Ministro da Justiça
R- 5050/98
Nº 15/B/99
1999.05.10
Área: A5

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – RECLUSO – DETENÇÃO – MULHER – FILHOS MENORES – DIREITO DE ASSISTÊNCIA À FAMÍLIA – ALTERAÇÃO DO REGIME JURÍDICO.

Sequência:

I-Exposição de Motivos

1. Foi recebida neste órgão do Estado uma queixa de uma cidadã em relação à detenção a que foi sujeita por dois agentes de uma esquadra da PSP da zona de Lisboa, pelas 20.00 horas, no seu domicílio, para ser presente a julgamento no dia seguinte em comarca distinta. Concretamente, insurgiu-se contra o facto de ter sido detida e conduzida àquela esquadra na presença das suas duas filhas menores (uma de um ano de idade e outra com três anos), que a acompanharam.

2. Na efectivação da detenção, a PSP informou a reclamante que poderia deixar as crianças onde quisesse ou então teria que as levar para a esquadra. No caso de não existir ninguém que as pudesse ir buscar à esquadra, teriam de lá ficar à guarda da PSP.

3. Na esquadra da PSP foi permitida uma chamada telefónica.

4. Tendo solicitado informação ao Senhor Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública, nomeadamente, sobre quais as instruções que os agentes daquela força de segurança têm relativamente ao procedimento a adoptar neste tipo de situações, fui informado não existirem quaisquer instruções definidas relativas à efectivação de mandados de detenção.

5. De igual modo o Código de Processo Penal (CPP) é omisso em relação à previsão deste tipo de situações, bem como não existe legislação extravagante que as tutele.

6. Esta situação concreta – existência de filhos menores – permite a extrapolação, perante a inexistência de dispositivo legal ou mesmo regulamentar que a preveja, para situações de igual natureza. Como devem actuar os órgãos de polícia criminal que procedem a uma detenção quando verificam que a pessoa a deter assegura a assistência a familiar doente? E quando esta tem a seu cargo a assistência de um deficiente? Ou de um idoso?

7. É este conflito positivo de causas – por um lado o dever de cumprimento de mandado judicial, por outro a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros directa e imediatamente lesados com o cumprimento do mesmo – que me leva a ponderar a necessidade da existência de regulação quanto aos requisitos de modo, ou de exercício, de efectivação de mandado de detenção.

II-Fundamentos

8. Os mandados de detenção, nos termos do art. 254º do CPP, têm como finalidade garantir a apresentação do infractor a julgamento sob a forma sumária, no prazo de 48 horas, a apresentação a juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de medida de coacção ou ainda para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em acto processual, não podendo neste caso o período de detenção exceder 24 horas (alíneas a) e b) do n.º 1).

9. Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada por mandado ao juiz ou pelo Ministério Público nos casos em que for admissível a prisão preventiva (art. 257º, n.º 1).

10. A execução de mandado de detenção comporta o dever de comunicação ao juiz que o ordenou, quando este tem como objectivo assegurar a presença do detido em acto processual, ou ao Ministério Público, nos restantes casos (259º).

11. À detenção, nos termos do art. 260º, devem aplicar-se os requisitos constantes dos artigos 192º, n.º 2, 194º, n.º 3, segunda parte e n.º 4. Deste modo, a efectivação da detenção está sujeita a condições relativas à inutilidade superveniente da mesma, patente causa de isenção da responsabilidade ou extinção do procedimento criminal (art. 192º, n.º 2), comunicação a parente, pessoa de confiança ou a defensor indicado, a qual está dependente de consentimento quando o arguido for maior de 18 anos (art. 194º, n.º 3, segunda parte e n.º 4).

12. Sucede porém que podem verificar-se situações em que da efectivação da detenção resultem prejuízos graves e imediatos para terceiros que estão dependentes da pessoa a deter. Serão os casos, nomeadamente, de idosos, ascendentes ou não do sujeito, crianças, descendentes ou não e assistência a pessoas doentes, nomeadamente deficientes.

13. A Constituição pretende garantir, de modo global, os direitos daqueles sujeitos jurídicos. A protecção da família tem garantia constitucional vertida no art. 67º, a protecção na infância no art. 69º, a protecção dos deficientes no art. 71º e os cidadãos idosos encontram garantias no art. 72º.

14. Ora, no tipo de situações sub judicio a efectivação do mandado de detenção – inquestionável enquanto legítimo – comporta efeitos negativos reflexos que não encontram qualquer justificação jurídica.

15. Mais, não há previsão legal com vista a anular ou, pelo menos, atenuar esses efeitos negativos.

16. Perante o quadro normativo vigente, estas pessoas são objecto de uma permeabilidade nos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não beneficiando de uma protecção jurídica adequada.

17. Se tivermos presente a teoria dos lugares paralelos – situações semelhantes merecedoras de idêntico tratamento jurídico – podemos encontrar a situação da detenção para identificação, prevista no art. 250º, n.º 6 a 9. Esta obedece a requisitos de modo que visam proteger o cidadão detido, as quais não se verificam nas outras detenções. Prevê este artigo, nomeadamente, que caso o suspeito não seja portador de nenhum documento de identificação pode comunicar com pessoa que apresente os seus documentos, pode deslocar-se acompanhado pelos órgãos de polícia criminal ao lugar onde estes se encontrem (alíneas a) e b) do n.º 5).

18. As faculdades antes descritas são passíveis de aplicação por analogia caso se trate de uma detenção a coberto do art. 254º do CPP. Vejamos: porque não há-de poder o detido comunicar com pessoa que assegure a assistência ou, nessa impossibilidade, serem os órgãos de polícia criminais que promovem a manutenção dessa assistência, nomeadamente levando os sujeitos afectados a familiar ou pessoa de confiança?

19. O que está em causa, portanto, não é o cumprimento de mandado de detenção, mas sim os requisitos a que a sua efectivação deve respeitar. Os direitos e interesses juridicamente protegidos de terceiros não podem ser preteridos neste grau para assegurar um dever de cumprimento da justiça.

20. Noutro prisma, se o legislador entendeu, e bem, proteger as vítimas, assegurando-lhes direitos, não pode nestes casos, esquecer que estas pessoas são igualmente vítimas de uma acção desencadeada pelo Estado.

21. Com efeito, não podem os órgãos de polícia criminal que executam um mandado de detenção alhear-se dos efeitos gerados pela mesma e que contendem com direitos de terceiros.

22. Como não pode a sua atitude ser pautada por critérios que não estejam legalmente estabelecidos, sob pena de arbítrio e de violação do princípio da igualdade.

23. Aliás, estamos perante direitos fundamentais, cuja efectiva garantia não é compatível com actos materiais – que podem até ser louváveis – sem suporte legal prévio.

24. O procedimento dos órgãos de polícia criminal relativo ao cumprimento de um mandado de detenção há-de conformar-se com requisitos legalmente definidos, os quais são os únicos hábeis a permitir uma garantia eficiente dos direitos fundamentais em risco dos terceiros em consequência da efectivação daquele mandado.

III-Conclusões

25. Assim, entendo verificar-se uma lacuna normativa relativamente à efectivação dos mandados de detenção que carece de ser suprida legislativamente, dado estarmos perante direitos fundamentais, para os quais incumbe ao Estado um dever especial de promoção e protecção.
Termos em que, no uso da competência que me é conferida no art. 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO:
A criação de medida legislativa de garantia dos direitos de terceiros, no quadro do regime de cumprimento de mandado de detenção, tendo presente, especialmente, as situações de assistência à família, a idosos, crianças e deficientes.
A garantia das situações descritas poderia conformar um regime jurídico que contemplasse alguns requisitos essenciais, os quais me permito enumerar:
i) Sempre que qualquer entidade policial proceder à detenção e que do seu cumprimento resultarem inconvenientes graves para terceiros, nomeadamente por o detido assegurar a assistência a familiar doente, idoso ou criança, deverá ser dado à pessoa a deter a possibilidade de providenciar pela manutenção dessa assistência, através de comunicação com familiar ou pessoa de confiança que a possa garantir, devendo comunicar-lhe essa faculdade.
ii) Nos casos em que os detidos não puderem providenciar pela manutenção da assistência em tempo útil, chamando familiar ou pessoa de confiança que o substitua, devem os órgãos de polícia criminal que procederam à detenção, promover, por si, o transporte imprescindível a garantir a assistência, nomeadamente levando o idoso ou a criança a casa da pessoa indicada pelo detido.
iii) Mostrando-se impossível a efectivação das situações anteriores, as autoridades procedem à detenção, devendo dar conhecimento imediato da ocorrência ao Ministério Público, tendo em vista a adopção das medidas que se mostrarem adequadas.

Aguarda parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, a solicitação do Senhor Ministro da Justiça.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel