Ministra da Saúde
R-1470/98
Nº 20/B/99
1999.06.14
Área : A3

Assunto:SAÚDE – CARÊNCIA ECONÓMICA – NECESSIDADE DE CONSUMO DE MEDICAMENTOS – ALTERAÇÃO DO REGIME ESPECIAL DE COMPARTICIPAÇÕES

Sequência:Sem Resposta.

1. Foram-me dirigidas diversas reclamações relativas ao Decreto-Lei n.º. 118/92, de 25 de Junho, que estabelece o regime de comparticipação do Estado no preço dos medicamentos prescritos aos utentes do Serviço Nacional de Saúde e aos beneficiários da Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE).

2. Em tais reclamações está essencialmente em causa o disposto no artigo 3º deste diploma, que de seguida se transcreve:
“1- A comparticipação do Estado no custo dos medicamentos integrados nos escalões B e C é acrescida de 15% para os pensionistas que aufiram pensões de montante não superior ao salário mínimo nacional.
2- Os beneficiários do regime especial de comparticipação devem fazer prova da sua qualidade através de documento emitido pelos serviços oficiais competentes.”

3. Duas das reclamações apresentadas dizem respeito à situação de casais em que apenas o marido é pensionista, com pensão de valor superior ao salário mínimo nacional, não beneficiando a mulher de qualquer pensão num caso, e no outro beneficiando de pensão no valor de cerca de 30.000$00, de tal forma que da divisão por dois do cúmulo de tais pensões resulta um valor inferior ao salário mínimo nacional.
No entanto, em virtude do regime em causa, num caso, nenhum dos membros do casal tem direito ao benefício do regime especial de comparticipação, por nenhum deles preencher o requisito constante do n.º. 1 da norma citada, ou seja, auferir pensão de valor inferior ao salário mínimo nacional. No outro caso, apenas o cônjuge que aufere pensão de valor mais reduzido tem acesso ao regime especial de comparticipação de medicamentos, o que os reclamantes consideram injusto.

4. Outra das reclamações respeita a um pensionista de sobrevivência a quem, embora auferindo pensão de valor inferior ao salário mínimo nacional, foi negado, a partir de 1997, o acesso ao regime especial de comparticipação com o argumento de que este pensionista teria rendimentos que, somados com a referida pensão, seriam superiores ao salário mínimo nacional.
O reclamante confrontou por diversas vezes a Sub-Região de Saúde do Porto, invocando que o artigo 3º do Decreto-Lei n.º. 118/92 apenas refere “pensionistas que aufiram pensões de montante não superior ao salário mínimo nacional”, pelo que a actuação daquela Sub-Região seria ilegal. No entanto, a sua pretensão foi negada com o argumento de que deveria ser considerada a soma da pensão com os rendimentos do trabalho, resposta que se manteve perante indagação da Provedoria de Justiça.
Posteriormente contactada pela Provedoria de Justiça, a Administração Regional de Saúde do Norte considerou que no caso em apreço, muito embora a “interpretação” realizada pela Sub-Região de Saúde competente fosse correcta, o processo em causa não se encontrava suficientemente instruído, uma vez que dele não constavam elementos relativos aos rendimentos globais do pensionista, nomeadamente a sua declaração de I.R.S..

5. Com vista a uma correcta interpretação das disposições legais em causa, creio ser indispensável atentar ao disposto no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 118/92, nomeadamente ao seguinte trecho:
“A determinação dos escalões de comparticipação do Estado no custo dos medicamentos tem subjacentes critérios de essencialidade e de justiça social.
Assim, o escalão A, em que o Estado suporta integralmente o custo do medicamento, abrange as especialidades farmacêuticas que são imprescindíveis e afectam grupos de utentes que se encontram em situações de desvantagem, nomeadamente doentes crónicos que, para além do mais, em casos excepcionais beneficiam de um regime excepcional, a fixar pelo Ministro da Saúde. A comparticipação integral, ao recair sobre medicamentos indispensáveis e cujo consumo é acrescido, garante um mínimo gratuito na assistência medicamentosa.
Nesta perspectiva, a redução da percentagem nos escalões B e C da comparticipação irá permitir uma redistribuição dos recursos, criando condições para um acréscimo de comparticipação para as pessoas de mais fracos rendimentos e riscos de maior consumo de medicamentos.”

6. Verifica-se, pois, que o Decreto-Lei n.º 118/92 aponta para dois critérios para atribuição do regime especial de comparticipação de medicamentos dos escalões B e C:
1)Critério da especial necessidade de consumo de medicamentos,
2)Critério de carência económica.

7. No entanto, a redacção do artigo 3º não permite que se cumpra o objectivo de atribuição do regime especial de comparticipação de medicamentos a pessoas em tais circunstâncias, conforme passo a expor:

8. Em primeiro lugar, o objectivo de conferir um regime mais favorável de comparticipação pelo Estado a quem tenha especial necessidade de consumo de medicamentos não é alcançado, quer por a actual formulação legal permitir que sejam beneficiados cidadãos que não têm necessariamente especial necessidade de consumo de medicamentos, quer por não abranger situações em que tal consumo acrescido é previsível.
8.1. Com efeito, de acordo com o preceito supra transcrito, e porque onde a Lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, estão incluídos na previsão normativa, grosso modo, três grupos de pensionistas: os pensionistas de invalidez, de velhice e de sobrevivência.
Se é certo que a maior necessidade de medicamentos se pode legitimamente atribuir ao grupo dos pensionistas de invalidez e velhice, já o mesmo não se pode dizer dos pensionistas de sobrevivência. Estes recebem um pensão por morte de um familiar, que se destina a compensar a falta de rendimentos do de cujus na esfera jurídica daqueles.
Assim, verificam-se situações em que pensionistas de sobrevivência, a quem poderão ser atribuídas pensões de valor inferior ao salário mínimo nacional, sem previsível necessidade especial de consumo dos medicamentos, usufruem de um regime especial nesta matéria (1).
Saliente-se, aliás, que a pensão de sobrevivência é calculada com base na pensão de aposentação que o falecido auferia à data da morte, ou auferiria caso se encontrasse aposentado, não estando, por isso, sujeita a qualquer “condição de recursos” relativa ao seu titular. Sou, pois, levado a concluir que a inclusão dos pensionistas de sobrevivência no preceito em análise não permite cumprir o escopo da protecção dos pensionistas mais desfavorecidos.
8.2. Se, como demonstrei, a norma abrange quem não tem especial (presumível) necessidade de medicamentos, a verdade é que deixa de fora algumas pessoas em que tal necessidade se verificará em termos idênticos aos das pessoas expressamente abrangidas.
Com efeito, o diploma optou por definir as pessoas com previsível necessidade de consumo elevado de medicamentos como “pensionistas”. No entanto, é fácil verificar que alguns não pensionistas se encontram exactamente na mesma situação:
Como se sabe, as pessoas não abrangidas por regimes contributivos de segurança social poderão aceder à pensão social, atribuída nas eventualidades de velhice e invalidez. De todo o modo, a atribuição de tal pensão está sujeita a uma condição de recursos relativa ao rendimento do agregado familiar. Com efeito, o artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 464/80, de 13 de Outubro, dispõe que:
“A pensão social será atribuída, sem prejuízo do disposto no artigo 8º, às pessoas que se encontrem nas condições referidas nos artigos anteriores, cujos rendimentos ilíquidos mensais não excedam 30% da remuneração mínima garantida à generalidade dos trabalhadores ou 50% dessa remuneração tratando-se de casal.”
Verifica-se, pois, que o limite de rendimento previsto nesta condição é bastante inferior ao estipulado no regime especial de comparticipação de medicamentos.
Assim, deveriam ser beneficiários do regime especial de comparticipação de medicamentos os não pensionistas que preenchessem os requisitos de atribuição de pensão social, exceptuada a condição de recursos. Tal não prejudicaria, obviamente, que às pessoas nestas condições fosse aplicado o critério de carência económica, em termos idênticos aos aplicados aos pensionistas.

9. Em segundo lugar, o critério da carência económica também não é inteiramente prosseguido:
A Lei dirige-se aos pensionistas que aufiram “pensões de montante não superior ao salário mínimo nacional”, ou seja, incluem-se na previsão da norma todos os pensionistas (aqueles que recebem uma ou mais pensões, de qualquer tipo) cuja soma de pensões recebidas seja inferior ao salário mínimo nacional.
9.1. A primeira ilação a tirar é a de que, ainda que tais pensionistas recebam outros rendimentos que não pensões, estes rendimentos não serão considerados para efeitos de inclusão dos seus titulares entre os destinatários da norma.
No entanto, e conforme referi, a Administração Regional de Saúde do Norte, designadamente, interpretou o n.º. 1 do artigo 3º supra citado tendo em conta a totalidade dos rendimentos auferidos pelo reclamante, invocando a necessidade de racionalizar os recursos existentes.
Ora a apreciação de cada situação, isoladamente, à luz de critérios de justiça social, exigindo, nuns casos, a apreciação da totalidade dos rendimentos, e bastando-se, noutros, com o valor da pensão, sem atender rigorosamente ao disposto na Lei, gera efectivas desigualdades sociais, pelo que não pode ser tolerada.
Assim, à luz das disposições legais vigentes, a actuação da Administração Regional de Saúde do Norte é ilegal, traduzindo-se inevitavelmente em situações de injustiça relativa.
Na verdade, para o efeito de considerar justificado um regime especial de comparticipação, o legislador bastou-se com a prova de dois factos: da qualidade de pensionista e de que a pensão (ou pensões) não atinge o valor do salário mínimo nacional.
Assim, sendo certo que a consideração da totalidade dos rendimentos permite aferir, de forma mais rigorosa, os agregados familiares com maiores carências, o preceito em causa deverá ser objecto de uma alteração legislativa nesse sentido que, simultaneamente, estabeleça a forma como o rendimento é apurado.
Se assim não se entender, e com vista a uma aplicação uniforme e, portanto, justa, do diploma legal em causa, deverão ser emitidas regras interpretativas de forma a garantir a correcta aplicação da norma, não se exigindo, pois, a prova de outros rendimentos, para além da relativa ao valor da pensão. Caso contrário, estariam as A.R.S. a substituir-se ao legislador.
9.2. A segunda ilação a tirar do preceito é a de que apenas são atendíveis os valores das pensões dos eventuais beneficiários do regime especial de comparticipação, e não o seu rendimento “per capita”, calculado em função do agregado familiar.
Nesse sentido, foi emitida uma Circular Informativa da Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários, com o n.º 12/DO, de 20.10.92, que esclarece que, ao apurar o valor da pensão, não se atenderá ao agregado familiar na dependência do pensionista, contrariamente ao que se defende na mesma circular informativa para o caso da isenção de pagamento de taxa moderadora.
Dispõe o n.º. 2 desta Circular Informativa:
“Com a publicação do Decreto-Lei º. 118/92, de 25 de Julho, foi criado um regime especial de comparticipação de medicamentos que abrange apenas os titulares de pensão igual ou inferior ao salário mínimo nacional, os quais terão direito a uma comparticipação do Estado superior em 15% relativamente ao definido no regime geral.
Este regime é, pois, distinto e independente do definido no Decreto-Lei n.º. 54/92 relativo a taxas moderadoras o qual, saliente-se, abrange não só os próprios pensionistas mas também o seu cônjuge e filhos menores desde que dependentes.
Justifica-se esta distinção porquanto as razões subjacentes ao regime especial não são apenas as condições económicas dos utentes mas também o seu risco de consumo alargado de medicamentos”.
No entanto, o cumprimento desta orientação normativa revela-se desajustado para efeitos da prossecução do objectivo de conceder tal benefício a pessoas em situação de carência económica.

Tomemos como exemplo as seguintes situações, que correspondem grosso modo a duas das reclamações apresentadas:
1) Apenas o marido é pensionista, auferindo uma pensão no valor de cerca de 70.000$00, acrescida de subsídio de cônjuge a cargo de valor inferior a 4.000$00. À mulher, de idade superior a 65 anos, não foi atribuída a pensão social em virtude de não preencher o requisito da condição de recursos.
Nenhum dos cônjuges é abrangido pelo regime especial de comparticipação de medicamentos, não obstante a sua previsível necessidade de consumo alargado de medicamentos e os seus rendimentos per capita serem de cerca de 37.000$00, ou seja, inferiores ao salário mínimo nacional.
2) Ambos os membros do casal são pensionistas, auferindo o marido pensão no valor de 60.000$00, e a mulher pensão no valor de 30.000$00. Apenas a mulher é abrangida pelo regime especial de comparticipação, apesar de ambos os cônjuges se incluírem no grupo de pessoas com risco de consumo elevado de medicamentos, e de os seus rendimentos per capita serem de cerca de 45.000$00.
É que, tratando-se de casais, os rendimentos e as despesas são necessariamente partilhados, pelo que não faz sentido considerar isoladamente o rendimento, ou o valor de pensão, de apenas um dos cônjuges quando ambos se encontram em idêntica situação de presumível necessidade de consumo alargado de medicamentos.
Por oposição, numa situação paralela, em que ambos os cônjuges aufiram pensão, por exemplo, no valor de 45.000$00, o que origina o valor total de 90.000$00, ambos os cônjuges terão direito ao regime especial de comparticipação, o que consubstancia uma evidente injustiça relativa, considerando os casos anteriores.
A consideração do rendimento do agregado familiar, agregado que poderá incluir pessoas sem presumível necessidade de consumo de medicamentos não implica, como é óbvio, que todos os membros do agregado beneficiem do regime especial de comparticipação em causa. Com efeito, o requisito de carência económica só é aferido depois de estar aferido o da pertença ao grupo legalmente definido como de especial risco de consumo de medicamentos (pensionista, excluindo os de sobrevivência).

10. Em conclusão, resulta da aplicação do citado preceito legal que pessoas em igual situação material, com idêntico risco de consumo de medicamentos, e com rendimentos equivalentes, são tratadas diferentemente no tocante à atribuição de regime especial de comparticipação de medicamentos.
Ou seja, os dois critérios estabelecidos no Decreto-Lei n.º 118/92 para efeitos de atribuição de regime especial de comparticipação de medicamentos, apesar de correctos, encontram-se formulados de forma insuficiente, o que gera injustiças materiais e relativas.

11. Assim, e no âmbito das faculdades que me são legalmente conferidas,RECOMENDO
que a redacção do artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 118/92, de 25 de Junho, seja alterada de forma a que:
a) Quanto ao critério da especial necessidade de consumo de medicamentos, sejam abrangidos os pensionistas, excluindo os de sobrevivência, bem como as pessoas que preenchem os requisitos para atribuição da pensão social, exceptuada a condição de recursos (ou seja, pessoas com idade igual ou superior a 65 anos, ou pessoas em situação de incapacidade total e permanente para o trabalho);
b) O critério da carência económica seja reformulado de modo a que os rendimentos das pessoas referidas na alínea anterior (ou seja, das que se presume correrem o risco de necessidade alargada de medicamentos) sejam apurados tendo em conta o rendimento per capita do agregado familiar, mantendo-se como referência da situação de carência económica o salário mínimo nacional;
c) Para efeitos da alínea anterior, sejam consideradas a totalidade dos rendimentos percebidos pelo agregado familiar e não apenas os valores das pensões auferidas pelos potenciais beneficiários do regime especial de comparticipação pelo Estado do custo dos medicamentos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel