Secretário de Estado do Ensino Superior
Rec. n.º 2/B/99
Processo: 679/98
Data: 12.01.1999
Área: A3

Assunto: EDUCAÇÃO – PROPINAS – FIXAÇÃO DO VALOR – CURSOS DE ESTUDOS SUPERIORES ESPECIALIZADOS – FINANCIAMENTO PELO ESTADO

Sequência: Não Acatada

1. Foram apresentadas nesta Provedoria de Justiça várias reclamações por alunos inscritos em cursos de estudos superiores especializados (CESE), contestando o facto de os respectivos estabelecimentos de ensino lhes estarem a exigir propinas de valor superior ao correspondente ao ordenado mínimo nacional, em alegada violação do disposto no artigo 14º da Lei n.º 113/97, de 17 de Setembro (Lei do Financiamento do Ensino Superior).

A este propósito, foram solicitados esclarecimentos a alguns dos estabelecimentos reclamados, os quais, em resposta, afirmaram que a exigência de pagamento de propinas praticada se havia baseado em instruções oriundas dessa Secretaria de Estado, no âmbito das quais se determinava a não aplicação aos CESE da Lei do Financiamento do Ensino Superior, e isso por duas razões: – a primeira, por os CESE estarem em vias de extinção, após a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo operada pela Lei n.º 113/97, de 19 de Setembro, que suprimiu os cursos desta natureza; – a segunda, por se ter considerado escaparem os CESE à dicotomia “cursos de formação inicial/cursos de pós-graduação” consagrada na Lei do Financiamento, pelo que o regime por esta implantado não lhes poderia ser aplicado. Com base neste entendimento, considerou-se que deveria continuar a ser aplicado aos CESE o regime existente até à publicação da Lei do Financiamento, constante do artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 1/96, de 9 de Janeiro, de acordo com o qual os estabelecimentos beneficiavam de autonomia para fixarem o valor das propinas que entendessem.

Foram também solicitados esclarecimentos ao gabinete de Vossa Excelência que, em resposta constante do ofício n.º …, comunicou estar em vias de conclusão o processo de publicação de um diploma visando, a repristinação da norma constante do artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 1/96.

2. A questão em apreço surge com uma amplitude temporal limitada já que, como se sabe, os CESE foram extintos na sequência da última alteração à Lei de bases do Sistema educativo operada pela Lei n.º 113/97, de 15 de Setembro, sendo o presente ano lectivo o último em que foram admitidos novos alunos. Esse facto não impede, porém, a apreciação do problema aqui suscitado, que permanecerá pertinente enquanto existirem os CESE.

Nesse contexto, importa antes de mais, perceber qual a natureza dos CESE face aos demais cursos do ensino superior, após o que melhor se poderá aferir qual o regime de propinas que lhes deverá ser aplicado.

Assim,estes cursos foram inicialmente previstos na Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, que contém a Lei de Bases do Sistema Educativo.

A este propósito, é pertinente a leitura da redacção original dos n.º 4 a 7 do artigo 13º, que estabelecem o seguinte:

“n.º 4 – No ensino superior é conferido o grau de bacharel e são atribuídos diplomas de estudos superiores especializados, bem como outros certificados e diplomas para cursos de pequena duração.

n.º 5 – Têm acesso aos cursos de estudos superiores especializados os indivíduos habilitados com o grau de bacharel ou licenciado.

n.º 6 – O diploma de estudos superiores especializados é equivalente ao grau de licenciado para efeitos profissionais e académicos.

n.º 7 – Os cursos de estudos superiores especializados do ensino politécnico que formem um conjunto coerente com um curso de bacharelato precedente podem conduzir à obtenção do grau de licenciado.”

Resulta do teor dos preceitos transcritos, serem os CESE cursos de especialização destinados a titulares de cursos superiores; sendo cursos que acresciam a uma habilitação superior de formação inicial obtida anteriormente (em princípio, mas não obrigatoriamente, o bacharelato), e constituindo um meio de aprofundamento de conhecimentos técnicos e científicos numa área específica e determinada, os CESE seriam, à partida, normais cursos de pós-graduação.

Nem sempre, porém, seria assim.

Com efeito, e como se viu, a Lei previa que, em alguns casos, os CESE pudessem conferir o grau de licenciado quando formassem um conjunto coerente com um curso de bacharelato precedente.

Ora, nestes casos, os CESE, mais do que acrescer a uma habilitação superior, complementavam-na; mais do que a especializar, completavam-na, acabando por constituir um todo com o curso precedente e permitindo, em consequência, a aquisição do grau de licenciado.

Verifica-se aqui uma alteração substancial da natureza dos CESE, que não podem mais considerar-se simples cursos de pós-graduação, apresentando-se antes como verdadeiros cursos de formação superior de base: a situação material dos alunos inscritos em CESE conferidores do grau de licenciatura, aproximava-se, sem dúvida, bastante mais da dos alunos que frequentassem os anos finais de um curso de licenciatura, do que da dos que frequentassem cursos de pós-graduação.

O próprio Ministério da Educação, aliás, reconheceu esse facto em, pelo menos, duas ocasiões: a primeira, na regulamentação do regime de atribuição de bolsas a alunos do ensino superior particular e cooperativo para o ano lectivo de 1997/98, em que se fez corresponder o regime bolsista dos alunos que frequentem cursos de licenciatura aos alunos dos CESE, desde que estes permitissem a atribuição de grau (cf. artigo 2.º, alínea d) do Desp. 11640 – D/97, de 22 de Novembro de 1997); a segunda, por via da Circular n.º 414 do Departamento do Ensino Superior, de 15 de Janeiro de 1998, a qual, debruçando-se sobre a reconversão dos CESE em fases complementares de licenciaturas bietápicas (necessária pela extinção legal dos primeiros), afirmava que, “nos casos em que os CESE formam um conjunto coerente com um bacharelato precedente e já conduzem a uma licenciatura, as adaptações (a realizar para possibilitar a reconversão) poderão ser mínimas”.

3. Face ao exposto, entendo não poderem proceder os argumentos aduzidos por essa Secretaria de Estado, acima transcritos, defendendo a não aplicação aos CESE do regime de propinas constantes da Lei do Financiamento do Ensino Superior. De facto, não é verdade que os CESE não se integrem na “dualidade” existente na Lei de Financiamento, constituída por cursos de formação inicial e de pós-graduação. Pelo contrário, os CESE, como se viu, podem corresponder ora a cursos de formação inicial ora a cursos de pós-graduação, não sendo de modo nenhum problemática a aplicação do respectivo regime constante da Lei de Financiamento. E não se diga que a isso obsta o facto de estarem estes cursos em processo de extinção: enquanto subsistirem, sujeitar-se-ão ao regime aplicável aos cursos de ensino superior existente e não a outro, muito menos se esse tiver já sido revogado.

A actuação reclamada é, assim, ilegítima, antes de mais, por carecer de uma base normativa que a autorize e justifique, configurando uma violação ao princípio da legalidade, pressuposto basilar da actividade administrativa e como tal, aliás, expressamente previsto no artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo.

4. Mas, ainda que assim não fosse, a aplicação de um regime de fixação livre de propinas a todos os CESE, qualquer que seja a sua natureza, seria sempre irregular nos termos a seguir enunciados.

A Lei do Financiamento do Ensino Superior fez corresponder aos cursos de pós-graduação um regime de propinas, por assim dizer, “livre”, conferindo aos estabelecimentos de ensino liberdade para fixarem o montante das mesmas, apenas limitados pelo “custo reconhecido” aos cursos (cf. artigo 14.º, n.º 4). Por sua vez, para os cursos de formação inicial, entendeu o legislador dever limitar os encargos a assumir pelos alunos, fixando um tecto para a comparticipação financeira que estes tivessem de suportar, correspondente ao valor do ordenado mínimo nacional e, portanto, bastante abaixo dos custos reais dos cursos (cf. artigo 14.º, n.ºs 2 e 3).

Ora, constituindo os CESE conferidores de grau, como se viu, verdadeiros cursos de formação inicial, não podem os mesmos deixar de beneficiar do regime aplicável a cursos com esta natureza.

Nessa medida, a não submissão dos CESE conferidores de grau ao regime de propinas aplicável aos cursos de formação inicial constitui uma clara discriminação dos alunos implicados face aos seus colegas que frequentem cursos normais de licenciatura, os quais, estando embora em situações materiais idênticas às dos primeiros – por ambos frequentarem cursos de formação inicial -, beneficiam de um regime de propinas a todos os títulos mais favorável, sem que, para tanto, existam razões relevantes que o justifiquem. Essa discriminação é ilegítima, por consubstanciar uma violação do princípio da igualdade, contido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, na vertente em que este exige um tratamento igual de situações que sejam, de facto, iguais.

A este respeito, não será naturalmente, pertinente argumentar-se com o facto de, no passado, os CESE terem estado sempre sujeitos a um regime diferente do aplicável aos cursos de formação inicial: tal situação apenas revela que o regime existente há muito carecia de ser alterado, no sentido, aliás, da recente evolução legislativa, que uniformizou o regime de financiamento para os cursos de formação inicial, designadamente os conferidores do grau de licenciatura, universitários e politécnicos.
Finalmente, devo ainda referir que, pelos motivos que ficaram acima expressos, não será admissível a repristinação do artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 1/96, que o gabinete de Vossa Excelência informou estar a ser ultimada, se por essa via se pretender aplicar indistintamente a todos os CESE um regime de fixação livre de propinas.

5. Tenho presente que a aplicação aos CESE conferidores do grau de licenciado do disposto no artigo 14º, n.ºs 2 e 3 da Lei de Financiamento, representa um encargo acrescido para os estabelecimentos de ensino implicados, que em última análise, poderá comprometer a continuidade dos cursos. Será necessário, portanto, que o Estado assuma as suas obrigações, suportando orçamentalmente a diminuição de receitas que a medida implicar, em obediência, aliás, aos princípios enunciados no artigo 5º da própria Lei do Financiamento do Ensino Superior.
Atento o exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO
a) que passe a ser aplicada aos CESE actualmente existentes o regime constante da Lei de Financiamento do Ensino Superior, contido na Lei n.º 113/97, de 17 de Setembro;
b) que, nesse contexto, aos alunos que frequentem CESE conferidores do grau de licenciado, seja aplicado o disposto no artigo 14º, n.º 2 e 3 do diploma referido; que, aos demais alunos seja aplicado o disposto no artigo 14º, n.º 4;
c) que os encargos decorrentes desta actuação sejam assumidos pelo Estado, no âmbito das responsabilidades que lhe cabem no financiamento do ensino superior.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL