Primeiro-Ministro

Rec. n.º 4/B/99
R-4846/98
1999.02.24
Área : A2

ASSUNTO: ASSUNTOS ECONÓMICOS -EMPRESAS – FISCALIZAÇÃO – INCENTIVOS FINANCEIROS – IAPMEI

Sequência: Acatada.

1. Recebi de uma associação empresarial uma queixa relativamente à forma como se encontra a ser promovida a selecção dos beneficiários das “Acções Voluntaristas e Dinamização Empresarial”, criadas no âmbito do Programa Iniciativa Comunitária PME, por força do Decreto-Lei nº 172/97, de 16 de Julho e regulamentadas através do Despacho Conjunto nº 364/98, de 29 de Maio, dos Ministérios do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, da Economia, do Trabalho e da Solidariedade e da Ciência e Tecnologia.

2. Para além de questões específicas do mesmo processo, e que se encontram ainda em fase de apreciação, ressalta dele uma situação que entendo gravosa e cujo carácter genérico me leva a dirigir-me, desde já, a Vossa Excelência.

3. Estatui o Decreto-Lei nº 387/88, de 25 de Outubro – que estabelece o quadro legal do Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais (IAPMEI) -, como atribuições deste Instituto, entre outras, as de “assegurar o funcionamento dos sistemas de incentivos ou estímulos ao investimento, nos termos da legislação aplicável”, por um lado e de, por outro, “participar em institutos, sociedades, associações ou outras entidades que possam contribuir para o desenvolvimento económico” e, ainda, a de prestar apoios financeiros a empresas, nomeadamente, através de participações no capital social dessas empresas.

4. Ora, estas atribuições, se de per si consubstanciam apenas algumas das formas de intervenção do Estado na economia, quando simultâneas, no entanto, podem conduzir a situações que coloquem em causa o princípio da imparcialidade (nº 2 do artº 266º da Constituição da República Portuguesa e artº 6º do Código do Procedimento Administrativo) e, consequentemente, a isenção, independência e transparência da administração pública, enquanto corolários daquele princípio.

5. Exemplo disso retiro-o, precisamente, da análise dos elementos constantes do processo a que deu origem a reclamação apresentada pela CEAL.

6. Estabelece o nº 3, do Despacho Conjunto nº 364/98, de 29 de Maio, o qual regulamenta as “Acções Voluntaristas e Dinamização Empresarial”, poderem ser beneficiárias desse programa, Associações empresarias e outras entidades vocacionadas para o apoio a empresas.

7. Por outro lado, determina aquele mesmo Regulamento, que a fiscalização e verificação da aplicação das verbas das Acções Voluntaristas por parte das entidades beneficiárias, seja operada, precisamente, pelo IAPMEI (artº 13º). Efectivamente aí pode ler-se: “As entidades beneficiárias ficam sujeitas à verificação da aplicação dos apoios concedidos, competindo ao IAPMEI e ao Gestor do programa, acompanhar e fiscalizar a realização do projecto e o cumprimento das acções dos promotores”.

8. Não se estabelece, porém, nem a proibição de o IAPMEI fiscalizar entidades beneficiárias em que participe, nem se estatui como requisito de candidatura que as empresas beneficiárias não sejam participadas de qualquer modo pelo IAPMEI.

9. Afigura-se-me inequívoco estarmos, assim, na presença de um regulamento que potencia situações de parcialidade na administração pública.

10. E não se diga que a hipótese de numa mesma entidade se reunir fiscalizador e fiscalizado é meramente académica ou, sequer, remota. É que, no âmbito da queixa que me foi apresentada, tomei conhecimento de que, pelo menos uma das entidades que concorre ao aludido Programa de Acções Voluntaristas e Dinamização Empresarial, – o CERA – Conselho Empresarial do Algarve -, não só tem como associada uma empresa (a Globalgarve) que conta com o IAPMEI na sua estrutura accionista, como ainda, admite nos seus estatutos a possibilidade de participação de entidades públicas (eventualmente o IAPMEI), enquanto sócios honorários, com direito a voto em Assembleia Geral – vide documentos que se juntam.

11. Vale isto por dizer que nada impede que, para além de poder ter participação por via indirecta numa das entidades beneficiárias, como tudo indica que já acontece, o IAPMEI possa vir a integrar, por via directa, aquele Conselho Empresarial.

12. Ambos os casos se podem verificar em relação a outras entidades, de que não tenha conhecimento.

13. Como Vossa Excelência certamente já terá concluído, parece-me de todo inaceitável que um órgão da administração pública possa, simultaneamente, participar – de forma directa ou indirecta -, nas entidades beneficiárias de incentivos e fiscalizar a aplicação dos mesmos apoios por parte daquelas entidades.

14. A situação descrita é, a meu ver, susceptível de comprometer a imparcialidade do órgão de fiscalização, em clara violação do nº 2, do artº 266º da Constituição da República Portuguesa e do artº 6º do Código do Procedimento Administrativo.

15. Estabelece o nº 2 do artº 266º da Constituição da República Portuguesa que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à Lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.

16. Por outro lado, determina o artº 6.º do Código do Procedimento Administrativo que “no exercício da sua actividade, a administração pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação”.

17. Não se trata, na verdade de qualquer situação de impedimento (relativamente a qualquer titular de cargo no IAPMEI), nem sequer de incompatibilidade (de o IAPMEI não poder exercer o tipo de competências de fiscalização, uma vez que estas lhe são estatutariamente atribuídas), situações essas que, aliás, se encontram devidamente normativizadas.

18. Trata-se, antes, de uma situação, em que há indubitavelmente, e logo à partida, legítima “suspeição” de que o IAPMEI, enquanto órgão da administração (alínea b) do nº 2 do artº 2º do Código do Procedimento Administrativo), e exercendo as suas atribuições de fiscalização nos termos do mencionado despacho, venha a colocar em causa o princípio da imparcialidade.

19. Isto é, parece legítimo questionar as garantias de imparcialidade que o IAPMEI pode oferecer ao fiscalizar entidades em que participe. Seguindo de perto a qualificação de Maria Teresa de Melo Ribeiro in “O princípio da imparcialidade na administração pública”, Almedina, pág. 153 e seguintes, permito-me considerar duvidoso que o IPMAEI consiga, relativamente àquelas entidades, usar de isenção, independência e transparência: isenção, por não poder manter o necessário distanciamento e desinteresse em relação ao objecto de fiscalização; independência, porque os seus interesses, em última análise, se confundem com os daquelas entidades; e, finalmente, transparência por, daquele modo, não ser possível passar para o exterior (não basta sê-lo é preciso parecê-lo) a necessária imagem de imparcialidade.

20. É que, mesmo sendo a participação do IAPMEI naquelas entidades, objectivamente, uma participação de interesse público, por ter por objecto a “promoção do desenvolvimento industrial e o apoio directo ou indirecto ao fortalecimento e modernização da estrutura empresarial do país” – artº 4º do Decreto-Lei nº 387/88 – o resultado da sua intervenção fiscalizadora não se pode considerar, sob nenhum aspecto, “desinteressado”: é impossível assegurar que o IAPMEI não tenha qualquer proveito a retirar da sua participação nas aludidas entidades, tal como é impossível garantir nada tenha a perder com um resultado menos favorável de uma fiscalização.

21. Por outro lado, tem-se por certo o princípio axiomático de que ninguém pode ser bom juiz em causa própria, o que reforça o meu entendimento de que, no caso das Acções Voluntaristas, ou ao IAPMEI não deveriam regulamentarmente estar cometidas tarefas de fiscalização, ou, em alternativa, haveria de ser instituído como requisito de candidatura dos incentivos em causa, que aquele Instituto não integrasse, directa ou indirectamente, as entidades beneficiárias.

22. E é a possibilidade de esta simultaneidade se não verificar apenas em relação aos apoios em causa, mas também a outros incentivos, e não só no que respeita ao IAPMEI, mas também relativamente a qualquer órgão da administração pública, que me leva a considerar pertinente a intervenção activa de Vossa Excelência, não no sentido de que o presente caso seja revisto (uma vez que para o efeito, nesta mesma data, dirijo Recomendação directamente aos Ministérios envolvidos no Despacho Conjunto nº 364/98), mas antes, por forma a acautelar, para o futuro, a ocorrência de situações similares.

23. É que, se é verdade que a violação do princípio da imparcialidade poderá sempre ser aferida e sancionada à posteriori, nomeadamente através da declaração de invalidade do acto administrativo, convirá Vossa Excelência que os prejuízos muitas vezes irreparáveis, para os administrados, decorrentes deste tipo de situações, aconselham medidas destinadas a preveni-las.

24. Assim, nos termos do artº 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO que, no respeito pelo princípio da imparcialidade na administração pública, seja promovida intervenção legislativa no sentido de as entidades beneficiárias de incentivos nacionais ou comunitários não poderem nunca ser fiscalizadas, relativamente à aplicação desses fundos, por órgãos da administração pública que nelas tenham participação directa ou indirecta, ou, em alternativa, que seja sempre regulamentarmente exigido, como requisito de candidatura àqueles incentivos, o de as entidades beneficiárias não serem participadas, por via directa, ou indirecta, pelo órgão de fiscalização.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel