Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima
Número:57/A/98
Processo:R-3172/96
Data:3.09.1998
Área:A1

Assunto:EXPROPRIAÇÃO E REQUISIÇÃO DE BENS – DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA – APROPRIAÇÃO – FORMAS DE AQUISIÇÃO DE BENS IMÓVEIS PRIVADOS – NEGÓCIO JURÍDICO OU EXPROPRIAÇÃO – ABUSO DE DIREITO.

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Em 14.07.97 formulei a V. Exa. a Recomendação n.º 56/A/97, na qual concluí pela necessidade de esse órgão autárquico regularizar a apropriação, sem título, para o alargamento de um caminho público, de uma parcela de terreno pertencente à Senhora …, através da aquisição da mesma por contrato de direito privado ou mediante expropriação por utilidade pública.

2. Respondeu V. Exa. em 30.07.97, insistindo que a queixosa concordara com a cedência da faixa de terreno, nos exactos termos da apropriação efectuada, tendo acompanhado pessoalmente a execução da obra, sem nunca manifestar qualquer oposição à mesma, a qual, de resto, teria valorizado sensivelmente a sua propriedade.

Dessa forma, a Câmara Municipal de Ponte de Lima considerou que a pretensão exposta enfermava de abuso de direito, não se dispondo a proceder a qualquer negociação para aquisição pelo direito privado, nem, tão pouco, a encetar qualquer procedimento expropriatório, e remetendo a Reclamante para os meios contenciosos comuns de defesa da propriedade privada.

3. A resposta de V. Exa., no entanto, parece esquecer que, como é referido no ponto 19 da Recomendação n.º 56/A/97, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, àquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, pelo que o pretendido abuso de direito, impeditivo de a Reclamante exercer as faculdades de defesa do direito de propriedade privada de que é titular, necessitaria de se suportar em prova bastante para permitir a essa autarquia desatender a pretensão apresentada. E essa prova, como V. Exa. reconhecerá, não foi, de todo em todo, feita, o que deixa intocados os fundamentos da Recomendação n.º 56/A/97.

4. Mas aquilo que, determinantemente, me leva a dirigir?me, de novo, a V. Exa. são as afirmações contidas na resposta à Recomendação, segundo as quais será prática usual desse órgão autárquico a promoção do alargamento de caminhos públicos sobre terrenos privados, suportada simplesmente numa manifestação do consentimento dos proprietários, em regra escrita, transmitida pelos presidentes das juntas de freguesia.

5. Conforme se refere na resposta, “dado que os recursos económicos e financeiros disponíveis na Câmara Municipal são sempre insuficientes (….), a Câmara Municipal sugere aos Senhores Presidentes da Junta, que junto dos proprietários confinantes com o caminho que se pretende alargar e melhorar, obtenham a necessária autorização por escrito (às vezes é dada verbalmente) dos referidos proprietários, que, perante a perspectiva de verem a sua propriedade economicamente valorizada por melhores acessos, normalmente cedem gratuitamente a parcela de terreno necessária ao alargamento do caminho, com a condição de verem a sua propriedade novamente vedada, o que sempre a Câmara Municipal cumpre”.

6. Julgo ter ficado suficientemente demonstrado na Recomendação n.º 56/A/97 que a aquisição de bens imóveis dos particulares por pessoas colectivas públicas só se pode fazer ou por negócio jurídico de direito privado, compreendendo a doação, ou através de expropriação por utilidade pública.

7. O recurso à expropriação por utilidade pública só pode ter lugar, de acordo com o disposto no artigo 2.º do Código das Expropriações, após esgotada a possibilidade de aquisição por via do direito privado, nos termos que referi a V. Exa. no ponto 14 da Recomendação n.º 56/A/97.

8. A aquisição de bens imóveis por via do direito privado tem de respeitar, naturalmente, os trâmites e formalidades definidos pela lei civil, nomeadamente no que toca à forma dos actos. Assim, a compra por uma autarquia ou a doação por um particular de um terreno ou de uma sua parcela necessitam de ser celebradas por escritura pública, nos termos dos artigos 875.º e 947.º, n.º 1, do Código Civil, respectivamente, sob pena de serem nulas (artigo 220.º do mesmo diploma legal), não produzindo qualquer efeito.

9. Da mesma forma que os particulares não podem comprar e vender ou doar terrenos entre si sem que observem a forma de escritura pública prevista pela lei, os municípios, quando recorrem ao direito privado para a aquisição de um terreno, estão obrigados a respeitar essa exigência de forma, porquanto não estão a exercer poderes de autoridade, mas a actuar nos mesmos termos que os particulares. Caso a aquisição não se faça com recurso ao direito privado, os municípios terão de recorrer à expropriação por utilidade pública, a qual implica um procedimento rigoroso, incluindo a declaração de utilidade pública pelo membro do Governo competente, o que se justifica em face dos poderes de autoridade exercidos.

10. Assim, quando essa Câmara Municipal necessita de parcelas de terreno de particulares para proceder ao alargamento de caminhos públicos, não pode bastar-se com a mera redução a escrito do acordo ou com a aquiescência oral dos proprietários, para mais transmitida por um terceiro – o presidente da junta de freguesia. Não são meios idóneos para transmitir a propriedade das parcelas de terreno para o domínio do Município. A compra ou a doação das parcelas de terreno terá de fazer-se por escritura pública, conforme obriga o Código Civil.

11. Não se põem em causa os fins de interesse público que o alargamento dos caminhos públicos serve, nem os benefícios que para as populações daí advêm, mas não se pode esquecer que a prossecução do interesse público pelos órgãos da Administração Pública tem de efectuar-se em obediência à lei e ao direito (artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo).

12. Além disso, ao não respeitarem a forma exigida pela lei para a aquisição de bens imóveis, os acordos – escritos ou verbais – celebrados pela Câmara Municipal ou pelas juntas de freguesia com os proprietários do terrenos são nulos, nos termos do artigo 220.º do Código Civil, não operando a transmissão da propriedade. Sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado (artigo 286.º do Código Civil), a Câmara Municipal poderá ver-se obrigada à restituição das parcelas ocupadas, em acção de reivindicação intentada pelos proprietários, nos termos do artigo 1311.º do Código Civil, para além da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito do Município que eventualmente esteja em causa.

13. Nessa medida, a prática que essa Câmara Municipal tem vindo a seguir, no que toca à apropriação de terrenos de particulares para o alargamento de caminhos públicos, tem de ser alterada, por forma a conformar-se com o disposto na lei para a aquisição de bens imóveis.

14. Nunca é de mais ter presente o facto de o direito de propriedade privada constituir um direito fundamental (artigo 62.º, n.º 1), precavendo os seus titulares contra aquisições que se afastem dos padrões fixados na lei. Resulta da Constituição, e de modo mais nítido, com as revisões constitucionais de 1982 e 1989, que a apropriação colectiva de meios de produção e solos só pode ter lugar nos modos fixados na lei (arigo 83.º da CRP). É neste sentido que se compreende que constituam matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República “os meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público [art. 165.º, n.º 1, alínea l), da Constituição].
15. Não é de mais ter presente, ainda, que a localização sistemática do artigo 62.º da Constituição sob o Título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais) em nada afasta a aplicabilidade ao direito de propriedade privada e às restrições que o afectem do regime dos direitos, liberdades e garantias, por motivo da analogia da sua natureza (artigo 17.º, da Constituição).
16. Por quanto se expôs, não pode a Câmara Municipal de Ponte de Lima excepcionar o abuso de direito da proprietária.

II
Conclusões

De acordo com o exposto, no uso dos poderes que me são conferidos pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do provedor de justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO
Que a Câmara Municipal de Ponte de Lima altere a sua prática administrativa relativamente à apropriação consensual de bens imóveis objecto de propriedade privada, passando a celebrar a sua aquisição, por compra ou doação, através de escritura pública, nos termos dos artigos 875.º e 947.º, n.º 1, do Código Civil, respectivamente.