Chefe do Estado Maior do Exército
R-3196/99
N.º 32/B/99
1999.11.05
Área: A6

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – DISCRIMINAÇÃO – VIRUS HIV – DIREITO A INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA – SIGILO MÉDICO

Sequência:Acatada

Um militar do Exército, a exercer funções no Quartel General do Governo Militar de Lisboa solicitou a minha intervenção por alegadamente ter sido alvo de atitudes discriminatórias face à sua seropositividade ao vírus VIH.
Afirmou o militar em causa que o resultado da análise para despistagem do vírus VIH lhe teria sido comunicado na presença de um enfermeiro, o qual informou posteriormente o Comandante da Unidade, violando assim o direito à reserva da sua vida privada.
Em consequência deste facto, o militar foi mandado para casa até ao seu internamento no hospital militar, tendo sido dispensado do serviço que prestava à cozinha.
Estes factos foram confirmados pelo ofício n.º 7064, de 8 de Outubro, subscrito pelo Exm.º Chefe de Gabinete de Vossa Excelência. Analisada a situação, cumpre dizer o seguinte.
A intimidade da vida privada de outrem é um valor protegido pelo nosso ordenamento jurídico, merecendo, aliás, consagração constitucional. O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República várias vezes se pronunciou sobre as questões relativas à privacidade, considerando que a mesma “compreende aqueles actos, que não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre , como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe”.
J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que o direito à intimidade da vida privada se analisa em dois aspectos distintos: “(a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informação sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a sua vida privada e familiar de outrem.”

Conforme os autores acima citados, o art.º 26.º, n.º 2 da CRP visa reforçar a ideia de que certas informações relativas às pessoas podem despersonalizar, degradar, desindividualizar os seres humanos, como por exemplo a revelação da identidade de pessoa infectada com o vírus da SIDA.
Obviamente que o facto de o militar em causa ter sido imediatamente retirado do exercício das suas funções e enviado para casa suscita a curiosidade do restante pessoal, mormente o que mais directamente com ele lidava. Num ambiente militar o conhecimento de uma doença deste foro não será eventualmente bem acolhido, com potenciais consequências psicológicas nefastas para o portador do vírus.
Esta problemática tem assumido especial eco no âmbito das instituições internacionais. A Organização Mundial de Saúde, na 41ª Assembleia Mundial de Saúde, adoptou em 13 de Maio de 1988, a resolução intitulada “non discrimination à l’égard des personnes infectées par le VIH et les sidéens”. Solicitou aos 167 Estados membros a protecção dos direitos do homem e da dignidade das pessoas infectadas pelo VIH ou pela SIDA, concluindo que a estigmatização e discriminação relativamente aos portadores do VIH e ou afectados pela SIDA os estimula à clandestinidade e à ocultação da doença e consequentemente à afectação negativa da saúde pública.
O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido, por um lado, que o respeito pela vida privada consagrado no art.º 8.º da CEDH e que resulta das tradições constitucionais comuns aos Estados membros é um dos direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária, que comporta o direito das pessoas a manterem secreto o estado de saúde, e por outro, que podem ser impostas restrições aos direitos fundamentais por ela protegidos, desde que correspondam efectivamente a objectivos de interesse geral e não constituam, relativamente ao fim prosseguido, uma intervenção desproporcionada e intolerável que atente contra a própria essência do direito protegido.

A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), na deliberação n.º 86/98, considerou que o acesso aos dados sobre a vida sexual, a toxicodependência, VIH e outros com o mesmo grau de sensibilidade, deve ser extremamente limitado, normalmente ao médico assistente.
O tratamento dos dados acima enunciados bem como a sua divulgação só poderá ocorrer quando houver consentimento expresso do seu titular ou autorização prevista na Lei, com garantias de não discriminação. A informação relativa ao diagnóstico só deve ser fornecida aos profissionais de saúde que, por força das funções que desempenham, dela necessitam para a realização das prestações de saúde.
No caso em apreço, o médico da unidade deveria ter comunicado apenas ao militar o resultado da análise. Conforme a deliberação n.º 23/99 da CNPD, a informação sujeita a sigilo médico só deveria ser partilhada quando, no caso concreto, o interesse de cada doente o exija (v. g. para efeitos terapêuticos inter-disciplinares), não devendo ser generalizada ou banalizada no seio da instituição a partilha de informação sobre os doentes.
Em conformidade com o disposto nos art.ºs 63.º n.º 2, e 65.º, n.º 1, alínea b, do Regulamento Geral de Serviço nas unidades do Exército, o oficial médico, se entendesse necessário, podia e devia promover a baixa do soldado ao hospital.
Embora, nos termos do art.º 65.º, n.º 2, alínea b), o oficial médico deva fornecer ao comandante todas as indicações que digam respeito à saúde e higiene das tropas, não está previsto em nenhuma norma do RGSUE nem de qualquer outro diploma, que o médico tenha obrigatoriamente de especificar um diagnóstico, designadamente que um militar é portador do VIH.

É de salientar que a nossa Lei ordinária não inclui nem a seropositividade VIH nem a SIDA no elenco de doenças de comunicação obrigatória para o exercício de quaisquer actividades profissionais. O que aliás faz todo o sentido, na medida em que, por um lado o VIH só em excepcionais condições ambientais sobrevive fora das células que atinge, que a sua transmissão ocorre no quadro de uma particular especificidade em relação às doenças indiscriminadamente contagiantes e que, em regra, o perigo de contágio nas situações laborais é assaz remoto, e, por outro lado, que os portadores assintomáticos do vírus têm geralmente robustez física e perfil psíquico adequado para o desempenho de variadas actividades profissionais.
O VIH não se transmite através do ar, tosse ou espirros, suor, aperto de mão ou abraços, saliva ou beijos, roupas, louças, talheres ou restos de comida, nem em sanitários, piscinas ou transportes públicos, por picadas de insectos ou através de animais. Neste contexto e em concreto o militar em causa, portador do VIH, nunca poderia ser considerado uma ameaça para a saúde pública no exercício das suas funções, que à altura eram de reforço na cozinha.
Não se diga, aliás, que a informação prestada ao comandante ou a qualquer entidade não-médica pretendia proteger terceiros. Essa protecção pode ser estabelecida por critério médico sem divulgação de diagnósticos, devendo, por outro lado, toda a política de prevenção de riscos ser construída com base na regra da presunção de seropositividade.
A infecção por VIH1 ou VIH2, em conformidade com o disposto no art.º 2.º, alíneas c) e d), e anexo A da Portaria 790/99 de 7 de Setembro, poderá constituir uma incapacidade dependente do grau de lesão e do critério da junta médica, podendo ser tido como causa de incapacidade total ou inaptidão parcial. Assim, é à junta médica que compete aferir sobre a aptidão e capacidade para a prestação de serviço por militares e não a qualquer outra entidade.
O mesmo entendimento resulta do disposto no art.º 204, número 1, alínea c) do Decreto-Lei 236/99, de 25 de Junho (EMFAR), segundo o qual o militar deve comparecer perante a junta médica quando houver dúvidas acerca da sua aptidão física.

Assim, e em conclusão:
a) Não é lícita, por contrário ao direito de intimidade da vida privada (Constituição, art.º 26.º, n.º 1) e não se justificar dentro do actual conhecimento de saúde pública, a divulgação dos resultados individualizados dos testes;
b) Não é lícito, por violar pelo menos o direito à liberdade (CRP, art.º 27.º, n.º 1), realizar análises, tratamentos, hospitalizações ou isolamentos compulsivos;
c) Não é lícito, por contrário ao direito ao trabalho e à segurança no emprego (CRP, artigos 53.º e 58.º), estabelecer limites à relação de trabalho por força de afecção detectada, não objectivamente justificadas;
d) A Constituição da República Portuguesa e os textos de direito internacional a que o Estado Português está vinculado não admitem a discriminação baseada no estado de saúde dos cidadãos que não seja necessária e razoavelmente fundada em interesses e valores legítimos, como é o caso de defesa de saúde pública;
e) Releva da apreciação médica avaliar se os indivíduos portadores do VIH dispõem ou não de robustez físico psíquica necessária ao exercício das funções que exercem;
f) Nenhum diploma legal, incluindo o Decreto-Lei 236/99 de 25 de Junho (EMFAR), e o Regulamento Geral do Serviço nas Unidades do Exército, define o VIH como doença de comunicação obrigatória, não estando consequentemente o oficial médico obrigado a divulgar o diagnóstico dos militares;
g) Em conformidade com a Portaria n.º 790/99, é apenas à junta médica que cabe determinar em concreto a capacidade do militar para o exercício das funções.

Por assim ser, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, a), da Lei 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO que:
1. as análises para despistagem do VIH apenas sejam feitas com o consentimento informado e escrito do interessado;
2. o resultado das mesmas só seja comunicado ao próprio , excluindo-se a presença de outras pessoas que não seja estritamente necessária;
3. em nenhum caso seja comunicado o diagnóstico a pessoal não médico, como ao comandante da respectiva unidade, devendo o oficial médico, caso assim o entenda, informar da necessidade de apresentação no Hospital Militar;
4. não seja automaticamente dispensado das suas funções nenhum militar que se verifique ser portador do VIH, recorrendo-se antes à determinação do que uma junta médica houver por conveniente.
5. Em relação ao caso concreto, seja o militar em causa colocado em funções compatíveis com o seu posto, habilitações e estado de saúde, minimizando as consequências da quebra de sigilo de que foi vítima.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel