Ministro da Justiça
R-4420/99
N.º 36/B/99
1999.12.22
Área: A6

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – MATERNIDADE – ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO – PRAZO – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA.

Sequência:Sem resposta

Foi apresentada nesta Provedoria de Justiça uma reclamação relativa à configuração legal do prazo de propositura da acção de investigação de paternidade, previsto no art.º 1817º, n.º 4, do Código Civil, aplicável por remissão do art.º 1873 do mesmo diploma.
O reclamante entende que os prazos fixados na Lei para a propositura deste tipo de acção não se conformam com os princípios e regras ínsitos nos artigos 13º, n.º 2, 25º, n.º 1, 26º, n.º 1, e 36º, n.º 4, todos da Constituição. No caso concreto, o reclamante intentou uma acção de investigação de paternidade, apenas para produzir efeitos de natureza pessoal, não pretendendo obter por via dela, quaisquer direitos ou vantagens de natureza pessoal.
O prazo previsto no art.1817.º, n.º 4, do Código Civil, havia decorrido há muito aquando da propositura da acção pelo reclamante. Porém, entendeu o mesmo que aquele deveria ser preterido na medida em que a procedência da acção não contendia nem afectava as relações jurídicas patrimoniais de terceiros, efeitos a que expressamente pretendia renunciar.
Estabelece o art.º 1817º, n.º 4, do CC, aplicável por força do disposto no art.º 1873º do mesmo diploma, que a acção de investigação de paternidade, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da cessação daquele tratamento.

A questão não é nova e já foi analisada por diversas vezes pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos 99/88, de 28.04.98, 413/89, de 31.05.89, 451/89, de 21.06.89, e 370/91, de 25.09.91.O Tribunal Constitucional sempre decidiu que a aplicação às acções de investigação de paternidade, ex vi do art.º 1873º, do prazo estabelecido no n.º 4, do art.º 1817, não viola a Constituição.

Porém, o caso em apreço difere de alguma forma da matéria analisada pelo Tribunal Constitucional, na medida em que o que se pretende é apenas aferir da legitimidade constitucional do prazo (ou prazos) para a propositura das acções de investigação de paternidade, quando os efeitos pretendidos são de natureza estritamente pessoal, isto é, quando se não pretende obter por via judicial quaisquer direitos ou vantagens de natureza patrimonial. A doutrina e a jurisprudência nunca foram unânimes face a esta questão.

As Ordenações estabeleciam a caducidade dos direitos de crédito no prazo de 30 anos. O mesmo prazo era considerado para as acções de investigação de paternidade, afirmando todavia outros, como Simões Correia e Virgolino Carneiro, que o regime anterior ao Código de Seabra era o da imprescritibilidade.

O Código de 1966 modificou o regime português sobre o tempo de propositura de acções de investigação. A nova solução traduziu-se praticamente num encurtamento do prazo de proposição da acção.
Segundo o Prof. Antunes Varela, a principal razão que determinou, entre nós, a nova solução de 1966, foi ” a consideração ético programática de combate à investigação como puro instrumento de caça à herança paterna.”
Alguns países, como a Itália, a Espanha, a Áustria e os escandinavos, optaram pela imprescritibilidade relativamente às acções de investigação de paternidade. Isto por entenderem que a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.

Expostas as considerações gerais, cumpre dizer que dos artigos 25º e 26º da Constituição, extrai-se um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade.
Segundo o Prof. Guilherme de Oliveira, o sentido do direito à identidade pessoal, traduz-se na garantia da identificação de cada pessoa, como indivíduo, singular e irredutível, abrangendo seguramente, além do direito ao nome, um direito à “historicidade pessoal”. O direito à “historicidade pessoal” consigna o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores.

Nestes termos se pronunciou também o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/88, de 28/04/88, considerando inquestionável que os artigos 25º e 26º da Constituição impõem a mesma conclusão. “De facto”, como reza este acórdão, “a “paternidade” representa uma referência essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma “individualidade” (quer ao nível biológico, e aí, absolutamente infungível, quer ao nível social), e elemento ou condição determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como “indivíduo” … e sendo assim, não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver reconhecido o pai – o direito de conhecer e “pertencer ao pai cujo é” … como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos, em especial do direito à identidade pessoal, ou uma das faculdades que nele vai implicada”.

O conhecimento da ascendência verdadeira é um aspecto relevante da personalidade individual e uma condição de gozo pleno daqueles direitos fundamentais. Nisto, residirá afinal a motivação profunda da legitimidade que as leis conferem ao filho para investigar a sua maternidade/paternidade, e daí que a evolução do direito da filiação tem sido pela prevalência do critério biologista da paternidade.
O direito português não foi alheio a esta evolução. E, tendo em consideração o art.º 36º, n.º 4 da CRP, que abolia a distinção legal entre filhos legítimos e ilegítimos, reformulou-se profundamente todo o título do Código Civil, relativo à filiação e em particular ao regime nele consagrado para o estabelecimento da filiação quanto ao pai.
Não obstante tudo isto, não se eliminou com a revisão do Código Civil de 1977 a regra da caducidade do direito de acção de investigação da paternidade, nem se eliminaram, em especial, os prazos estabelecidos, para essa acção, ex vi, do art.º 1873, do prazo do n.º 4 do art.º 1817º do CC.

Como já disse acima, segundo informação abalizada, a principal razão que determinou a limitação do prazo para a instauração das acções de investigação de paternidade, foi o “combate à acção da determinação legal do pai, como puro instrumento de caça à herança paterna, quando o pai fosse rico.” A verdade é que o decurso do prazo cala a revelação da progenitura e a relevância jurídica do parentesco, ainda que nenhuma herança exista ou se pretenda.
A jurisprudência constitucional tem entendido que as normas ora em apreço devem ver-se não como “restrições” ao direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, mas antes, como “condicionamentos” a que tem de obedecer o seu exercício.

Com o devido respeito pela douta jurisprudência constitucional, e refira-se mais uma vez que no caso concreto não está em causa a apreciação da constitucionalidade dos artigos supracitados, não posso concordar qua tale com tal afirmação.
Conforme o voto de vencido do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, no citado acórdão 99/88, entendo que o art.º 1817º, n.º 4, sendo vivo o investigado, não é simplesmente condicionante mas restritivo do direito à identidade pessoal. É que, em muitos casos a cessação do tratamento será fundamentada em motivos ocasionais, que, no domínio das relações familiares, têm normalmente tendência a resolver-se com o mero decurso do tempo.
A mera instauração da acção de investigação, no tipo de situações acima mencionadas, teria provavelmente como efeito impedir que o investigado voltasse a ter com o investigante o tipo de relação que com ele tivera anteriormente. O curto prazo de um ano a contar da data da cessação do tratamento como filho, pelo pretenso pai, obriga o investigante a obter por via litigiosa, o que provavelmente conseguiria obter por comum acordo. Consequentemente o direito à identidade pessoal seria efectivamente restringido na medida em que afecta a possibilidade do investigante ver reconhecida a paternidade biológica.

A este propósito, refira-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 1989, do qual, aliás, fui relator. Entendi, e comigo o STJ, que “a norma do artigo 1817, n.º 4, é inconstitucional, por violar o disposto no art.º 26º, n.º 1 da CRP, que consagra o direito à identidade pessoal, conjugado com o art.º 25º, n.º 1, da Lei Fundamental, referente à garantia da integridade moral, na medida em que não exceptua da sua previsão a cessação do tratamento por parte do investigado quando este ainda está vivo, durante mais de um ano a partir daquele evento”. Acrescentou-se, ainda, por fim, que aquela violação se verifica “por não terem sido respeitados os limites impostos pelo princípio de adequação e proporcionalidade”, inscritos no art.º 18º, n.º 2 e 3 da CRP.

Os defensores da limitação do prazo para a instauração da acção judicial de reconhecimento da paternidade baseiam-se no facto de, face ao direito do filho, se perfilarem outros interesses, ou direitos, igualmente merecedores de tutela jurídica, a saber, o interesse do pretenso progenitor em não ver indefinidamente ou excessivamente protelada uma situação de incerteza e em não ter que contestar a respectiva acção quando a prova se haja tornado demasiado aleatória, um interesse da mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à área da prova e às dificuldades eventuais da contraprova com que podem vir a confrontar-se, a paz e a harmonia conjugal do pretenso pai, e a situação de incerteza que este pretenso progenitor suportaria.

Estes argumentos são obviamente refutáveis. Não se diga que as investigações demasiadamente proteladas conduzem à dificuldade da prova suportada pelo pretenso progenitor. Tal posição é pouco convincente no que respeita à investigação da paternidade. Sempre se poderá dizer que, se a prova se vai tornando mais difícil com o decorrer do tempo, é o próprio investigante retardatário que mais suporta essa desvantagem, e não parece curial limitar-lhe o direito de investigar para lhe garantir o êxito da prova.

Relativamente ao argumento da onerosa incerteza para o suposto progenitor, a imprescritibilidade experimentada a partir de 1865, no contexto do direito italiano, cuja evolução foi parecida com a nossa até certa altura, não gerou inconvenientes.
Consagrando a CRP, no art.º 36º, n.º 4 que os filhos nascidos do casamento e os fora dele, se encontram em idêntica situação, é manifesto que o regime legal consagrado no art.º1817 n.º 4, do CC, constitui uma restrição ao exercício daquele direito fundamental, e uma discriminação relativamente às pessoas em tais condições.

Face à sociedade de hoje, em que o conceito de família/casamento, se tem vindo a alterar radicalmente, parece-me verdadeiramente “desadaptado” ou mesmo preconceituoso o argumento de que o regime legal em análise “decorre, pela própria natureza das coisas do reconhecimento constitucional e legal do casamento (do casamento formalmente celebrado) como instituição social e jurídica”.
A reforma introduzida no CC, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, adaptando o referido Código ao preceito constitucional (36º, n.º 4), pretendeu não só terminar com toda a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos como também, terminar com tais adjectivações, passando a haver, unicamente filhos “tout court”, pelo que não se compreende nem se aceita que os direitos dos filhos nascidos fora do casamento não sejam os mesmos dos nascidos dentro dele. Não se entende ainda por que motivo o bem estar social e conjugal do pretenso progenitor deve prevalecer sobre a descoberta da verdade biológica.

Parece-nos que o dever de assumir a responsabilidade pelos actos cometidos, constitui sim, um princípio louvável, intrínseco a todos os indivíduos e por cuja vivência em sociedade se deve pautar.
Face ao exposto, não posso concordar com a opção do legislador, no sentido de que a norma do art.º 1817, n.º 4, assegura um equilíbrio de interesses entre as partes.
Não podemos ignorar, e como tal voltamos a sublinhar, que a principal razão de ser da limitação do prazo para as acções de investigação de paternidade é a tutela de interesses patrimoniais do pretenso progenitor e de terceiros. Além do Prof. Antunes Varela, utiliza esta justificação o já citado acórdão 99/88 do Tribunal Constitucional, ao escrever que “De resto, não será descabido lembrar, no contexto do que vem sendo referido, que a investigação da paternidade não se destina a tutelar apenas um interesse “moral” do investigado, mas também um seu interesse “patrimonial”(….).Tais interesses (patrimonial), não raro sobrelevam aquele outro, chegando a adquirir (em especial quando a acção é proposta após a morte do investigado) uma importância quase exclusiva, assim melhor se poderá compreender o equilíbrio que a solução legislativa representa”

Embora concorde que na acção de investigação de paternidade a tutela do interesse patrimonial do investigante é mais que legítima, não vendo por que razão os seus direitos nesta matéria devam ser distintos de quaisquer outros herdeiros, a verdade é que nem todos os filhos de pais incógnitos têm por fim a obtenção de um herança.
Escreveu sobre este assunto o Prof. Moitinho de Almeida um texto que revela que na maior parte das vezes o que o investigante pretende não são bens patrimoniais, mas tão só alguma dignidade social e moral: “…Continuam a existir filhos de pai incógnito, porque não se ousou permitir que os filhos que, mercê das circunstâncias várias entre as quais avulta a ignorância, já deixaram passar o prazo para investigarem a sua paternidade, pudessem ainda fazê-lo, embora sem efeitos sucessórios. O que sobretudo lhes interessa, não é qualquer herança, na maior parte dos casos inexistente, mas sim a atribuição de um pai conhecido para se poderem apresentar perante as repartições públicas, onde têm de declinar a sua filiação, sem exibirem o ferrete da sua inferioridade de filhos de pai incógnito.”

Tendo presentes todos os valores em conflito, julgo que a solução menos lesiva para todos é a previsão de prazo de caducidade exclusivamente para os efeitos patrimoniais, na generalidade dos casos.
Noto ainda que, embora de ocorrência menos frequente, nada permite prever solução diversa para os casos de investigação de maternidade.

Face ao exposto e às razões aludidas, nos termos do art.º 20.º, n.º 1, b), da Lei 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a alteração da legislação no sentido de,
1. a par da existência de prazo para propositura de acções com fins patrimoniais, ser consagrada a imprescritibilidade para a propositura das acções de investigação de paternidade/maternidade, desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal;
2. ser modificado o n.º 4 do art.º 1817.º, de maneira a nunca excluir a possibilidade de investigação de paternidade/maternidade com fundamento na posse de estado enquanto for vivo o pretenso progenitor.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel