Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública
Número:63/A/98
Processo: P-15/98
Data:21.10.1998
Área: A5

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – MINORIAS – DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DA COR – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

Sequência: Não Acatada.

1. Como é já do conhecimento de V. Exa., em 30.07.98 determinei, ao abrigo do disposto no artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que aprovou o Estatuto do provedor de justiça, a abertura de um processo destinado a apreciar os factos noticiados nos jornais “Semanário” de 25.07.98 e “O Público” de 30.07.98 (fotocópias em anexo), que davam conta da existência de uma circular da PSP na qual se referia o seguinte:

“Nas últimas duas semanas, tem-se verificado um aumento anormal de roubos a taxistas, no bairro da Pedreira dos Húngaros, em Linda-a-Velha e nas ruas contíguas, praticados pelos próprios passageiros, todos eles negros, que, não só não pagam a corrida, como também roubam o dinheiro que aqueles possuem.

Por desconhecimento ou por excesso de confiança, alguns taxistas transportam passageiros negros, de diversas zonas de Lisboa, para o interior do referido bairro, a qualquer hora do dia ou da noite. O resultado é previsível.

A solução deste problema reside no facto de, sempre que qualquer taxista transportar indivíduos negros, independentemente da hora, para o bairro da Pedreira dos Húngaros ou ruas adjacentes, deverá passar primeiro pela Esquadra de Miraflores, para os passageiros serem identificados e ou, eventualmente serem acompanhados ao local.

Assim, solicito a V. Exa. que sejam tomadas medidas no sentido de este facto ser comunicado à Associação da classe, por forma a que os taxistas da área de Lisboa sejam informados.”

2. Em 06.08.98 foram solicitados esclarecimentos a V. Exa. em cumprimento do dever de audição prévia consagrado no artigo 34º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril. Mais precisamente, questionou-se V. Exa. a respeito das “eventuais medidas adoptadas pela hierarquia da PSP (…), designadamente no que concerne ao apuramento de eventuais responsabilidades dos agentes intervenientes” (cf. ofício n.º …).

3. Respondeu V. Exa., aliás prontamente, através do ofício n.º …, da Direcção de Ética e Disciplina Policial da PSP, no qual se referia que “a sua posição é a de obstar, na medida do que lhe for possível, a que a PSP produza tais documentos, pelo que, imediatamente após ter tomado conhecimento dos factos e pela urgência que o caso requeria, deu ordem verbalmente ao Exmº. Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa para que ficasse sem efeito o

4. Como é evidente, não posso deixar de me congratular com o teor da resposta de V. Exa., na medida em que a mesma revela que a legalidade foi prontamente reposta, como se impunha, e que é firme propósito de V. Exa. banir da PSP este tipo de comportamentos, claramente racistas e, como tal, contrários aos princípios norteadores de um estado de direito democrático baseado no pluralismo e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.

5. Com efeito, é inquestionável que a circular acima transcrita comporta uma discriminação em função da raça, terminantemente proibida pelo artigo 13º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa: todos os passageiros de raça negra – e só aqueles – que se dirijam de táxi à Pedreira dos Húngaros passam automaticamente a ser suspeitos e, como tal, devem ser identificados e/ou sujeitos a escolta policial.

6. Ora, ainda que o autor ou autores do documento em causa não se tivessem apercebido da discriminação, claramente abusiva, que o mesmo comportava, o que só por mera hipótese se admite, não podiam ou não deviam desconhecer que, nos termos da lei, a identificação dos cidadãos só é possível em determinadas circunstâncias, que não estavam preenchidas no caso em apreço. Na verdade, nos termos do artigo 250º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na versão em vigor à data dos factos, “os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de pessoas encontradas em lugares abertos ao público habitualmente frequentados por delinquentes”, dispondo o artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, que “os agentes das forças ou serviços de segurança a que se refere a Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, no artigo 14º, n.º 2, alíneas a), c), d) e e), podem exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre a mesma pessoa existam fundadas suspeitas da prática de crimes contra a vida e a integridade das pessoas, a paz e a humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado ou tenha penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional ou contra a qual penda processo de extradição ou de expulsão”.

7. Da documentação coligida pela Provedoria de Justiça resulta que a circular acima transcrita foi elaborada em … pelo Senhor Comandante da Esquadra da PSP de Miraflores e que posteriormente foi comunicada à ANTRAL, por determinação do Senhor Comandante da Divisão de Oeiras, que em … nela terá aposto o seguinte despacho: “Comunique-se à ANTRAL”.

8. Atento o exposto, há fortes indícios de que a actuação dos dois agentes mencionados, com especial destaque, claro está, para a do autor do documento, constituiu uma violação do dever de zelo a que ambos estão obrigados por força do disposto no artigo 9º do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 7/90, de 20 de Fevereiro, susceptível, como tal, de procedimento disciplinar, nos termos do artigo 20º, n.º 2, do citado Regulamento: “os factos a que possa corresponder pena serão sempre averiguados em processo disciplinar, sem prejuízo do disposto no artigo 61º”(sublinhados nossos).

Deste modo,RECOMENDO
a V. Exa., ao abrigo dos poderes que me são conferidos pelos artigos 23º, n.º 1, da Constituição da República e 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que, com urgência, atento o prazo de prescrição do procedimento disciplinar constante do artigo 55º, n.º 3, da Lei n.º 7/90, de 20 de Fevereiro, se digne ordenar a instauração de procedimento disciplinar contra o Senhor Comandante da Esquadra de Miraflores e o Senhor Comandante da Divisão de Oeiras da PSP.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel