Ministro dos Negócios Estrangeiros
R – 2677/99
N.º 34/B/99
1999.11.11
Área: A6

Assunto:ESTRANGEIROS – MÉDICOS DENTISTAS – ACORDO CULTURAL LUSO-BRASILEIRO – EQUIVALÊNCIA DE CURSOS – ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS

Sequência:Sem resposta

Foi recebida neste Órgão de Estado um petição subscrita por um grupo de cirurgiões dentistas brasileiros, diplomados por escolas superiores do Brasil, onde era contestado o regime contido no art.º 100.º da Lei 82/98, de 10 de Setembro, diploma que alterou o estatuto da Associação Profissional dos Médicos Dentistas, aprovado pela Lei 110/91, de 29 de Agosto, constituindo-a como ordem profissional, em conexão com a questão do reconhecimento dos diplomas exarados por universidades brasileiras, ao abrigo do Acordo Cultural celebrado entre Portugal e o Brasil em 1966.
Alegam aqueles reclamantes que os pressupostos a que este regime submete os cirurgiões dentistas diplomados por escolas dentárias brasileiras contendem com o preceituado no art.º XIV, daquele Acordo Cultural, invocando que “sempre se entendeu em ambos os países que a equivalência de cursos e diplomas se faria automaticamente, por via administrativa, através da mera constatação de que tais documentos eram provenientes da autoridade legítima para os emitir”.
O supra enunciado art.º 100.º estabeleceu os pressupostos de aplicação do regime transitório de integração dos cirurgiões dentistas na Ordem dos Médicos Dentistas com vista ao exercício da sua actividade profissional no nosso país, circunscrevendo a sua aplicação aos profissionais “constantes da Portaria 180-A/92, de 4 Junho, e do memorando de entendimento de 9 de Fevereiro de 1994”, desde que tivessem concluído o curso de odontologia até ao ano de 1993, entrado em Portugal até 31 de Dezembro do mesmo ano e estivessem inscritos ou possuíssem capacidade legal para inscrição no Conselho Federal de Odontologia (n.º 1). A atribuição do título de médico dentista a estes profissionais, assim como a sua inscrição na Ordem, depende da realização de um curso de formação sobre os aspectos éticos, deontológicos e legais em vigor em Portugal (n.º 2).

Embora a avaliação da eficácia do art.º 100.º da Lei 82/98 na resolução deste diferendo não seja o objectivo a que me proponho na missiva que ora endereço a Vossa Excelência, esta questão interliga-se de forma determinante na problemática originada pelo Acordo Cultural, razão pela qual me permito tecer algumas considerações sobre ela.
Sou de opinião que este regime não constitui uma resposta eficaz para a resolução da situação dos cirurgiões dentistas que em território nacional pretendem exercer a sua actividade profissional porque se limita a regulamentar os casos anteriores ao final do ano de 1993, de harmonia com o memorando de entendimento de 09.02.94, ignorando as situações surgidas após essa data.
O regime ora contestado constitui a mais recente tentativa legislativa de solucionar a dimensão mais controvertida da longa controvérsia que opõe Portugal e o Brasil a propósito do reconhecimento de diplomas e títulos profissionais brasileiros, matéria regulada pelo Acordo Cultural celebrado entre Portugal e o Brasil, em 7 de Setembro de 1966, aprovado pelo Decreto-Lei 47.863, de 26.08.67, ratificado por Portugal em 10 de Março de 1968 e pelo Brasil em 4 de Setembro de 1969, e em vigor desde esta última data.
Segundo o seu art.º XIV, “cada Parte Contratante reconhecerá, para efeito de exercício da profissão em seu território, os diplomas e títulos profissionais idóneos expedidos por institutos de ensino da outra Parte e desde que devidamente legalizados e emitidos em favor de nacionais de uma ou outra Parte, favorecendo em caso de inexistência ou diferença de curso, as necessárias adaptações para o mais próximo.”

Um aspecto que não é despiciendo frisar é que este preceito incide sobre o reconhecimento de diplomas brasileiros, questão não coincidente com a nacionalidade dos seus portadores, porquanto submete indiferenciadamente ao mesmo regime cidadãos portugueses e brasileiros, desde que detentores de formação escolar no Brasil.
Em devido tempo tive ocasião de expressar o meu entendimento relativamente a esta matéria, nomeadamente através da formulação de recomendações dirigidas a diversos organismos da Administração Pública. Refiro aqui, a título de exemplo, a minha recomendação n.º 127/A/95 onde, a propósito do art.º XIV do Acordo, mencionei que a idoneidade do título profissional brasileiro resulta tão só da sua concessão por entidades reconhecidas e habilitadas para licenciar naquele país o exercício da profissão em causa. Não é concedida a qualquer das partes a possibilidade de apreciar o mérito dos títulos profissionais concedidos por institutos de ensino da outra parte. Apenas há que reconhecer a validade dos títulos profissionais em causa, os quais caso estejam devidamente legalizados, valem em Portugal nos mesmos termos que valem no Brasil.
Há que admitir que o irrazoável desenrolar deste processo ao longo dos anos, por entre negociações e gestão de compromissos não poucas vezes objecto da atenção da comunicação social, desembocou numa complexa situação jurídica que somente a revisão do Acordo pode vir a resolver. Trata-se de uma tarefa que, reconheço, não se afigura fácil e que exige a conjugação de esforços e vontades dos órgãos titulares do poder político envolvidos.

Certamente que será um propósito temerário levar a bom porto o processo de revisão deste acordo internacional sem, antecipadamente, solucionar a situação dos profissionais que actualmente em Portugal são titulares de diplomas exarados por escolas superiores brasileiras. Sem prejuízo de outra ordem de factores em jogo, o processo de revisão do Acordo está enredado numa lógica circular, segundo a qual não é plausível que seja alcançado o consenso entre as partes porque não se resolvem as situações pendentes, e estas não se definem porque o Acordo não é cumprido nem revisto. A estreiteza do âmbito temporal do regime provisório contido na recente Lei 82/98, nos termos que acima referi, demonstra à saciedade os riscos para o processo negocial que decorrem da actual situação legal.
Neste sentido, recomendei à Assembleia da República que altere aquela Lei com o objectivo de instituir um regime que contemple formas de reconhecimento dos cirurgiões dentistas diplomados por escolas superiores do Brasil até à assinatura do desejado protocolo modificativo do Acordo Cultural, única forma de ultrapassar o impasse gerado.
Consensual é o reconhecimento de que a realidade universitária dos nossos dias pouco se assemelhar ao modelo centralizado e estadual que esteve na base da modalidade de reconhecimento normativo consagrada pelo art.º XIV do Acordo Cultural.

Também este aspecto está longe de constituir um facto novo no processo, como se comprova pelo preâmbulo da Portaria 180-A/92, que explicitava que “as alterações ocorridas desde 1966 nos sistemas de ensino e na regulamentação profissional complementar de ambos os países torna indispensável a revisão parcial do Acordo Cultural (…), designadamente nos artigos XIII a XVI”.
Por outro lado, através do memorando de entendimento, de 09.02.94, os Ministros dos Estrangeiros de Portugal e do Brasil, após acordarem diversas medidas a adoptar para a resolução dos casos pendentes, com particular incidência para a situação dos cirurgiões dentistas, reconheceram a necessidade de ultimar rapidamente a revisão do Acordo Cultural (n.º 4), acordando que o respectivo protocolo modificativo conteria a nova redacção dos art.ºs XIII, XIV e XV deste tratado internacional.
Não obstante este acordo de princípio, é com enorme perplexidade que se assiste ao interminável arrastamento do processo de revisão do Acordo Cultural luso-brasileiro e ao perpetuar da inusitada situação jurídica gerada pela inaplicação deste Acordo internacional em vigor e, portanto, vinculativo para as partes que o subscreveram, de harmonia com as regras aplicáveis da Convenção de Viena sobre o Direitos dos Tratados entre os Estados, e que a reconhecida complexidade das negociações bilaterais não permitem por si só justificar.
Urge, pois, ultrapassar rapidamente este longo diferendo e proceder à revisão do Acordo Cultural em tempo útil, como já foi oficialmente reconhecido por ambos os países, nada podendo justificar o arrastamento desta questão por mais tempo para além daquele que for estritamente necessário para o regular desenvolvimento do processo negocial.
E Vossa Excelência, Senhor Ministro, não deixará de concordar que a resolução desta diferença entre Portugal e o Brasil, que tantos constrangimentos tem causado nas relações bilaterais, constituiria um auspicioso e digno contributo para a celebração dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil.

Assim, nos termos e pelas razões que acima enunciei, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, al. b), da Lei 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:
a Vossa Excelência que sejam envidados todos os esforços diplomáticos necessários para a revisão do Acordo Cultural entre Portugal e o Brasil, de 1966, nos termos acordados nos pontos 4 e 5 do memorando de entendimento entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, assinado em 9 de Fevereiro de 1994.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel