Presidente da Câmara Municipal de Caldas da Rainha
Número: 80/A/98
Processo :R-2616/98
Área: A1
Data:21.12.98

Assunto:EXPROPRIAÇÃO E REQUISIÇÃO DE BENS – DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA – PRÉDIO RÚSTICO – OCUPAÇÃO – CÂMARA MUNICIPAL – INDEMNIZAÇÃO.

Sequência: Acatada

I-Exposição de Motivos

1. O munícipe A…. apresentou queixa ao provedor de justiça, alegando que a Câmara Municipal de Caldas da Rainha procedera ao alargamento e rectificação do traçado de uma estrada municipal, a Rua …, tendo ocupado, para o efeito, uma parte do prédio rústico de que é proprietário, sito na freguesia de …, concelho das Caldas da Rainha.

2. Na reclamação referia-se que, entre Outubro de 1992 e Fevereiro de 1993, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha, através de empreitada adjudicada à sociedade J…, realizou obras de alargamento e pavimentação da Rua Diário de Notícias, ocupando uma parcela do prédio supra referido, superior a duzentos e cinquenta metros quadrados, e derrubando várias árvores existentes no local.

3. Resultava, ainda, dos elementos apresentados pelo reclamante, que o prédio em causa, à data da execução das referidas obras, pertencia à mãe do reclamante. Posteriormente, enquanto herdeiros da referida proprietária, o reclamante adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio, tendo sido constituído em favor de seu pai o direito de usufruto sobre o mesmo imóvel.

4. Inquirida a Câmara Municipal de Caldas da Rainha, informou esta, pelo ofício …, que na execução das obras de alargamento da Rua Diário de Notícias havia, efectivamente, ocupado uma parcela do prédio supra referido e abatido algumas árvores plantadas no local.

5. Contudo, invocou a autarquia, que esta ocupação fora devidamente autorizada pela proprietária do terreno, não obstante não ter sido celebrado negócio jurídico de transmissão, nem se ter chegado a acordo quanto ao respectivo preço.

6. No sentido de obter uma resolução desta questão, o reclamante intentou já duas acções, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, as quais correram os seus termos sob os n.ºs. 554/94 e 110/96, tendo culminado com decisões, respectivamente, de indeferimento liminar da petição e de absolvição da instância por falta de legitimidade do réu …, Presidente da Câmara Municipal de Caldas da Rainha, à data da execução das obras, e por falta de personalidade judiciária da Câmara Municipal de Caldas da Rainha.

7. Desta forma, nas referidas acções judiciais, o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra decidiu com base na inexistência de pressupostos processuais e não chegou a tomar conhecimento do fundo da causa, relativamente ao qual, não se formou, assim, caso julgado.

8. Não sendo controversa a factualidade invocada na reclamação, resulta claro que subsistem divergências quanto às consequências jurídicas da actuação assumida pela Câmara Municipal de Caldas da Rainha.

9. Assim, não obstante invocar que a falta de resolução deste problema se deve à inexistência de acordo quanto ao valor do terreno ocupado, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha, em sede judicial, sempre alegou não existir qualquer actuação ilícita da sua parte.

10. Ora, resulta dos factos apurados que não existe título de transferência do direito de propriedade sobre a parcela de terreno ocupada para via pública, pela Câmara Municipal de Caldas da Rainha.

11. O direito de propriedade privada, consagrado no art. 62º da Constituição, compreende, como uma das suas componentes, o direito de não ser privado dos bens que tem por objecto, ou pelo menos, o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado em caso de desapropriação (cfr. CANOTILHO, J. J. Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, 1993, pp. 332 a 334).

12. Aliás, na medida em que o direito de propriedade privada reveste natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, conforme entende a generalidade da doutrina (cfr. MIRANDA, Jorge, Direito Constitucional, IV, 2ª Ed., Coimbra, 1993, pp. 143 e 466), goza o mesmo do respectivo regime constitucional específico, por força do art. 17º da Constituição.

13. Interessa, sobretudo, considerar que, por força do citado regime constitucional, as entidades públicas estão vinculadas ao respeito pelo direito de propriedade privada, sendo o Estado e as demais entidades públicas solidariamente responsáveis por quaisquer acções ou omissões que determinem a sua violação, nos termos estabelecidos nos artigos 18º, n.º 1, e 22º da Constituição.

14. No mesmo sentido, estabelecem os artigos 1308º e 1310º do Código Civil, que ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do direito de propriedade, senão nos casos fixados na lei e sempre mediante justa indemnização aos titulares dos direitos reais afectados.

15. À Administração Pública incumbe prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. art. 266º da CRP e art. 4º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro).

16. Assim, qualquer entidade pública que necessite de se apropriar de bens objecto de propriedade privada para prosseguir as respectivas atribuições, está vinculada, por força da Constituição e da lei, a observar um procedimento legalmente definido, no qual se salvaguardem os direitos dos interessados, designadamente o direito à indemnização.

17. Assim sendo, não deveria a Câmara Municipal de Caldas da Rainha ter ocupado o prédio em causa, sem, para tanto, estar habilitada por título adquirido pelo direito privado ou sem estar concluído o procedimento tendente à expropriação por utilidade pública do mesmo prédio, conforme impõe o art. 2º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro.

18. No caso concreto, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha alega que a ocupação da parcela indispensável às obras de beneficiação da via pública foi legitimada pela prévia autorização verbal da proprietária do imóvel.

19. No entanto, o art. 80º, n.º 1, do Código de Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 40/96, de 7 de Maio, exige que os negócios jurídicos que importem a constituição do direito de propriedade sobre imóveis sejam celebrados por escritura pública. O que, aliás, resulta ainda do disposto em vários preceitos legais relativos à forma dos negócios jurídicos translactivos de bens imóveis (cfr. artºs 875º e 947º, n.º 1, do Código Civil).

20. Nesta conformidade, qualquer acordo verbal que tivesse sido celebrado entre a Câmara Municipal de Caldas da Rainha e a proprietária do imóvel, relativo à transmissão da referida parcela de terreno para o domínio público, estaria viciado por nulidade, por força do art. 220º do Código Civil, pelo que não habilitaria o município a apropriar-se do terreno em causa.

21. A instrução do processo permitiu apurar que, até à presente data, não foi formalizado qualquer negócio jurídico de direito privado, nem, verificada a impossibilidade da sua celebração – por falta de acordo quanto ao valor da parcela de terreno ocupada – foi desencadeado qualquer processo de expropriação do bem por utilidade pública.

22. Há, pois, de concluir-se que a Câmara Municipal de Caldas da Rainha se apossou, sem título e sem proceder ao pagamento do justo preço, de uma parcela de terreno, o que constitui uma actuação ilícita, a qual determina prejuízos que urge reparar.
23. O reclamante, assim como o seu pai, na qualidade de herdeiros da anterior proprietária e sucessores nos respectivos direitos, assim como na qualidade de titulares de direitos reais sobre o terreno que se encontra ocupado, já manifestaram a sua intenção de não abdicar do direito ao pagamento da justa indemnização.

24. Por seu turno, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha, não obstante assumir que tem obrigação de pagar uma indemnização pela área de terreno ocupada para via pública e pelo prejuízo decorrente do arranque de árvores, reconhece, expressamente, que não tem sido possível chegar a acordo quanto à área a ter em atenção e ao montante da respectiva indemnização, até porque pretende fazer um acerto de áreas, mediante a transmissão ao actual proprietário do terreno de uma área a desafectar do domínio público municipal.

25. Cumpre salientar que, se nada parece obstar, do ponto de vista jurídico, à desafectação e subsequente transmissão para os proprietários do prédio contíguo, do terreno actualmente integrado no domínio público, porque se trata de um negócio jurídico de direito privado, a sua celebração está na disponibilidade dos contraentes e não lhe pode ser imposta.

26. Desta forma, o apuramento da área a tomar em consideração para efeitos de indemnização não pode, sem existir acordo dos interessados nesse sentido, incluir a área de terreno que a Câmara Municipal de Caldas da Rainha pretende alienar.

27. Por outro lado, ainda que se encontrem esgotadas as possibilidades de aquisição por via do direito privado, recai sobre a Câmara Municipal de Caldas da Rainha o dever de desencadear o processo de expropriação por utilidade pública do terreno de que se apropriou indevidamente.

II-Conclusões

De acordo com o que ficou exposto, e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (art. 23º, n.º 1, CRP), entendo fazer uso dos poderes que me são conferidos pelo art. 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do provedor de justiça), e, como tal,RECOMENDO:

1º Que a Câmara Municipal de Caldas da Rainha adquira para o respectivo Município, a parcela de terreno ocupada pelas obras de alargamento e rectificação do traçado da Rua …, através da celebração, por escritura pública, de contrato de compra e venda, tomando em conta o valor daquele terreno e das árvores aí existentes.
2º Só deverá ser realizada compensação de áreas, considerando a alienação pelo Município de Caldas da Rainha de uma área desafectada do domínio público municipal, se existir acordo dos interessados na sua aquisição.
3º No caso de não ser possível chegar a acordo, quanto à aquisição da parcela de terreno referida em 1º, que a Câmara Municipal de Caldas da Rainha apresente requerimento com vista à expropriação daquele terreno, nos termos previstos no Código das Expropriações.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel