Secretário Regional da Habitação e Equipamentos
Número:66/A/98
Processo: R-3976/97
Data: 4.11.1998
Área: Açores

Assunto:HABITAÇÃO – PROGRAMA DE APOIO À HABITAÇÃO – ATRIBUIÇÃO DE SUBSÍDIO – IRREGULARIDADES PROCESSUAIS DA ADMINISTRAÇÃO – PRINCIPIO DA BOA FÉ – VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – PRINCÍPIO DA DECISÃO.

Sequência:Acatada

I-Introdução

1. Foi dirigida ao provedor de justiça uma reclamação relativa ao valor do benefício atribuído ao senhor R… no âmbito do “Programa de Apoio à Habitação”. Era referido no texto da queixa que o interessado deveria ter recebido o montante de 2.150.000$00 (correspondente à soma de 1.550.000$00, a suportar pela Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos, com 600.000$00, a pagar pela Secretaria da Juventude, já extinta) mas que apenas recebeu a quantia de 1.550.000$00.

2. Importando saber das razões que obstaram ao pagamento da totalidade da quantia a que o senhor R… se julgava com direito, foram expedidos os ofícios n.º …; n.º …; n.º … e n.º …, dirigidos ao Gabinete de Vossa Excelência.

3. Face à absoluta ausência de resposta por parte do Gabinete de Vossa Excelência, foi enviado o ofício n.º …, ao Gabinete de Sua Excelência o Presidente do Governo Regional dos Açores, solicitando que fosse diligenciada a prestação das informações em falta.

4. Quase cinco meses após a solicitação inicial foram prestadas os esclarecimentos constantes do ofício n.º …, no qual, em suma, era dito que:
– Eram desconhecidas “as razões de facto e de direito subjacentes ao Despacho do Secretário Regional da Habitação e Obras Públicas, Transportes e Comunicações (…), datado de 23/07/96, o qual deferiu a atribuição de 1.163.000$00, correspondente a 75 % de apoio em vez dos 100 % (…)”
– “(…) a referida decisão foi tomada por um membro do anterior Governo Regional (…)”.

5. Por outro lado e relativamente ao procedimento de concessão de apoio, o mesmo ofício informava ainda que:
“a) O apoio referido (…) foi concretizado por Portaria 118/DRH/96, de 17/09 (…).
b) (…) o beneficiário solicitou que lhe fosse transmitido a razão pela qual lhe fora atribuído 75 % da comparticipação e não os 100 % e ainda que lhe fosse revisto o seu processo a fim de que fosse feita justiça (vd. carta datada de 14/11/96, mas com registo de entrada na Delegação da Ilha Terceira do Departamento Governamental em causa, de 25 de Novembro desse ano (…)”
c) Em 20/2/98 foi solicitado pelo Exmo. Director Regional da Habitação parecer jurídico o qual conclui essencialmente pelo seguinte:
– O acto administrativo referido em 1 constitui um acto definitivo e executório e, portanto, desde logo directamente recorrível contenciosamente (cfr. art. 4º do Decreto Legislativo Regional 14/95/A, de 22 de Agosto, conjugado com o artigo 25º, 28º e 29º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
– Não fossem todas as deficiências e irregularidades processuais configuradas no processo em causa (processo n.º 602/AL/91) o candidato teria direito a 100% de apoio, acrescido de 20% a título de apoio supletivo jovem. No entanto, na situação em análise, o particular não só não interpôs qualquer recurso contencioso no prazo legal, ou seja, 2 meses a contar, em última instância, da data da publicação da Portaria referida na alínea a), como a carta por este subscrita foi apresentada decorrido esse mesmo prazo (…).
Desta situação deriva que o direito que lhe assistia prescreveu”.

6. Acrescidamente (e após solicitação deste Órgão do Estado feita através do ofício n.º …)foi explicitado o sentido da afirmação “todas as deficiências e irregularidades processuais configuradas no processo em causa” nos seguintes termos:

“Grosso modo, subjacente ao parecer jurídico solicitado, foram configuradas as seguintes deficiências e irregularidades processuais:
A-Falta de fundamentação da decisão, quer quanto aos critérios de avaliação do imóvel, quer quanto à decisão propriamente dita.
B-Falta de decisão no prazo legalmente estipulado, a qual, por seu turno, levaria ao indeferimento tácito.
C-Inexistência de duas avaliações do imóvel objecto de candidatura, não constando, como referido em A, os critérios de atribuição dos respectivos valores.
D-Inexistência de despachos de admissão do processo de candidatura, a qual torna a contagem de prazos, nomeadamente para efeitos de prescrição, de difícil determinação”.

II-Exposição de Motivos

7. O senhor R… candidatou-se, ao abrigo da disciplina contida no Decreto Legislativo Regional n.º 16/90/A, de 8 de Agosto, ao “Programa de Apoio à Habitação”.

8. Foi organizado o processo n.º …/91.

9. A informação n.º …/97, da Delegação da Ilha Terceira da Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos, expressamente refere que o interessado tinha direito à atribuição de 100% do apoio solicitado. Este mesmo documento menciona informação anterior (n.º …./96) na qual havia sido proposta a concessão “da totalidade do apoio (…) por se enquadrar no escalão dos 100%”.

10. Pelo Despacho de 23/07/96, o Secretário Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, aprovou a atribuição de apoio no valor de 1.163.000$00. Por outro lado, o interessado recebeu, ainda, o montante de 232.600$00, a título de apoio supletivo a jovens, ao abrigo do disposto no Decreto Legislativo Regional n.º 14/95/A, de 22 de Agosto (cf. Portaria n.º 238/DRH/97, do Secretário Regional da Habitação e Equipamentos).

11. Pese embora não constarem do processo aberto na Provedoria de Justiça elementos que sustentem, de forma cabal, o apuramento das quantias que o senhor R… deveria ter recebido no âmbito do “Programa de Apoio à Habitação”, parece resultar da análise da documentação entregue neste Órgão do Estado que, caso o apoio concedido tivesse sido de 100%, o interessado teria recebido 1.550.000$00. Do mesmo passo, uma vez que o valor do apoio supletivo a jovens era de 20% do subsídio atribuído, em vez de 232.600$00 (ou seja, 20% de 1.163.00$00) teria recebido 310.000$00 (20% de 1.550.000$00). No total, em vez que 1.395.600$00, teria recebido 1.860.000$00.

12. O que desde logo ressalta da descrição dos procedimentos inerentes ao processo em análise é a incongruência da argumentação que conduziu à atribuição dos 75% do subsídio pretendido.

13. A circunstância da decisão ter provindo de membro do anterior Governo Regional é, como Vossa Excelência compreenderá, tão irrelevante juridicamente quanto despropositada a sua alegação. Não cabe aqui, sequer, a invocação do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança, porquanto estando em causa a actividade administrativa da Administração Regional, esta traduziu-se, primeiramente, num acto constitutivo de direitos ou de interesses legalmente protegidos [cf. art. 140, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo].

14. A alegação da possibilidade do interessado recorrer contenciosamente da decisão administrativa não pode deixar de me merecer alguns comentários.

15. Como ficou amplamente demonstrado, as “deficiências” e “irregularidades processuias” são unicamente imputáveis à Administração Regional dos Açores. Concluir-se que “não fossem todas as deficiências e irregularidades processuais configuradas no processo em causa (processo n.º 602/AL/91) o candidato teria direito a 100% de apoio, acrescido de 20% a título de apoio supletivo jovem” e, ao mesmo tempo, invocar que o particular poderia ter recorrido contenciosamente do acto definitivo e executório que lhe era desfavorável configura, senhor Secretário Regional da Habitação e Equipamentos, uma clara violação ao princípio da boa fé, na modalidade do “venire contra factum proprium”. Até porque a própria Administração Regional reconheceu que a “inexistência de despachos de admissão do processo de candidatura (…) torna a contagem de prazos (…) de difícil determinação”, e que “falta (…) decisão no prazo legalmente estipulado”.

16. É, no mínimo, estranho que a Administração Regional dos Açores se venha a considerar desobrigada do exercício do “poder-dever de proferir decisão expressa” (na terminologia do Acordão do S.T.A., de 30/01/97, processo n.º 40702), endossando a responsabilidade ao particular ofendido com o argumento de que dispunha dos meios contenciosos que a lei prevê.

17. A fazer vencimento esta tese (que foi já invocada, por Sua Excelência o Secretário Regional da Educação e Assuntos Sociais, em resposta à minha Recomendação n.º 56/A/98) a Administração eximir-se-ia, sem mais, do seu dever de decisão. E porque é sempre reconhecida aos particulares ofendidos a possibilidade de recorrerem aos meios judiciais próprios, poderiam os órgãos administrativos fazer uso desta argumentação em todas as situações que um administrado solicitasse a prática de um qualquer acto administrativo.

18. Uma vez que a Administração Regional exerce um poder público e que, na prossecução do interesses a seu cargo, deve respeito a princípios e obediência a regras, a sua actuação está sujeita ao princípio da legalidade (cf. art. 3º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo): só pode actuar com fundamento na lei e dentro dos limites por ela traçados. Não é aceitável, portanto, que um “órgão ou agente administrativo [faça] utilização de artifícios ou de qualquer outro meio, por forma a enganar o particular” (cf. Acordão STA, de 26/10/94, processo n.º 17626).

19. Apenas é legítimo à Administração remeter o particular para os tribunais na situação de subsistir divergência sobre o mérito, ou a legalidade, do pedido que deve decidir(1) . No caso em apreço, é a própria Administração Regional dos Açores a reconhecer a validade da pretensão do particular. Pode, em consonância, deferi-la. Deve, na observância de princípios materiais de justiça, fazê-lo.

20. O senhor Director Regional da Habitação alega, ainda, a prescrição do direito do interessado, uma vez que não foi interposto recurso contencioso no prazo legal. Por outras palavras, no entender do senhor Director Regional ainda que assistisse a razão ao senhor R… a circunstância de não ter atacado contenciosamente a decisão desfavorável teria conduzida à impossibilidade do exercício do seu direito.

21. Tal entendimento colide com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e, também por este facto, não colhe.

22. Sobre a impossibilidade legal da Administração Regional apreciar, de novo, o pedido do senhor R… permito-me citar parte de motivação do Acordão do STA, de 17/10/95 (processo n.º …), no qual se debatia a questão dos efeitos jurídicos do indeferimento tácito em contraposição às consequências dos actos expressos. Conclui-se no referido acordão que “o indeferimento tácito nunca se firma na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, pelo que o interessado pode continuamente, após o termo do prazo para a sua impugnação, se não preferir esta, dirigir aos órgãos administrativos competentes novo pedido sem que haja preclusão de tal direito até acto expresso”.

23. A Administração Regional dos Açores pode – e deve, na decorrência do princípio da decisão (art. 9º, do Código do Procedimento Administrativo) – apreciar a questão

24. E como é pacífico que a pretensão do senhor R… é justa e juridicamente sustentada não posso deixar de apelar a Vossa Excelência para que ao interessado seja atribuído o montante correspondente aos 25% da comparticipação em falta, acrescido do valor devido a título de apoio supletivo a jovens.

III-Conclusões

25. Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art. 20º, n.º 1, alínea a), da Lei 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO
Que a Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos produza decisão expressa de atribuição ao senhor R… do montante correspondente aos 25% da comparticipação em falta, acrescido do valor devido a título de apoio supletivo a jovens, no âmbito do “Programa de Apoio à Habitação”.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel

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(1)Mas esta invocação não desobriga a Administração Regional dos açores da procura de uma solução justa para a questão em análise. E na situação de ocorrer intervenção do Provedor de Justiça ( maxime através de Recomendação ) é irrelevante, face ao disposto no artº 4º, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a existência de processo judicial em curso.