Secretário de Estado do Ensino Superior
R – 3162/99
N.º 30/B/99
1999.09.01
Área: A3

Assunto:EDUCAÇÃO E ENSINO – MILITARES – ACESSO AO ENSINO SUPERIOR – CONTINGENTE ESPECIAL – REQUISITOS – REVOGAÇÃO.

Sequência: Sem resposta

1. O presente processo foi suscitado a propósito de um aluno que, tendo ingressado no mês de Outubro de 1998 no serviço militar em regime de voluntariado, motivado pelas condições especiais de acesso ao ensino superior reservadas a estes militares, se vê no corrente ano impedido de beneficiar dessas condições por ser agora, e ao contrário do que até aqui sucedia, exigido aos candidatos pelo respectivo contingente que nunca tenham estado matriculados no ensino superior público, requisito que o aluno em causa não preenche.
A mãe do aluno apresentou uma reclamação na Direcção-Geral do Ensino Superior a este respeito, que aquela entidade considerou não proceder, basicamente por a situação reclamada resultar da Lei.

2. Importa, pois, apreciar em que medida será válido e adequado o requisito de ingresso no contingente introduzido no regulamento do concurso do corrente ano.
O Decreto-Lei n.º 336/91, de 10 de Setembro, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 30/87, de 7 de Julho, estabeleceu os termos da criação e atribuição de incentivos aos cidadãos para prestação de serviço efectivo nos regimes de voluntariado e de contrato.
Era objectivo desse diploma, conforme estatuído no respectivo preâmbulo, a criação de “um programa de acções motivador da adesão responsável dos jovens à vida militar, que comporte perspectivas de futura integração na vida activa civil ou, em alternativa, de acesso a outras carreiras públicas e, bem assim, aos quadros permanentes das Forças Armadas”.
Nesse contexto, foi especificamente prevista a criação de um “regime especial de candidatura ao ensino superior” por parte dos militares em questão (cfr. artigo 4.º, n.º 4).
Optou o legislador por fazer consistir este regime especial na criação, no âmbito do concurso geral de acesso ao ensino superior, de um contingente especial destinado aos militares, a quem estaria afecto um determinado número das vagas existentes em cada estabelecimento.
A definição dos termos em que esse contingente opera foi entretanto sediada no regulamento do concurso, publicado anualmente e válido apenas para o ano em que é publicado.
Diga-se que o regulamento desenvolve os princípios enunciados no regime de acesso e ingresso no ensino superior, actualmente contido no Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 26 de Setembro.
No corrente ano, o Regulamento, contido em anexo à Portaria n.º 505-A/99, de 15 de Julho, previu, à semelhança do que ocorreu em anos anteriores, um contingente especial para militares em regime de voluntariado a quem serão distribuídas 2% das vagas colocadas a concurso (cfr. artigo 9.º, n.º2, alínea e)).
Foi autorizado o concurso às vagas do contingente especial por parte dos candidatos que se encontrassem a prestar serviço militar efectivos nos regimes de voluntariado ou de contrato até ao final do prazo de candidatura (cfr. artigo 13.º, alíneas a)).
A acrescer a este, no entanto, foi ainda fixado outro requisito, até aqui inexistente, por via do qual se exigia que nunca o candidato estivesse estado matriculado num estabelecimento de ensino superior público (cfr. artigo 13.º, alínea b)).
É em relação a este último requisito que a questão agora se coloca.

3. Ora, face aos elementos disponíveis, considero que o requisito em apreço é inválido, por violar o regime de incentivos aos militares em regime de voluntariado e de contrato e, por outro lado, por defraudar legítimas expectativas que os candidatos afectados possam apresentar.

a) violação do regime de incentivos

A validade deste novo requisito deverá antes de mais aferir-se por via da sua conformidade com as normas em relação às quais se reporta, referentes seja ao sistema de incentivos aos militares em regime de voluntariado ou de contrato, seja ao concurso de acesso.
Nessa medida, impõe-se que, na delimitação do âmbito de aplicação do contingente, o regulamento se atenha a critérios que sejam atendíveis à luz do regime de incentivos ou, noutro nível, à luz dos princípios subjacentes ao concurso de acesso.
Ora, sob nenhum ponto de vista, o requisito em causa se afigura poder ser válido.
Não o é relativamente ao regime de incentivos para os militares por ser manifestamente irrelevante, para efeitos de ingresso no serviço militar em regime de voluntariado ou de contrato, a existência de uma matrícula no ensino superior público, não havendo razão para restringir o incentivo a esse propósito.
Como se viu, os incentivos pretenderam atrair novos voluntários para o serviço militar, concedendo-lhes condições especiais de aquisição de habilitações que permitisse uma melhor futura integração na vida activa.
Limitando este incentivo especial, relativo ao acesso ao ensino superior, o Regulamento contraria, de facto, os objectivos do diploma, introduzindo um factor susceptível de reduzir a sua eficácia junto de um conjunto significativo de potenciais destinatários, quer por tornar menos atractiva a adesão à vida militar quer por restringir as possibilidades de aquisição de formação que o diploma pretendeu conferir.
O requisito em causa tão pouco se justificará à luz dos princípios que subjazem ao regime de acesso ao ensino superior, por a anterior inscrição em estabelecimento de ensino superior público não apresentar qualquer relevância para efeitos de apreciação de nova candidatura. Repare-se que, em todo o normativo aplicável ao ingresso no ensino superior, referente seja ao regime geral seja aos regimes especiais, seja ao concurso geral seja aos concursos especiais, nunca a circunstância de o candidato ter feito uma inscrição num estabelecimento de ensino superior público releva para a apreciação de uma candidatura posterior, não existindo qualquer razão para que o contrário suceda neste caso.
Não tendo justificação no quadro específico dos incentivos ao ingresso no serviço militar nem no quadro mais lato do ingresso no ensino superior, é forçoso reconhecer que a preterição contida no requisito a que alude o disposto no artigo 13.º, alínea b) do Regulamento é ilegal, por introduzir uma limitação arbitrária e abusiva no acesso ao contingente especial destinado aos militares em regime de voluntariado ou de contrato, diminuindo o alcance do incentivo previsto no artigo 4.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 336/91.

b) violação de expectativas

Por outro lado, considero que seria sempre inaceitável o modo como a mesma foi introduzida, designadamente por defraudar expectativas que legitimamente pudessem ter sido criadas nos candidatos que venham a ser prejudicados pela alteração em apreço.
A este respeito, não procede argumentar-se que o regulamento é publicado anualmente, pelo que não seria fundada qualquer expectativa que se pudesse retirar a partir de regulamentos que tenham vigorado para concursos anteriores.
Antes de mais porque a expectativa de facilidade de ingresso baseia-se não só nos regulamentos do concurso, mas também no já referido diploma que estabelece os incentivos para os regimes de voluntariado e de contrato o qual, como se viu, não prevê qualquer limitação para os candidatos que estivessem já estado inscritos em estabelecimentos de ensino superior público.
Independentemente disso, o facto de o ingresso no contingente especial ter sido sucessiva e reiteradamente condicionado à mera prestação do serviço militar efectivo sem mais, não pode deixar de se considerar como circunstância apta a gerar expectativas nos interessados, tanto mais credoras de respeito quanto passíveis de influenciar a conduta dos candidatos num período muito anterior àquele em que ocorre a publicação do regulamento do concurso.
No caso que suscitou o presente processo como noutros semelhantes que possam ter ocorrido, a expectativa de se obter a posterior vantagem no acesso ao ensino superior motivou a inscrição e realização de serviço militar efectivo por parte de um candidato ao ensino superior, durante cerca de um ano lectivo.
O Estado não pode deixar de proteger as expectativas assim criadas e pelas quais é responsável, tanto mais que a alteração das normas de ingresso no contingente especial agora reclamada não poderia ser esperada pelos candidatos afectados, não só por, como atrás se viu, ser contrária à lógica subjacente aos incentivos ao regime militar mas também por ter sido publicada apenas algumas semanas antes de se iniciar o concurso, em momento necessariamente posterior àquele em que os candidatos realizaram as suas opções neste domínio.
A violação das expectativas assim criadas, por via da previsão repentina e inesperada de um novo requisito de acesso ao contingente, é assim passível de gerar a invalidade da norma, por configurar uma violação do princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático.
Devo dizer, aliás, que o Ministério da Educação sempre foi, e bem, sensível a esta questão, tendo por diversas vezes pautado a sua actuação por critérios que visaram acautelar as expectativas dos alunos que se preparavam para candidatar ao ensino superior , ainda que estribadas apenas em anteriores regulamentos de concurso.
Ora, no caso vertente, esse cuidado foi pura e simplesmente ignorado, verificando-se ter o novo regulamento introduzido uma alteração significativa nas condições de acesso ao contingente, passível de afectar directamente a situação de alguns candidatos, que acalentavam legítimas esperanças de ingresso, eventualmente goradas pela alteração com que razoavelmente não poderiam contar.

4. Atento o exposto, entendo ser o requisito em questão ilegal, por violar o principio da confiança decorrente ao Estado de Direito, previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, bem como por contrário ao disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 336/91, de 10 de Setembro.
Termos em que, e ao abrigo dos poderes que me são legalmente pelo artigo 20.º, n.º 1 do Estatuto do Provedor de Justiça, contido na Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:

a Vossa Excelência que o artigo 13.º, alínea b) seja de imediato revogado e dado sem efeito, passando a poderem ingressar no contingente especial em causa os candidatos que preencham somente o requisito fixado na alínea a) do referido preceito.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel