Governador Civil do Distrito de Lisboa
Número: 36/A/99
Processo: 3091/98
Data: 10.05.1999
Área: A1

Assunto: AMBIENTE – RUÍDO – ESPECTACULOS E DIVERSÕES – PERÍODO DE DESCANSO NOCTURNO – GOVERNADOR CIVIL – COMPETÊNCIA – MEDIDAS DE POLÍCIA

Sequência: Sem Resposta

I – Exposição de Motivos

Pedida a intervenção deste Órgão do Estado a respeito de situação de poluição sonora associada aos espectáculos promovidos pela Junta do Turismo da Costa do Estoril, no recinto da Feira Internacional de Artesanato da Costa do Estoril, passo a expor a V.Exa. os factos que apurei em resultado da instrução desencadeada junto das autoridades administrativa e policial.

1. A Feira Internacional de Artesanato da Costa do Estoril realiza-se anualmente, nos meses de Julho e de Agosto, com promoção de espectáculos musicais em recinto licenciado pela Câmara Municipal de Cascais.

Tais eventos têm lugar diariamente, ao ar livre, habitualmente à noite, com a duração de 1h 30m a 2h 00m, sendo os espectáculos executados por bandas e conjuntos musicais e, ainda, por ranchos folclóricos.

2. No ano de 1995 foi interdita, por despacho do Exmo Governador Civil do Distrito de Lisboa, a realização de espectáculos no recinto da Feira, por ter sido apurado que as exibições levadas a cabo não se conformavam com os parâmetros legalmente prescritos em matéria de emissões ruidosas (cfr. art. 14º do Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei nº 251/74 de 24 de Junho).

3. Em 28 de Agosto de 1997 foi realizada acção de fiscalização do cumprimento do Regulamento Geral sobre o Ruído, na habitação de queixoso, entre as 21 horas e as 23 h45m, sita na Av. …, nº …, nas imediações da feira, tendo as medições acústicas logrado concluir pela preterição dos limites fixados pelo art. 14º do citado diploma.

No juízo formulado pelo técnico que subscreveu o respectivo relatório a situação é caracterizada como “situação grave, que afecta o bem-estar dos moradores que se inserem na vizinhança da FIARTIL, pelo que se considera que deverão ser tomadas medidas tendo em vista encontrar uma solução de modo a serem respeitadas as disposições constantes na legislação sobre esta matéria”.

4. No ano de 1998 a Junta de Turismo da Costa de Estoril dirigiu ao Governo Civil do Distrito de Lisboa pedido tendo por objecto a realização de tais espectáculos de Domingo a Quinta-Feira, no período nocturno, até às 23 horas, tendo sido denegada a autorização, nos termos de fundamentação que se enuncia:

“Seria violado o disposto no Regulamento Geral sobre o Ruído e no Anexo ao Decreto-Lei nº 316/95, de 28 de Novembro, uma vez que se trata de actividades ruidosas, junto a habitações,ultrapassando os limites legais definidos entre o ruído perturbador e o ruído de fundo, as quais deverão ser suspensas entre as 22 horas e as 8 horas de Domingo a Quinta-Feira.

Por fim e mais importante para afastar a competência do Governador Civil na matéria, é o facto de o recinto estar licenciado pela Câmara Municipal de Cascais e, portanto, nos termos do nº 1 do art. 27º do Decreto-Lei nº 316/95, de 28 de Novembro, não lhe caber licenciar os divertimentos ai realizados ao ar livre, nem em consequência, fiscalizar o cumprimento dos horários e níveis sonoros, cabendo, assim, àquela autarquia como entidade licenciadora intervir no processo, já que só ela poderá impor as condições que considere adequadas ao cumprimento do Regulamento Geral sobre o Ruído”(cfr. ofício nº 7032, de 26/6/1998).

5. Veio o pedido em causa a ser deferido pela Câmara Municipal de Cascais, por despacho de …, da Exma. Vereadora…, cujo teor se reproduz:

“Atendendo a que já foram tomadas medidas com vista à minimização do impacto sonoro, nomeadamente pela instalação do equipamento envolvente do palco (recomendado pelo Instituto de Soldadura e Qualidade no seu Relatório de Controlo de Ruído de 27.4.98) e do compromisso assumido pela JTCE de que os níveis legais de ruído sonoro serão respeitados, autorizo, no âmbito dos meus poderes delegados e ao abrigo do art. 27º, nº 1, do Decreto-Lei nº 316/95, a realização de espectáculos durante a Feira do Artesanato de 1998, até às 23 horas de Domingo a Quinta”.

6. Foram realizadas medições acústicas em 7 de Julho p.p. e em 31 de Julho p.p., sem que tenha sido apurada a prática de infracção ao disposto no art. 21º do Regulamento Geral sobre o Ruído.

6.1. No relato da acção de fiscalização promovida em 7 de Julho, é apontado que “a situação que origina maiores reclamações é a de espectáculos com música ao vivo, os quais não foi possível medir por não estar nenhum programado para as primeiras semanas de feira. Assim foi analisada a situação com música de espectáculo de rancho, a qual é inferior à de música ao vivo.

Esta medição não constitui uma avaliação rigorosa nem final da situação acústica, já que estão a decorrer diversas intervenções com vista à minimização do ruído proveniente da feira. Essas intervenções foram definidas no âmbito de um estudo para controlo do ruído no local e consistem principalmente na instalação de barreiras acústicas junto aos amplificadores sonoros, cobertura acústica na zona do palco e reposicionamento de amplificadores. Nesta fase apenas se encontram instaladas as barreiras laterais.

Assim, o presente ensaio deve ser repetido logo que se considerem concluídas as intervenções preconizadas, o que se prevê ocorra antes do fim do corrente mês.”

6.2. O ensaio levado a cabo pelo Instituto de Soldadura e Qualidade, em 31 de Julho, destinou-se a analisar o acréscimo de ruído traduzido pela ocorrência dos espectáculos com música ao vivo, tendo tido lugar entre as 21h 45m e as 23 horas, período de exibição do fadista António Pinto Basto, sendo de relevar algumas das considerações tecidas na parte conclusiva do relatório:

“O facto de o ruído medido com música ao vivo se encontrar sobre os limites admissíveis (9.7 dB (A) em 10), e dado que a fonte em causa não é estacionária (mesmo dentro dos espectáculos de música ao vivo o ruído pode variar alguns dB) leva a prever a possibilidade de com outros espectáculos ligeiros acréscimos de ruído originem diferenças superiores a 10 dB(A), remetendo já para uma situação acústica acima dos limites admissíveis.

O facto de o espectáculo durar apenas 1 hora e trinta minutos obriga a correcções acústicas que conduzem a reduções de ruído significativas, pelo que se os espectáculos tiverem duração superior essas reduções serão menores, podendo remeter novamente para situação de ruído acima dos limites admissíveis”.

6.3. Preconizaram os técnicos acústicos, em 19 de Agosto de 1998, data de emissão do citado relatório, o aumento da barreira acústica lateral e a redução do palco de forma a posicionar os amplificadores em local acusticamente isolado relativamente à propagação sonora. Do mesmo passo, foi apontada a necessidade de serem realizadas novas medições, após a execução daquelas obras, a fim de obter a caracterização da situação acústica final.

II – Apreciação

1. Não posso deixar de discordar com o entendimento manifestado pela Câmara Municipal de Cascais ao comunicar-me que o licenciamento obedeceu ao disposto no Regulamento Geral sobre o Ruído.

1.1. O licenciamento dos espectáculos foi concedido sem a prévia verificação da eficácia das medidas paliativas adoptadas, sendo que, nos meses de Julho e de Agosto do ano transacto me foram dirigidas diversas queixas denotando a subsistência de forte incomodidade sonora.

1.2. Conquanto haja a Câmara Municipal de Cascais informado terem sido executadas novas acções de caracterização do ruído perturbador, as quais acusaram valores regulamentares, nomeadamente em 7 de Julho de 1998 e em 31 de Julho de 1998, não posso deixar de observar não ter sido suficientemente acautelada a preservação da tranquilidade e do sossego dos moradores.

1.3. Os resultados dos ensaios acústicos efectuados em 7 de Julho apenas são válidos para a situação caracterizada, a qual não se confunde com a que motivou as queixas apresentadas.

1.4. Quanto às conclusões das medições subsequentes, devo notar que o fado, de entre os espectáculos musicais, não atinge particular intensidade na sua expressão sonora, o que me leva a crer que outras exibições, com utilização de outros instrumentos musicais, originam situações de incomodidade, tendo presente os critérios estabelecidos pelo legislador.

Acresce que a feira encerrou alguns dias após a elaboração do relatório do exame acústico, o que, tendo em conta o disposto supra (ponto 6.3.), e a circunstância de não me ter sido facultado conhecimento de ulterior acção de fiscalização, me induz a concluir não terem sido cumpridos os condicionalismos fixados no acto de licenciamento.

1.5. O compromisso assumido pela Junta de Turismo não terá, pois, sido respeitado.

2. À ordem da consideração exposta, a qual radica, fundamentalmente, na inobservância dos pertinentes parâmetros acústicos, acresce o incumprimento das restrições horárias aplicáveis às actividades ruidosas nas imediações de habitações.

2.1. O art. 20º do Regulamento Geral sobre o Ruído, integrado no capítulo relativo às actividades ruidosas, definia, na sua versão inicial, os requisitos a observar no licenciamento dos locais destinados a espectáculos, diversões e outras actividades ruidosas. Por outro lado, a realização de espectáculos ao ar livre, em tendas ou instalações provisórias, fixas ou móveis, deveria, nos termos do artigo 21º, obedecer ao disposto no artigo 20º.

O Decreto-Lei nº 292/89, de 2 de Setembro, veio alterar a redacção, entre outros, dos artigos 20º e 21º, deixando inalterado o limite de 10 dB (A) como “diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente, corrigido do ruído proveniente dos locais em questão, e o valor do nível sonoro do ruído de fundo, que é excedido num período de referência , em 95% da duração deste (L95) “.

Não obstante, a nova redacção do nº 2 do artigo 20º introduziu uma presunção nos termos da qual a licença ou a imposição de condicionalismos para a realização de espectáculos, diversões ou quaisquer actividades ruidosas se presume concedida sob condição de respeito por aquele limite.

2.2. O artigo 21º, dispondo, como na anterior redacção, sobre espectáculos nas proximidades de edifícios de habitação, escolares, hospitalares ou similares e de estabelecimentos hoteleiros e meios complementares de alojamento, alargou, no entanto, a natureza dos seus condicionamentos.
Nestes termos, só deve ser autorizada a realização de tais espectáculos quando se mostre assegurado o cumprimento dos seguintes requisitos:

Seja respeitado o limite sonoro máximo de 10 dB (A);

Ocorra a sua suspensão

– entre as 22,00 e as 8,00 horas do dia seguinte, de domingo a quinta-feira;

– entre as 24,00 e as 8,00 horas do dia seguinte, à sexta-feira, ao sábado e nas vésperas de dias feriados.

2.3. Excepcionalmente, pode ser autorizado, pelo Governador Civil, o funcionamento ou o exercício contínuo dos espectáculos ou das actividades ruidosas, por ocasião dos festejos tradicionais das localidades, salvo se na proximidade de edifícios hospitalares ou similares.

A competência para a concessão da autorização é confiada, em exclusivo, à autoridade policial.

2.4. O nº 3 do art. 20º – a que correspondia o anterior nº 2 – determina que incumbe às entidades competentes para o licenciamento ou autorização, ouvidas as entidades fiscalizadoras, a imposição, expressamente e a título excepcional, dos condicionalismos tendentes ao cumprimento das imposições do Regulamento Geral sobre o Ruído.

2.5. A competência de fiscalização encontra-se atribuída às autoridades policiais, às entidades com superintendência técnica em cada sector e ao director regional do ambiente da comissão de coordenação regional respectiva (cfr. art. 33º do citado Regulamento, na redacção actual).

2.6. O nº 3 do art. 21º – totalmente inovador em relação à redacção originária do Decreto-Lei nº 251/87 – impõe a suspensão imediata, pela intervenção da autoridade policial, oficiosamente ou a pedido de qualquer interessado, dos espectáculos ou das actividades que produzam ruído a níveis superiores a 10 dB (A), ou dos que se realizem entre as 22,00 e as 8,00 horas, nos domingos, segundas-feiras, terças-feiras, quartas-feiras e quintas-feiras, ou depois das 24,00, às sextas-feiras, sábados e vésperas dos dias feriados.

2.7. Há-de a Câmara Municipal, em consonância com o regime previsto no art. 20º, nº3, proceder à audição do Governador Civil competente, no âmbito do licenciamento de espectáculos em recintos.

3. Devo lembrar a V.Exa. que as disposições que estabelecem restrições horárias ao exercício de actividades ruidosas, são normas subtraídas à discricionaridade administrativa, de aplicação imediata e independente de eventuais reclamações.

4. Com efeito, aquelas normas visam, na sua génese, a ordem e a segurança públicas, cabendo a V.Exa., no exercício das funções de polícia que lhe estão cometidas, tomar as providências necessárias à sua salvaguarda.

O facto de competir à Câmara Municipal o licenciamento do recinto, em nada prejudica a aplicação do regime apreciado, nem, tão pouco, o exercício da competência fiscalizadora pela autoridade policial.

5. O Regulamento Geral sobre o Ruído aplica-se ao exercício dos espectáculos, independentemente de os mesmos serem exibidos em recinto ou noutro local.

As motivações que subjazem ao regime estabelecido prendem-se com os especiais riscos que tais actividades, em função das suas características e da respectiva localização geográfica, acarretam para a preservação da tranquilidade. Mostra-se difícil assegurar a prévia contenção dos níveis sonoros emitidos por diversos espectáculos programados, em ordem à sua conformação com os parâmetros acústicos. Isto, seja por força da diversidade da natureza dos espectáculos, e dos instrumentos musicais utilizados, seja por motivo da variação dos níveis sonoros emitidos durante o período de exibição de cada espectáculo, individualmente considerado.

6. A interpretação perfilhada pela Câmara Municipal de Cascais ao afastar a aplicação, em sede de licenciamento de recinto, das restrições horárias assinaladas, compromete ainda a estrita observância do princípio da igualdade, o qual impõe que a situações materialmente idênticas seja dispensado idêntico tratamento.

7. Devo, pois então, concluir que, sem prejuízo da competência atribuída à Câmara Municipal no que tange ao licenciamento do recinto, não pode o Governo Civil alhear-se da questão, porquanto lhe incumbe assegurar o respeito pelas limitações fixadas à promoção dos espectáculos, devendo, nessa medida, pronunciar-se sobre o pedido de licenciamento formulado,e,em sede de fiscalização, determinar a suspensão das exibições musicais que não se conformem com os condicionalismos apontados.

A não actuação do Governo Civil pode implicar a renúncia ao exercício dos poderes de fiscalização de que dispõe, e compromete a regular prossecução do interesse na preservação da tranquilidade pública.

A irrenunciabilidade, seja por forma expressa, seja por forma tácita, à titularidade e ao exercício da competência constitui corolário do princípio da legalidade da competência. Acresce que a competência é imodificável, não podendo a Administração alterar o conteúdo ou a repartição da competência estabelecidas por Lei (1).

8. Por fim, devo chamar a atenção de V.Exa. para a circunstância de determinados espectáculos ruidosos implicarem a realização de outras actividades (igualmente ruidosas)mas não licenciáveis. É o caso da montagem e desmontagem de palcos e instalações de amplificação de som.

As licenças concedidas (para os espectáculos) devem tomar em consideração este condicionalismo por forma a que o limite horário estipulado respeite a todas as acções, principais e instrumentais, relacionadas com a actividade licenciada.

III – Conclusão

De acordo com a motivação exposta,

RECOMENDO
a V.Exa. que se digne rever a posição assumida, expressa no ofício nº …, de …, e encete diligências por forma a assegurar a estrita observância dos condicionalismos previstos no art. 21º do Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei nº 251/87, de 24 de Junho, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 292/89, de 2 de Setembro.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

_________________________________________________

(1) Vd. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2ª edição, Lisboa, 1987, p.610.