou recinto a esse efeito destinado pelas autoridades competentes, seja, ainda, susceptível de se enquadrar no crime de abate clandestino p. e p. no art. 22º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro (que contém o regime das infracções antieconómicas e contra a saúde pública).

13. Faço notar que nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Animal, proclamada pela UNESCO, em 15 de Outubro de 1978, “todo o acto que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é, um crime contra a vida” (art. 11º).

14. E é esta concepção que se reitera com a publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, quando ali se proíbem “todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se inflingir a morte” (art. 1º, n.º 1).

15. E manda este diploma, a todas as autoridades e tribunais, que adoptem “as medidas preventivas e urgentes necessárias e adequadas para evitar violações em curso ou eminentes” (art. 10º).

16. E nem se diga que a prática em apreço constitui costume a ter em conta.

17. É que, mesmo para aqueles que defendem o costume como fonte de direito (entre outros, OLIVEIRA ASCENSÃO, José de, O Direito – Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª edição pp. 220 e segs; CASTRO MENDES, João de, Introdução ao Estudo do Direito, Faculdade de Direito de Lisboa, 1977, pp. 181 e segs.) este é caracterizado como uma prática reiterada – elemento material – acompanhada da convicção de obrigatoriedade – elemento psicológico.

18. Ora, não se vislumbra, sequer, que o elemento psicológico da formação de um costume se verifique no caso em concreto.

19. É que, a pretensa tradição que estaria subjacente ao acto em apreço, além de puramente local, encontra-se em manifesta contradição com as características da arte tauromáquica portuguesa e com o sentimento geral da nossa sociedade, a quem repugna a morte pública dos touros em lide.

20. Mesmo ainda que de um verdadeiro costume se tratasse, o que, repete-se, não se verifica, certo é que a prevalência do costume contra legem não é admitida no nosso ordenamento jurídico, dada a previsão contida no art. 7º do Código Civil.

21. A ser relevante, o costume contra legem implicaria a cessação da vigência da lei.

22. Ora, a norma citada só admite a cessação da vigência da lei por efeito de outra lei que a revogue.

23. E tal preceito, sendo de direito comum, será aplicável, por natureza, e directamente, a qualquer ramo do direito, salvo se houver norma em contrário.

24. Aplicar-se-á, portanto, também, ao Direito Penal (cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, José de, ob. cit. pp. 227 e segs.).

25. De resto, nem se vê como possa admitir-se que a reiteração desta conduta seja condição suficiente para a sua justificação, em especial, num domínio onde o legislador reconheceu que o bem jurídico a proteger é de valor tal que impõe a incriminação das condutas que o atinjam.

26. Por seu turno, permitir a prevalência do costume contrário à lei não pode deixar de ser considerado como atentatório do princípio constitucional do Estado de Direito, na sua vertente do primado da lei. Princípio basilar do nosso ordenamento jurídico.

27. “A obediência às normas jurídicas é a regra geral, mediante a aceitação, voluntária ou involuntária, consciente ou inconsciente da comunidade social e por outro lado os órgãos do Estado velam pela efectiva incorporação na vida social do direito formalmente promulgado” (CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, Vol. I, 2ª edição, 1987, p. 11).

28. O princípio da subordinação da Administração à lei, comporta a necessidade de esta conformar a sua actuação com os quadros legais existentes.

29. Estão, com isso, os órgãos da Administração Pública vinculados, na sua actuação, aos princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos (art. 266º da Constituição da República Portuguesa e arts. 3º e 4º do Código do Procedimento Administrativo).

30. Alerta MARCELLO CAETANO (Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 9ª edição, 1980, pp. 1201 e seg.) para o facto de o cumprimento das leis e o respeito dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos particulares traduzir uma imposição evidente do Estado de Direito.

31. Consistindo o espectáculo em apreço num divertimento público que tem lugar ao ar livre e na via pública, a sua organização está dependente de licença do Governo Civil (art. 27º do Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro, que regula o exercício de diversas actividades).

32. Estando confiado a esse Órgão o poder de licenciar, está-lhe também confiado o poder de reprimir.

33. Por seu turno, sendo o Governador Civil o órgão que representa o Governo na área do distrito tendo a seu cargo, no exercício das funções de polícia, a defesa da ordem pública, compete-lhe tomar as providências necessárias para manter ou repor a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, requisitando, para o efeito, e se necessário, a intervenção das forças de segurança aos comandantes da PSP e da GNR, instaladas no distrito (art. 4º n.º 3, al. a), do Decreto-Lei n.º 252/92, de 19 de Novembro, que aprovou o estatuto do Governador Civil, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro).

34. FREITAS DO AMARAL, considera, até, as funções de defesa da ordem pública como “as principais funções do Governador Civil no nosso direito” (Curso de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2ª edição, 1997, p. 325).

35. E a competência é irrenunciável, não apenas na sua titularidade, como também no seu exercício (art. 29º do Código do Procedimento Administrativo).

36. “Os órgãos administrativos estão legalmente obrigados a exercer a sua competência – é um poder que se exerce por cominação funcional da lei”. É, assim, “uma constrição que impende sobre os órgãos administrativos (ou competentes em matéria administrativa) com o objectivo de garantir a prossecução do interesse público” (OLIVEIRA, Mário Esteves de, Código do Procedimento Administrativo, Almedina, Coimbra, 2ª edição, 1997, p. 192).

37. “Na medida em que a Administração não regulamenta, ou não fiscaliza a observância dos regulamentos editados, não previne ou reprime, não sanciona ou não intervém, abstendo-se na utilização dos seus poderes-deveres, multiplicam-se as possibilidades de excessos ou deformações no exercício das atividades ou no gozo dos direitos por parte da coletividade administrada, de modo a surgirem, com a força das consequências inevitáveis, prejuízos, incômodos ou lesões em relação a ponderáveis parcelas dessa mesma comunidade. As violações de massa ensejam a constatação da inércia”. (SABELLA, Walter Paulo, Justitia – Órgão do Ministério Público de São Paulo, A Omissão Administrativa como Causa de Conflituosidade Social, São Paulo, Abr./Jun. 1985, p. 70).

38. E porque a irrenunciabilidade se traduz, afinal, numa exigência basilar da legalidade administrativa, a lei veio a tipificar a denegação de justiça como comportamento que constitui ilícito criminal (art. 12º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, que determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, sanções aplicáveis e respectivos efeitos).

39. Sendo o facto em questão praticado publicamente, e em momento que já se prevê, não se vislumbram motivos que justifiquem a não adopção de medidas de polícia que impeçam a verificação daquele ilícito criminal.

40. Face ao quadro legal acabado de traçar e à crescente preocupação da nossa sociedade com a defesa do meio ambiente, o que implica o respeito pelos direitos dos animais, entendo que não será de tolerar, ainda que a pretexto de uma tradição popular, um espectáculo com as características do em apreço, onde a morte dos animais é justificada pelo simples gaúdio daqueles que a ela assistem, sem serem cumpridas, sequer, as mais elementares regras de conduta por forma a eliminar todos os sofrimentos evitáveis.

41. “O homem, representante de Deus na terra, é usufrutuário da natureza, mas este estatuto privilegiado não o autoriza a fazer tudo o que quer. Assim, se pode matar o animal para se alimentar, não está autorizado a fazê-lo sofrer. Enquanto o animal estiver vivo, o homem não pode abusar dele.” – COSTA, António Pereira da, Dos Animais (O Direito e os Direitos), Coimbra Editora, 1998, pag. 13.

III-Conclusões

São estas motivações, Senhor Governador Civil, que me aconselham dever,RECOMENDAR

a V. Exa. (ao abrigo do disposto no art. 20º, n.º 1 al. a) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril) que sejam adoptadas as medidas adequadas a evitar a repetição dos factos supra descritos e, caso ainda assim os mesmos se venham a verificar, sejam os infractores identificados, e o assunto prontamente encaminhado para as autoridades com competência específica na matéria, porque de ilícito criminal se trata.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel