A Ministra do Ambiente
R-3/98
Nº 18/B/99
1999.06.01
Área: A1

Assunto:AMBIENTE – RUÍDO – REGULAMENTO GERAL SOBRE O RUÍDO – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA – PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR – CAUÇÃO

Sequência: Sem resposta.

I-Exposição de Motivos

A Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), qualifica a protecção do ambiente e qualidade de vida das populações como bem público colectivo e como direito dos cidadãos, incumbindo ao Estado, através dos organismos próprios, promover a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, quer individual, quer colectiva (artigo 2º), sendo tal direito acolhido, de forma clara e inequívoca, no nosso ordenamento jurídico, como direito fundamental.
Efectivamente, a Constituição, que neste particular se revela paradigmática em face dos demais modelos constitucionais europeus, eleva o direito ao ambiente como direito fundamental do cidadão (artigo 66º, n.º 1) e como tarefa fundamental do Estado (artigo 9º, alíneas d) e e)), autonomizando-o relativamente aos demais direitos nela consignados como sejam, entre outros, o direito à vida, o direito à saúde e o direito à propriedade.

O direito a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado deve, pois, ser assumido como direito subjectivo de todo e qualquer cidadão individualmente considerado, podendo mesmo ser qualificado, na expressão utilizada por GOMES CANOTILHO, “como direito subjectivo inalienável, pertencente a qualquer pessoa”, configurando-se,”…como um verdadeiro direito fundamental, formal, e materialmente constitucional” (“Procedimento Administrativo e Defesa do Ambiente”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3802, pgs. 8 e 9).
Pode, por outro lado, de acordo com a ordem jurídico-constitucional portuguesa, assumir-se como direito a uma acção do Estado (artigo 66º, nº 2 da CRP), ao qual está adstrito o dever jurídico de desenvolver os necessários mecanismos de controlo e de prevenção das acções poluidoras que concorram para a degradação da qualidade do ambiente, nelas se incluindo, entre outras, e ao nível do direito instituído, as acções que afectem negativamente a saúde e o bem-estar das populações (artigo 21º da Lei de Bases do Ambiente).
Entre os deveres cometidos ao Estado neste âmbito, releva o específico dever de prevenção do ruído (artigo 22º, alínea f) da Lei de Bases do Ambiente) ao qual corresponde o direito dos administrados à protecção contra o ruído, direito que goza de especial tutela garantística, e merece, por isso, por parte dos órgãos e serviços da Administração Pública, especial atenção. Com efeito, a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, em concretização, aliás, do princípio da legalidade e do princípio da prossecução dos direitos e interesses dos cidadãos (Artigo 266º, nº1 e nº 2 da CRP e artigos 3º e 4º do Código do Procedimento Administrativo), pelo que não pode deixar de acautelar, no exercício das funções que lhe são cometidas, o respeito pelo cumprimento das normas legais aplicáveis em matéria de ruído.

Por outro lado, constituindo a poluição sonora um dos principais factores de degradação da qualidade de vida das populações, impõe-se a adopção de medidas preventivas e repressivas eficazes e mitigadoras do ruído, o que se materializa na rigorosa observância dos níveis sonoros legalmente exigíveis no que tange ao exercício de actividades ruidosas, através de numa acção fiscalizadora pronta e eficaz.

Ora, se se puser em evidência que o ambiente é um bem jurídico fundamental, consagrado constitucionalmente como direito subjectivo dos indivíduos, qual seja o direito de estes desfrutarem de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66º da CRP), concretizado, no nosso ordenamento jurídico, na Lei de Bases do Ambiente (artigos 2º, nº1 e 40º, nº 4), não poderá o Provedor de Justiça, no exercício das funções que lhe são cometidas de defesa e promoção dos direitos liberdades, garantias e dos interesses legítimos dos cidadãos, deixar de intervir sempre que esteja em causa a protecção desses direitos ou interesses ou a sua denegação e, bem assim, não se poderá furtar a assinalar as eventuais deficiências da legislação a este propósito.

As múltiplas reclamações apresentadas a este Órgão do Estado, na sua grande maioria contra a omissão dos poderes públicos no domínio que vem sendo referido, evidenciam a insuficiência de meios no combate e na prevenção da poluição sonora que se vem manifestando em todos os segmentos da vida em comunidade, e revelam-se como indicadores das deficiências de interpretação e aplicação do regime contido no Regulamento Geral Sobre o Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei nº 251/87, de 24 de Junho.
Tal desiderato foi, aliás, objecto da Recomendação por mim formulada que, em 29 de Setembro de 1993, dirigi à antecessora de Vossa Excelência, onde se apontavam algumas das principais deficiências do regime jurídico em vigor, e se concluía pela necessidade de revisão do Regulamento supra referido.
E, sem prejuízo de se revelar louvável a iniciativa desenvolvida pelo Ministério do Ambiente relativamente à proposta de alteração legislativa, em curso, do Regulamento Geral Sobre o Ruído, atento o esforço nela patenteado de se corrigirem muitas das deficiências sentidas na aplicação do regime jurídico contido no citado texto legal, o certo é que ficaram excluídas do seu campo de análise outras tantas questões que importa resolver em sede de ruído, das quais se destaca a que ora me motivou a intervir, qual seja a da imposição ao lesado por actividades ruidosas da prestação de uma caução sempre que este requeira a realização de exames acústicos, por motivo de avaliação do grau de incomodidade sonora proveniente das referidas actividades.
Na realidade, aquela imposição decorre da Portaria nº 326/95 (2ª série), de 4 de Outubro, diploma que visou dotar as Direcções Regionais do Ambiente e Recursos Naturais -actualmente, Direcções Regionais do Ambiente, por força do disposto no Decreto-Lei nº 230/97, de 30 de Agosto – da adequada contrapartida financeira que lhes seria devida pelo acréscimo de atribuições que, “ex novo”, lhes teriam sido cometidas pelo Decreto-Lei nº 190/93, de 24 de Maio.
Na perspectiva da “mens legislatoris” subjacente ao Preâmbulo do citado diploma legal, tal justifica-se pela necessidade de dotar as Direcções Regionais do Ambiente “…de instrumentos que lhes permitam gerir receitas como contrapartida dos serviços que, no âmbito das competências que lhes estão legalmente conferidas, são chamadas a exercer”, tudo assente no pressuposto de que “…os custos do funcionamento dos serviços devem ser tendencialmente suportados pelos respectivos utilizadores”.

Com aquele alegado objectivo, adoptou-se o mesmo critério relativamente a procedimentos diversificados e de natureza distinta, como sejam, a cobrança de emolumentos pela passagem de certidões, declarações, pareceres, e pela realização de vistorias, medições, peritagens e análises laboratoriais, obtenção de dados da rede nacional, regional e local da qualidade do ar, venda de publicações e impressos (artigo 1º da Portaria nº 326/95 (2ª série), de 4 de Outubro), com a imposição da prestação de uma caução de Esc. 15 000$00 (quinze mil escudos) pela execução de ensaios acústicos ´”…realizados no âmbito de acções de fiscalização do cumprimento do Regulamento Geral sobre o Ruído, para avaliação do grau de incomodidade do ruído na sequência de reclamações e a requerimento de entidades públicas ou privadas” (artigo 1º, alínea g)i) da Portaria nº 326/95, de 4 de Outubro).

Ora, se o primeiro grupo de actividades administrativas configura a prestação de serviços requeridos por particulares à Administração, caso em que parece perfeitamente legítimo que esta cobre uma taxa que a compense pelo trabalho realizado e pelos benefícios recolhidos pelos particulares na percepção de tais serviços, outro tanto não sucede no caso dos ensaios acústicos previstos na alínea g)i) do artigo 1º da supra referida Portaria.
Com efeito, no artigo 33º do Decreto-Lei nº 251/87, de 24 de Junho, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 292/89, de 2 de Setembro, atribuem-se às entidades com superintendência técnica em cada sector – no âmbito das quais se integram as Direcções Regionais do Ambiente na respectiva área de jurisdição – competências fiscalizadoras em matéria de ruído.

Na realidade, e não nos atendo, nesta sede, às implicações decorrentes da falta de rigor da expressão, pouco clara e equívoca, contida no citado normativo, qual seja a de “entidades com superintendência técnica em cada sector”, certo é que a competência para a fiscalização do cumprimento das disposições constantes do Regulamento Geral Sobre o Ruído compete, entre outras entidades, às Direcções Regionais do Ambiente.

Assim sendo, o adequado exercício de uma acção fiscalizadora, pronta e eficaz, dos níveis sonoros legalmente estabelecidos relativamente às actividades geradoras de ruído, cuja aferição passa necessariamente pela realização dos competentes ensaios acústicos constitui, em si mesmo, o exercício de uma competência legalmente atribuída ás mencionadas Direcções Regionais.

Ora, o princípio da legalidade administrativa impõe aos órgãos administrativos que subordinem a sua conduta em obediência à Lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes são atribuídos e em conformidade com os fins a que os mesmos poderes lhes são conferidos (artigo 266º, nº 2 da CRP e artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo), impondo, outrossim, que exerçam as competências que lhes são confiadas.
Do exposto emerge, como concretização do princípio da legalidade da competência administrativa, a imposição às Direcções Regionais do Ambiente, no desempenho da sua actividade administrativa – em particular, no âmbito da sua acção fiscalizadora – a realização de ensaios acústicos.

Na realidade, tais ensaios acústicos, mesmo quando realizados na sequência de reclamações e a requerimento de entidades públicas ou privadas, sempre exprimem uma acção de fiscalização do cumprimento do Regulamento Geral sobre o Ruído, actividade fiscalizadora que, em todo o caso, já correspondia a uma incumbência, a uma obrigação de facere da própria Administração; e, assim, as reclamações e os requerimentos de realização de ensaios acústicos fundamentados na alegação de situações concretas de excesso de ruído não devem ser identificadas com a prestação de um serviço da Administração a particulares, revelando-se, antes, em tudo compaginável com o dever legal de actuar das entidades administrativas com competências neste domínio, o que fazem na prossecução das atribuições que lhes são legalmente conferidas.

Ao invés, aquelas reclamações e aqueles requerimentos, muito em especial quando subscritos por particulares, sempre deveriam ser havidos como “iniciativas dos particulares” e “informações” e, como tal, apoiados e estimulados pelos respectivos órgãos da Administração Pública, nos termos do preceituado na alínea b) do nº 1 do Artigo 7º do Código do Procedimento Administrativo.
O que sucede com a previsão normativa ínsita no preceito da Portaria a que me venho referindo é que, ao encontrar-se nos antípodas do entendimento plasmado no Código do Procedimento Administrativo enquanto princípio da colaboração da Administração com os particulares, a que antes também me referi, interpreta cada reclamação sobre excesso de ruído como subscrita por alguém que carece de razão ou que, no mínimo, possui e não deveria possuir uma hipersensibilidade auditiva que “irá forçar”, desnecessariamente, a agir, a administração a quem incumbe fiscalizar o cumprimento do Regulamento Geral Sobre o Ruído.

Com efeito, o normativo em presença estabelece a presunção de que o cidadão que se julga lesado por actividade geradora de ruído carece de razão até prova em contrário, prova essa produzida, a final, pela própria Administração à qual incumbiria, por excelência, o dever legal de actuar ex oficio.
Pelo que vem dito, a obrigação da prestação de uma caução de Esc. 15 000$00, por cada reclamação sobre excesso de ruído exprime, assim, um processo de intenção instaurado contra cada reclamante, visto pela Administração, até prova em contrário, não como a vítima indefesa de um excesso de poluição sonora, mas como o único “culpado” pela desnecessária e ingente tarefa de desencadear um procedimento administrativo.
Tal encargo pode, por outro lado, constituir um elemento dissuasor para o cidadão prejudicado no seu direito ao repouso e a um ambiente sadio, por motivo de excesso de poluição sonora, na medida em que este poderá desmotivar-se perante a exigência da prestação de uma caução, atentas as contingências próprias da sensibilidade auditiva e da difícil constatação prévia de que os níveis de ruído reclamados coincidam, rigorosamente, com os índices sonoros legalmente fixados.

A opção legislativa adoptada suscita, pelo exposto, sérias reservas, tanto quanto condiciona a realização de exames de medição acústica à prestação de uma caução, tentando-se reparar a incongruência desta opção legislativa isentando daquela obrigação o particular que puder demonstrar a sua comprovada insuficiência económica (artigo 3º ,”in fine” da Portaria 326/95, de 4 de Outubro).

Efectivamente, se o particular já carrega consigo o peso da sua comprovada insuficiência económica, não se vê como possa ter a força anímica bastante para, confrontado com a reiterada violação do direito ao repouso, desencadear os necessários mecanismos para se queixar de uma agressão contra o ambiente e da lesão de um direito fundamental que lhe assiste.
Haverá, por certo, situações em que ao reclamante não assiste qualquer razão, que reclama por reclamar ou, pior do que isso, reclama por motivo de existirem eventuais conflitos puramente pessoais de vizinhança. Em casos destes, afigura-se-me da mais salutar justiça que o impetrante pague, que a sua actuação seja cominada com a aplicação de uma coima graduada em função da gravidade do seu comportamento e que, inclusivamente, se pondere na criação da figura jurídica do reclamante de má-fé.
Esta cominação, todavia, segundo creio, deveria cingir-se a situações de manifesta improcedência, quando os resultados da medição se situem muito aquém do valor de 10 dB (A) de diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente, corrigido, e o valor do ruído de fundo, que é excedido, num período de referência, em 95% da duração deste.
Dir-se-á, pelo exposto, que a ser prestada caução, tal encargo deverá ser suportado por quem mantém uma actividade potencialmente ruidosa ou por quem retire o benefício dessa actividade, onerando, antes, o agente poluidor que ficaria adstrito a suportar tal encargo, em conformidade, aliás, com o postulado pelo princípio do poluidor-pagador, qual seja o de que o agente causador da poluição seja responsabilizado pelos danos causados no ambiente e a terceiros e obrigado a corrigir ou a recuperar os recursos naturais, suportando os encargos daí resultantes.

Na verdade, os fins que o princípio a que atrás se alude permite realizar são a precaução e a prevenção dos danos ao ambiente e, bem assim, a justiça na redistribuição dos custos decorrentes das medidas públicas de luta contra a degradação do ambiente.

Assim sendo, a admitir a eventualidade de o procedimento administrativo de licença ou de autorização da actividade potencialmente ruidosa não integrar uma análise acústica (até por esta só se mostrar possível depois de iniciada a actividade), justo seria impor ao interessado a prestação de uma caução por conta da realização de exame de medição acústica. A verificar-se a perfeita compatibilidade com os padrões de ruído, operar-se-ia a devolução da quantia ao interessado.

Esta ideia não se mostra sequer inovadora, pois na Lei de Bases do Ambiente é previsto mecanismo análogo para os casos de estabelecimentos e actividades de exploração do subsolo, cujo licenciamento importa a prestação de caução para garantia do cumprimento da obrigação de recuperação da paisagem (artigo 33º, nº 4).
Ademais, sendo o cidadão titular de um direito ao ambiente porquanto goza, face ao nosso ordenamento jurídico, de uma posição jurídica subjectiva, tutelada como direito fundamental pela Constituição, é seguramente ao responsável pela poluição sonora a quem se devem pedir medidas que permitam de alguma forma reparar os efeitos nocivos contra o ambiente, resultantes de determinada actividade geradora de ruído, conforme, aliás, decorre da conjugação dos princípios da prevenção, da responsabilização e do poluidor-pagador, consagrados no artigo 3º, alíneas a) e h) da Lei de Bases do Ambiente.
Solução, aliás, que se compagina, do mesmo passo, com o princípio da correcção na fonte dos danos ao ambiente, o qual redunda na imposição ao poluidor, enquanto fonte subjectiva ou causador da poluição, do dever de modificar a sua conduta, expurgando-a de acções lesivas do ambiente ou rectificando-a de modo a reduzir ao mínimo as agressões ambientais.

A corroborar todo o expendido, importará, ainda, ter presente o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo, consagrado no artigo 11º do Código do Procedimento Administrativo, nos termos do qual se afirma que a actividade procedimental é gratuita, exceptuando o caso de vigorarem leis especiais que imponham o pagamento de taxas ou de despesas efectuadas pela Administração.

Deste modo, e ainda que o procedimento administrativo seja desencadeado por iniciativa do administrado, sempre se dirá que a gratuitidade procedimental deverá ser a regra, maxime quando esteja em causa, por um lado, um direito fundamental dos administrados, constitucionalmente garantido – como é o direito a um ambiente de vida humano sadio, que se acautela através da prevenção e controlo da poluição, no caso vertente, da poluição sonora (artigo 66º, nº 1 e nº 2, alínea a) da CRP) – e, por outro, o dever de fiscalização do cumprimento da Lei, no exercício da actividade administrativa. Na realidade, no âmbito do procedimento administrativo devem ” …ser gratuitos todos os actos que não impliquem actividade extraordinária dos serviços requerida em proveito predominante dos particulares” (MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 1980, Vol. II, pg. 1297).

Ora, no caso vertente, a fiscalização do cumprimento dos níveis sonoros estabelecidos na Lei, não implica qualquer “actividade extraordinária” por banda da Administração, sendo, antes, realizada para prosseguir um interesse público e representa, na sua essência, o exercício de uma competência legalmente atribuída às Direcções Regionais do Ambiente, no âmbito das competências de fiscalização que lhe são atribuídas.

O princípio da gratuitidade tendencial do procedimento administrativo, longe de constituir uma regalia ou um privilégio, é verdadeiro corolário do princípio da legalidade administrativa. O regular exercício das funções de polícia administrativa por parte da Administração Pública, por que garantia do primado da Lei e da protecção que esta confere a certos bens, não pode ser deixado ao impulso dos administrados, quando para mais se condiciona a sua iniciativa a um esforço pecuniário significativo.

O administrado que pede a intervenção dos órgãos de fiscalização invocando a convergência do seu interesse particular com o interesse público lesado, não pode ser sujeito de procedimento análogo àquele que é próprio dos pedidos de licença, de autorização ou de dispensa administrativa.

A fiscalização do cumprimento dos níveis sonoros legalmente exigíveis, constitui, assim, um dever legal que é cometido aos órgãos e serviços com competências neste domínio, através de uma acção fiscalizadora que comporta a adopção de diligências administrativas, entre as quais se inclui a realização de exames acústicos.

Com efeito, no pressuposto de que, e conforme é constitucionalmente garantido, a actividade administrativa visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e no respeito pelo princípio da legalidade (artigo 266º, nº1 e nº 2 da CRP), conclui-se, pois , que a fiscalização das actividades ruidosas é de interesse público, quanto mais não seja por se tratar da fiscalização do cumprimento da Lei, nomeadamente, da fiscalização do Regulamento Geral Sobre o Ruído.

Em suma, o exercício dos poderes de fiscalização pelas autoridades administrativas consignados no Regulamento Geral Sobre o Ruído corresponde a um dever legal de agir por parte destas, no âmbito do exercício da sua actividade de polícia administrativa.
Assim sendo, e atento a que a acção fiscalizadora em matéria de ruído, se desenvolve no âmbito da prossecução do interesse público, sem prejuízo de, como se disse, não poucas vezes, este coincidir com o interesse dos particulares, suscitam-se sérias reservas quanto à legalidade da imposição aos cidadãos lesados no exercício do direito ao repouso que lhes assiste, por actividades ruidosas sujeitas à fiscalização das autoridades administrativas, do pagamento das quantias decorrentes da realização de ensaios acústicos e, bem assim, da prestação de caução, consignadas no artigo 1º, alínea g)i) e no artigo 3º, ambos da Portaria nº 326/95 (2ª série), de 4 de Outubro.

Importa, por outro lado, salientar, que o princípio da legalidade da competência administrativa implica a irrenunciabilidade e a inalienabilidade pelo órgão administrativo da competência que lhe está conferida. Como refere, a este propósito, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e OUTROS, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado, 2ª ed., Coimbra, 1997, a pgs. 192, “A irrenunciabilidade e inalienabilidade, pelo órgão administrativo, da competência que lhe está legalmente conferida (tanto da sua titularidade como do seu exercício), são também corolários do princípio da legalidade e da sua funcionalidade jurídico-pública, entendida como uma adstrição da Administração à prossecução de interesses públicos. Por isso, os órgãos administrativos estão legalmente obrigados a exercer a sua competência – e um poder que se exerce por cominação funcional da Lei é sempre, salvo disposição em contrário, de exercício pessoal, insusceptível de delegação ou de procuração. Não se trata, portanto, de regras ou princípios com vista à protecção dos interessados, mas de uma constrição que impende sobre os órgãos administrativos (ou competentes em matéria administrativa), com o objectivo de garantir a prossecução do interesse público”.

Neste pressuposto, a prestação de caução como condição do exercício de uma competência administrativa fixada por Lei para a prossecução do interesse público, poderá significar a renúncia ao exercício de uma competência, pelo que as normas constantes da Portaria nº 326/95 (2ª série), de 4 de Outubro devem, neste particular, ser tidas como nulas (artigo 29º, nº2 do Código do Procedimento Administrativo).
Mas ainda que as reservas formuladas não encontrassem o apoio na legalidade, sempre seria de ter presente um considerável imperativo de justiça ao compaginar a actividade ruidosa, da qual o agente tantas vezes retira proveito económico, com a situação do administrado que se diz perturbado no sossego e repouso a que tem direito.
Concordará Vossa Excelência que é difícil aos administrados reclamantes compreenderem por que motivo têm eles, e não o reclamado, o ónus de suportar os custos da fiscalização.

II-Conclusões

De acordo com o exposto, e no exercício dos poderes que me são conferidos pelo artigo 23º, nº1 da Constituição e pelo artigo 20º, nº1, alínea b) da Lei nº 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça),RECOMENDO
– Que seja revogada a norma constante da alínea g)i) do artigo 1º da Portaria nº 326/95 (2ª série), de 4 de Outubro, por motivo de impor, como contrapartida da realização dos ensaios acústicos realizados pelas Direcções Regionais do Ambiente no âmbito de acções de fiscalização do cumprimento do Regulamento Geral Sobre O Ruído, para avaliação do grau de incomodidade sonora, na sequência de reclamações e a requerimento de entidades públicas ou privadas, o pagamento da quantia de Esc. 50.000$00 (cinquenta mil escudos) e de Esc. 70.000$00 (setenta mil escudos), respectivamente.
– Que seja revogada a norma constante do artigo 3º da Portaria n.º 326/95, de 4 de Outubro (2ª série), por motivo de impor às entidades públicas ou privadas, que em sede de reclamação por excesso de ruído requeiram a realização de ensaios acústicos, a prestação de uma caução.
– Que seja determinada a prestação de caução aos agentes económicos que desenvolvam actividades ruidosas, a qual poderá ser devolvida caso não surjam, num prazo razoável, reclamações por incomodidade imputada à actividade ou, surgindo, venha a concluir-se pela sua improcedência.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel