Director-Geral dos Impostos

Rec. n.º 70/A/98
Processo:R-1164/93
Data: 18-11-1998
Área :A2

Assunto: CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – LIQUIDAÇÃO INDEVIDA DE CONTRIBUIÇÃO INDUSTRIAL – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ACTOS DE GESTÃO PÚBLICA – PROCEDIMENTO NEGLIGENTE DA ADMINISTRAÇÃO FISCAL.

Sequência: Sem Resposta

1. A Exma. Senhora … dirigiu-se a este órgão do Estado em Abril de 1993, queixando-se do facto de não ter sido compensada pelos prejuízos sofridos na sequência de uma indevida liquidação de Contribuição Industrial que lhe foi imposta pela 1.ª Repartição de Finanças do Concelho de Cascais, em resultado de uma acção de fiscalização levada a cabo pelos respectivos Serviços.

2. Com efeito, em 1987, os Serviços de Fiscalização Tributária junto da aludida Repartição de Finanças apuraram que a reclamante, residente em Casal de Ermio, na Lousã, tinha efectuado, em 19.04.82, a venda de um prédio urbano que havia construído, sito no Bairro Fausto de Figueiredo, no Estoril, considerando tal alienação um acto isolado de natureza comercial, nos termos do disposto no art. 57º do Código da Contribuição Industrial.

3. Foi igualmente apurado, por outro lado, que a reclamante não havia apresentado a declaração modelo 3.

4. Assim sendo, foi-lhe fixada inicialmente uma matéria tributável de Esc. 600.000$00, ao abrigo do art. 66.º do Código da Contribuição Industrial, a qual foi posteriormente corrigida, tendo sido definitivamente fixada em Esc. 400.000$00, após a apresentação das respectivas reclamações, ao abrigo dos arts. 70.º e 72.º do mesmo Código, tendo daqui resultado uma liquidação de Contribuição Industrial de Esc. 120.000$00.

5. A este valor foram acrescentados Esc. 20.000$00 de agravamento à colecta e Esc. 142.402$00 de juros compensatórios, perfazendo um total de Esc. 282.402$00.

6. A Sra. D…, por não concordar de forma alguma com a referida liquidação, não procedeu ao pagamento do imposto, o qual foi debitado para cobrança virtual em 22.12.87.

7. Em virtude de não ter sido efectuado o pagamento, foi a contribuição relaxada, tendo sido instaurado o respectivo processo, no qual foi prestada caução de Esc. 600.000$00, em 31.08.88, através da Companhia de Seguros Fidelidade.

8. Entretanto, nesse mesmo ano de 1988, a reclamante impugnou judicialmente a liquidação de Contribuição Industrial em causa (relativa ao ano de 1982), através de articulado apresentado perante o Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa.

9. O processo resultante da mencionada impugnação encontra-se findo, tendo a mesma sido considerada procedente, por sentença de 10.11.92, que igualmente determinou que fosse anulada na sua totalidade a dívida de Esc. 282.402$00.

10. No seguimento desta decisão judicial, e após despacho de 13.04.93, do Chefe da 1.ª Repartição de Finanças de Cascais, foi a caução de Esc. 600.000$00 liberada.

11. Convidado a pronunciar-se sobre a questão do eventual pagamento de juros indemnizatórios à reclamante, veio o Senhor Chefe da 1ª Repartição de Finanças de Cascais defender, em ofício datado de 14.06.93, que a Senhora D… não teria direito a tal pagamento, em virtude de o não haver solicitado no processo de impugnação.

12. Na realidade, a reclamante apenas solicitou, no processo em causa, a anulação da liquidação efectuada, não tendo o Tribunal, na sua decisão, feito qualquer referência a juros indemnizatórios, limitando-se a mandar anular a liquidação na sua totalidade.

13. Por outro lado, a 1.ª Repartição de Finanças de Cascais veio ainda alegar, no mesmo ofício, que o art. 24º do Código de Processo Tributário (preceito legal cujo n.º 1 dispõe que “Haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços”) não se encontrava ainda em vigor na altura em que a liquidação foi impugnada, não podendo igualmente ser feito apelo ao disposto no Parágrafo 1.º do art. 140.º do Código da Contribuição Industrial (norma legal em vigor à data da impugnação, a qual dispunha, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 182/82, de 23 de Abril, que “Contar-se-ão juros de 18% ao ano a favor do contribuinte sempre que, estando paga a contribuição, a Fazenda seja convencida, em processo gracioso ou judicial, de que na liquidação houve erro de facto imputável aos serviços”), uma vez que neste caso não chegou a haver pagamento do imposto.

14. Posteriormente, em resposta a um pedido de esclarecimentos suplementares apresentado por este órgão do Estado, veio o então Director-Geral das Contribuições e Impostos, em ofício datado de 15.12.94, reafirmar a posição expressa pela 1.ª Repartição de Finanças de Cascais.

15. A argumentação expendida baseia-se essencialmente na negação da possibilidade de serem pagos à reclamante os juros previstos no Parágrafo 1.º do art. 140.º do Código da Contribuição Industrial, por não ter havido pagamento do imposto (e não podendo a caução, que teve por objectivo a suspensão da execução fiscal, ser-lhe equiparada), bem como os juros indemnizatórios previstos no art. 24.º do Código de Processo Tributário, em resultado desta norma não se encontrar em vigor na altura em que se produziu o facto que estaria na origem do direito da Senhora D… aos referidos juros (erro imputável aos serviços).

16. É igualmente feita, no referido ofício, uma chamada de atenção para o problema da efectivação da responsabilidade da Administração por actos de gestão pública, prevista no Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967. Tal efectivação apenas se verificaria, na opinião do então Director-Geral das Contribuições e Impostos, através dos tribunais administrativos.

17. Acrescenta-se, aliás, no mesmo ofício, que, ainda que assim não fosse, sempre estaria neste caso inviabilizada a possibilidade de tornar efectivo o direito à indemnização previsto no Decreto-Lei n.º 48 051, uma vez que tal direito se encontra condicionado à impossibilidade de imputar o dano à falta de interposição de recurso contencioso de anulação ou à negligente conduta processual do lesado no recurso interposto.

18. Feita a síntese dos factos que estiveram na origem da queixa perante mim apresentada pela Senhora D…, bem como da posição perante os mesmos assumida pela então Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, cumpre agora passar à exposição dos motivos pelos quais considero dever ser a reclamante indemnizada pelos danos advenientes de uma negligente actuação da 1.ª Repartição de Finanças de Cascais, a qual se consubstanciou, como inicialmente referi, numa indevida liquidação de Contribuição Industrial.

19. Convirá antes de mais salientar que não subsistem quaisquer dúvidas sobre a ilicitude da liquidação em análise. Tal realidade foi judicialmente reconhecida, tendo o Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa concluído que a venda efectuada pela reclamante jamais poderia constituir um facto tributário em sede de Contribuição Industrial, uma vez que a sua natureza jurídica não seria nunca a de acto de comércio (ainda que isolado), à luz das regras estabelecidas pelo Código Comercial.

20. Partindo daqui, e tendo em conta que a decisão judicial de anulação da dívida foi prontamente acatada pela 1.ª Repartição de Finanças de Cascais, que de imediato arquivou o processo de execução fiscal que corria contra a reclamante, surge então por resolver apenas a questão da existência ou não neste caso de um direito da Senhora D… a ser de alguma forma compensada pelos prejuízos que para si resultaram da mencionada liquidação, designadamente através de um eventual pagamento de juros indemnizatórios.

21. Comecemos por abordar o problema do art. 24.º do Código de Processo Tributário. É também minha convicção que o referido preceito legal não é aplicável à situação em análise. No entanto, as razões que suportam esta convicção são distintas daquelas que estiveram na base da posição sobre este assunto assumida pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos em Dezembro de 1994.

22. Com efeito, e embora seja inegável que a norma em questão não se encontrava em vigor na altura em que ocorreu o facto que estaria na origem do direito da reclamante ao pagamento de juros indemnizatórios (o tal erro imputável aos serviços, que se consubstanciou, neste caso, numa indevida fixação de matéria tributável em sede de Contribuição Industrial, seguida da consequente liquidação), a verdade é que o art. 2.º do Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, diploma que aprovou o Código de Processo Tributário, manda aplicar o referido Código aos processos pendentes no momento da sua entrada em vigor, em tudo quanto não for contrariado pelas outras normas desse mesmo Decreto-Lei preambular.

23. E, ao fazê-lo, não estabelece qualquer distinção entre normas processuais ou adjectivas e normas de direito substantivo, sendo por isso de concluir que todas elas se aplicam aos processos pendentes, desde que não contrariem, como já se referiu, o disposto no restante normativo do Decreto-Lei n.º 154/91.

24. Ora, não existindo neste caso qualquer colisão entre a disposição em causa e o preceituado no Decreto-Lei n.º 154/91, e tendo em atenção que o processo resultante da impugnação judicial da liquidação se encontrava ainda pendente em Julho de 1991, altura em que o Código de Processo Tributário entrou em vigor (a decisão de anulação da dívida da reclamante é datada de 10.11.92), não me parece que o argumento decisivo para afastar a aplicação da mencionada norma possa ser o da sua não vigência à data da produção dos danos na esfera da Senhora D…

25. O argumento decisivo para afastar neste caso a aplicação do art. 24.º do Código de Processo Tributário deverá residir, na minha opinião, e tal como acontece na argumentação utilizada quanto ao art. 140.º, Parágrafo 1.º, do Código da Contribuição Industrial, no facto de não ter havido pagamento do imposto.

26. Não tendo havido, na realidade, pagamento do imposto, uma vez que não houve entrega de dinheiro ao Estado (houve apenas prestação de caução), não fará sentido, de facto, falar em direito a juros indemnizatórios.

27. Por outro lado, há que aceitar que, em termos estritamente jurídico-formais, a prestação de caução não possa ser considerada equivalente ao pagamento do imposto, pelo que se admite o afastamento da possibilidade de aplicação a esta situação do disposto no art. 140.º, Parágrafo 1.º, do Código da Contribuição Industrial.

28. Compreende-se, pois, que a Senhora D… não tenha, no processo de impugnação, solicitado que lhe fossem pagos juros indemnizatórios. Nem faria, pelos motivos já apontados, sentido que o fizesse. Como não faria também sentido, aliás, pelos mesmos motivos, que fosse interposta uma acção autónoma na qual se pedisse o pagamento dos referidos juros.

29. Mas, será que a constatação de que à Senhora D… não são devidos juros indemnizatórios nos deverá conduzir automaticamente à conclusão de que à mesma não é devida nenhuma compensação por parte da Administração Fiscal? Será que deverá o direito da reclamante a ver de alguma forma compensados os prejuízos sofridos (pagamento de honorários ao advogado, pagamento do seguro de caução, deslocações, telefonemas, para além dos danos morais, sempre inevitáveis em situações deste género) por via, única e exclusiva, de uma clara actuação negligente da Administração Fiscal, ficar pura e simplesmente desprovido de qualquer tipo de tutela?

30. Penso que não. Creio que o problema pode ser solucionado com recurso ao Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, cujo art. 2.º, n.º 1, determina que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

31. Como já houve ocasião de verificar, a liquidação de Contribuição Industrial que nos vem ocupando consubstanciou-se num acto ilícito culposamente (procedimento negligente) praticado por um órgão administrativo em exercício de funções e por causa desse exercício, do qual resultaram evidentes prejuízos para a reclamante.

32. O que poderá então constituir neste caso obstáculo à aplicação do diploma acima mencionado? O facto da responsabilidade da Administração ali prevista apenas se poder efectivar através dos tribunais administrativos, na linha do defendido pelo então Director-Geral das Contribuições e Impostos no ofício de resposta a esta Provedoria datado de 15.12.94?

33. Não me parece. A Administração não está de forma alguma impedida de indemnizar um terceiro lesado, ao abrigo do disposto no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 051, por sua livre iniciativa ou, por exemplo, no seguimento de uma Recomendação deste Órgão do Estado, ainda que não tenha havido qualquer intervenção dos tribunais administrativos.

34. O que se poderá defender é que só através dos tribunais administrativos é possível obrigar a Administração a indemnizar. No entanto, a não intervenção desses mesmos tribunais não impede que a Administração indemnize, especialmente quando flagrantes razões de justiça imponham tal procedimento.

35. Ora, apesar de a Senhora D… não ter solicitado o pagamento de juros indemnizatórios no processo de impugnação, nem ter interposto qualquer acção autónoma nesse sentido (o que, aliás, se compreende, atendendo ao que já atrás foi referido), configura este caso, sem dúvida alguma, uma daquelas situações em que razões de justiça material vivamente recomendam que a reclamante seja indemnizada.

36. Numa curta referência, por fim, ao argumento segundo o qual o direito à indemnização previsto no Decreto-Lei n.º 48 051 se encontra condicionado à impossibilidade de imputar o dano à falta de interposição de recurso contencioso de anulação ou à negligente conduta processual do lesado no recurso interposto, avançado pelo então Director-Geral das Contribuições e Impostos no já mencionado ofício de 15.12.94, direi apenas que o mesmo não se revela válido no caso em apreciação, visto não existir, como já houve ocasião de verificar, possibilidade dos danos sofridos pela Senhora D… serem imputáveis à falta de interposição de recurso contencioso de anulação ou à negligente conduta processual da reclamante no recurso interposto.

37. Ainda que se admita que o facto da reclamante não ter ainda recebido uma indemnização (e não juros indemnizatórios, aos quais, como já se viu, não teria direito) possa ser imputado a uma negligente conduta processual no âmbito da impugnação judicial da liquidação (o que não é de forma alguma pacífico, tendo em atenção que se levantam dúvidas sobre a sede própria para a apresentação do pedido de indemnização), é forçoso constatar que o não pagamento dessa mesma indemnização não constitui concerteza o dano ao qual se refere o art. 7.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967. A indemnização irá neste caso funcionar somente como uma compensação face aos danos sofridos, pelo que o seu não pagamento apenas privará a reclamante dessa compensação, não constituindo de forma alguma o próprio dano (ou danos).

38. Nestes termos, em face de tudo quanto foi exposto, e não esquecendo que compete a este órgão do Estado intervir não só em face de actuações ilegais dos poderes públicos, mas também naqueles casos em que os procedimentos, ainda que conformes à lei, se afiguram injustos,

RECOMENDO
a V. Exa. que, em obediência a elementares princípios de justiça material, seja paga à Senhora … uma indemnização destinada a compensar a reclamante pelos prejuízos sofridos no período compreendido entre a data da liquidação e a data em que foi liberada a caução, na sequência da decisão judicial de anulação da dívida resultante da referida liquidação.

39. O valor da mencionada indemnização deverá corresponder ao valor total dos prejuízos materiais efectivamente suportados pela reclamante, o qual, de acordo com os cálculos pela mesma efectuados (documentos anexos), ascenderá ao montante de Esc. 152.629$00, acrescido de uma compensação pelos danos morais sofridos, cuja cifra reclamada pela Senhora … (Esc. 300.000$00) se submete à consideração de V. Exa..

40. Permito-me ainda sugerir a V. Exa. que, para efeitos de verificação das despesas não documentadas, sejam directamente solicitados à reclamante os respectivos documentos comprovativos.
Do seguimento dado à presente Recomendação dar-me-á V. Exa. conhecimento, nos termos do disposto no art. 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL