Presidente do Conselho de Administração da Administração Regional de Saúde do Norte
R- 4211/98
N.º 94/A/99
1999.12.28
Área : A3

Assunto:SEGURANÇA SOCIAL – CASAS DO POVO – NATUREZA JURÍDICA – PESSOA COLECTIVA DE UTILIDADE PÚBLICA – NEGÓCIO JURÍ0ICO – ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE.

Sequência:Sem resposta.

Foi-me dirigida uma exposição por parte da Casa do Povo de …, sobre a situação do imóvel onde está instalada a respectiva sede, cujas instalações se encontram parcialmente ocupadas por uma extensão do Centro de Saúde de …. De acordo com a reclamação apresentada, o assunto fora exposto há largos meses à Sub-Região de Saúde do Porto, sem que houvesse sido adoptada qualquer posição.
Contactada pelos serviços da Provedoria de Justiça, por meio do ofício n.º … a Sub-Região de Saúde do Porto informou ter solicitado orientações a V.Ex.ª quanto ao procedimento a adoptar.

Posteriormente, foi recebida na Provedoria de Justiça cópia do ofício n.º …, dirigido por essa Administração Regional de Saúde à Casa do Povo de …, através do qual se dava conhecimento do indeferimento da sua pretensão de cobrar uma renda pela ocupação de parte das suas instalações pela Extensão do Centro de Saúde de … .
Tal decisão fundamentou-se no parecer n.º… da Sub-Região de Saúde do Porto.
Analisado o parecer emitido, que procede ao laborioso levantamento das disposições legais aplicáveis ao longo do tempo, não posso, porém, concordar com as conclusões aí alcançadas.
Torna-se, assim, necessário, apreciar a questão que se coloca no presente processo, que é a de saber se, atenta a actual natureza associativa das casas do povo, lhes é aplicável, quanto à utilização do seu património imóvel, o regime especial previsto na Portaria n.º 431/76, de 20 de Julho, e no Decreto-Lei n.º 129/79, de 12 de Maio, conforme conclui o referido parecer ou se, pelo contrário, se deve aplicar o regime geral das associações de direito privado.

Para a cabal apreciação da questão exposta, torna-se imprescindível proceder a uma curta análise da origem histórica das Casas do Povo (I), e a uma um pouco mais longa análise histórico-jurídica dos diplomas que, após o 25 de Abril de 1974, procuraram sucessivamente regulamentar a situação das Casas do Povo (II), para, em seguida, nos determos sobre a situação da Casa do Povo de Soalhães (III).

I-Origem das Casas do Povo

Com interesse para o assunto ora em estudo, interessa apenas lembrar que as Casas do Povo, entidades corporativas de inscrição obrigatória, foram criadas pela Lei n.º 23051, de 23.9.33, e reorganizadas pela Lei n.º 2144, de 29.5.69, competido-lhes, designadamente, “assegurar a defesa dos legítimos interesses dos trabalhadores agrícolas e a realização da previdência social dos mesmos trabalhadores e dos demais residentes na sua área”. A aprovação dos seus estatutos cabia ao Ministro das Corporações e Previdência Social.
Por despacho de 29.6.71 foram aprovadas as Normas de Cooperação Médico-Social entre as Casas do Povo e as Caixas de Previdência e de Abono de Família, nos termos das quais se estabelece “a coordenação e articulação dos diversos serviços de acção médico-social para utilização conjugada dos serviços e instalações”.

Assim, estas Normas estabeleceram, entre outras, regras relativas aos pagamentos a efectuar entre as diversas entidades em virtude dos serviços prestados e da utilização de instalações destinadas ao funcionamento de serviços de acção médico-social.
Fica, pois, a partir desta data, bem definida a dupla função das Casas do Povo: por um lado, asseguram a previdência social dos trabalhadores agrícolas e demais residentes na sua área de intervenção e, por outro lado, asseguram a prestação de cuidados médicos nos termos definidos pelas supra citadas Normas de Cooperação.

II-Evolução do regime das Casas do Povo após o 25 de Abril de 1974

1. 1ª Fase da Evolução
Numa primeira fase, que se poderá situar entre 1974 e 1982, o objectivo da legislação emitida era essencialmente assegurar que a transferência dos serviços prestados pelas Casas do Povo para as novas entidades criadas ocorresse sem quebras na sua prestação.
Prestando as Casas do Povo os serviços acima descritos, ao terminar a ordem jurídico-constitucional ao abrigo da qual as mesmas funcionavam, tornou-se necessário assegurar a sua integração no novo sistema político, sem que os cidadãos se vissem privados dos serviços prestados por aquelas entidades.
Assim, pelo Decreto-Lei n.º 488/74, de 26 de Setembro, as casas do povo foram colocadas na dependência do Ministério dos Assuntos Sociais, e a Junta Central passou a exercer sobre elas crescente intervenção tutelar.
Através da Secretaria de Estado da Segurança Social e da Secretaria de Estado da Saúde, procedeu-se à gradual transformação das Casas do Povo, com vista à sua futura integração num Sistema Unificado de Segurança Social, e num Serviço Nacional de Saúde, que se pretendia criar.
É neste quadro de integração gradual que se inserem os diplomas legais que importa agora analisar.
1.1. O Decreto-Lei n.º 589/74, de 6 de Novembro, transferiu para a Secretaria de Estado da Saúde os Serviços Médico-Sociais das instituições de previdência de inscrição obrigatória.
1.2. Posteriormente, a Portaria n.º 431/76, de 20 de Julho, aprovada pelo Ministério dos Assuntos Sociais, entendendo como passo fundamental da integração progressiva das estruturas das instituições de previdência de inscrição obrigatória no novo Sistema de Segurança Social, a autonomização dos Serviços Médico-Sociais relativamente aos restantes serviços, por forma a articulá-los com as Administrações Distritais de Saúde (criadas pelo Decreto-Lei n.º 488/75, de 4 de Setembro), determinou que:

Artigo 2º – Os serviços médico-sociais serão constituídos:
a) Pelas unidades médico-sociais das caixas de previdência distritais, das caixas de actividade de empresa e das Casas do Povo;
b) Pelos serviços centrais de acção médico-social.
Artigo 8º – 1. O património das caixas de previdência afecto aos serviços de acção médico-social será totalmente integrado nos serviços médico-sociais dos respectivos distritos e ulteriormente nas administrações distritais de saúde.

2. Durante a fase de articulação e até à completa integração, os serviços médico-sociais continuarão a utilizar as instalações das Casas do Povo que se encontrem afectas à prestação de assistência médica.
Artigo 9º – Os serviços médico-sociais assumirão a posição contratual das caixas de previdência em todos os negócios jurídicos que, de qualquer modo, se relacionem com a acção médico-social.
Artigo 13º – Integrados os diversos serviços da Previdência nos serviços médico-sociais, considera-se concluído o processo da sua transferência para Secretaria de Estado da Saúde, designadamente para as administrações distritais de saúde, nos termos do Decreto-Lei n.º 488/75, de 4 de Setembro e da Portaria que o regulamenta.
1.3. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 17/77, de 12 de Janeiro vem operar a transferência dos Serviços Médico-Sociais da Previdência para a Secretaria de Estado da Saúde, referindo no seu preâmbulo que “o objecto de construção do Sistema de Segurança Social unificado e descentralizado, expresso no artigo 63º, n.º 2 da Constituição da República, impõe a adopção de um conjunto de medidas a adoptar de forma gradual e coerente. Algumas dessas medidas tiveram já o seu início (…), é o caso da transferência dos Serviços Médico-Sociais da Previdência para a Secretaria de Estado da saúde, com vista à sua integração no futuro Serviço Nacional de Saúde”.

Dispõe ainda este diploma, remetendo a regulamentação para diploma a publicar, que:
Artigo 1º- 1. Os Serviços Médico-Sociais da Previdência são transferidos para o âmbito da Secretaria de Estado da Saúde, tendo em vista a sua integração no futuro Serviço Nacional de Saúde.
1.4. Conforme previsto, o Decreto-Regulamentar n.º 12/77, de 7 de Fevereiro estabeleceu as regras de organização dos serviços médico-sociais da Previdência. De acordo com o artigo 1º deste Decreto, os serviços médico-sociais da Previdência, até à reorganização dos serviços da Secretaria de Estado da Saúde, passam a constituir um serviço oficial dotado de personalidade jurídica e autonomia administrativa, denominando-se Serviços Médico-Sociais, e compreendem, entre outros, os serviços autonomizados nos termos da supra citada Portaria n.º 431/76, de 20 de Julho.

Este Decreto-Regulamentar estabelecia que:
Artigo 10º – Os serviços Médico-Sociais assumirão a posição contratual das instituições de previdência abrangidas pela transferência em todos os negócios jurídicos que se relacionem com a prossecução dos seus objectivos.

1.5. Uma vez que os diplomas de 1977 nada estabeleciam quanto à utilização de bens imóveis e seu financiamento, nem quanto à afectação de bens móveis até então adstritos aos Serviços de Acção Médico-Social, tornou-se necessário definir esta questão.
Assim, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 129/79, de 12 de Maio, com o objectivo de repartir os encargos entre os serviços médico-sociais agora integrados na Secretaria de Estado da Saúde, e as instituições da previdência/segurança social, integradas na Secretaria de Estado da Segurança Social.
De acordo com o estabelecido neste diploma, o património mobiliário foi transferido para o património privado do Estado, ficando afectos aos Serviços Médico-Sociais os bens móveis das instituições de previdência de inscrição obrigatória, incluindo os veículos automóveis que se encontrassem, à data da entrada em vigor do Decreto Regulamentar 12/77, exclusivamente afectos aos respectivos serviços de acção médico-social.

Quanto ao património imobiliário foi estabelecido que:
Artigo 2º – 1. Aos serviços médico-sociais é garantida a utilização, em termos a definir por despacho, dos imóveis propriedade das instituições de previdência de inscrição obrigatória nos quais se encontram exclusivamente instalados os serviços de acção médico-social.

2. Aos serviços médico-sociais é igualmente assegurada a permanência nos imóveis utilizados conjuntamente por serviços de acção médico-social e por outros serviços das instituições da previdência.

3. É transferida para os serviços médico-sociais, com dispensa de quaisquer formalidades, a posição das instituições de previdência de inscrição obrigatória nos contratos de arrendamento de prédios utilizados apenas pelos serviços de acção médico-social.
1.6. Este Diploma foi posteriormente regulamentado pelo Despacho Conjunto dos Secretários de Estado da Saúde e da Segurança Social de 4.10.79, que definiu a fórmula de acordo com a qual seriam repartidos pelos Serviços Médico-Sociais e pelas instituições de segurança social ou Casas do Povo “os encargos inerentes à utilização dos imóveis indicados no n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 129/79, de 12 de Maio”.

2. 2ª Fase da Evolução
Nesta 2ª fase, que se situará entre 1982 e 1990, o legislador procurou definir o estatuto das Casas do Povo, despidas agora das suas funções de segurança social e de assistência médica, acometidas ao Estado no âmbito do Sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde. Nesta fase o Estado exerce ainda uma forte tutela sobre as Casas do Povo.
2.1. O Decreto-Lei n.º 4/82, de 11 de Janeiro, reestruturou as Casas do Povo, com o objectivo de proporcionar o desenvolvimento dos meios rurais, transformando-as em “pessoas colectivas de utilidade pública, de base associativa”. Estas pessoas colectivas deveriam ter no mínimo 50 associados, ou seriam extintas, sendo os seus estatutos aprovados pelo Ministro dos Assuntos Sociais e publicados em Diário da República. Atente-se que este diploma não atribui às casas do povo quaisquer funções de âmbito previdencial, mas apenas o desempenho de actividades de carácter social e cultural.

Dispõe ainda este diploma, que:
Artigo 2º – 3. Incumbe às casas do povo: a) executar, por delegação, tarefas cometidas aos serviços públicos, por forma a aproximá-los das populações.(…)
2.2. A “tutela” destas entidades cabia à Junta Central das Casas do Povo, instituto público com autonomia administrativa e financeira, tutelado por sua vez pelo Ministério dos Assuntos Sociais, nos termos do estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 392/80. No entanto, a Junta Central das Casas do Povo foi extinta pelo Decreto-Lei n.º 185/85, de 29 de Maio. Assim, este diploma determinou:
Artigo 2º – As competências da Junta no que respeita ao apoio, fiscalização, exercício da tutela e gestão do pessoal das casas do povo são transferidas para os centros regionais da segurança social dos respectivos distritos.
Mais se previu que as competências que tivessem por objecto actividades não enquadráveis na Segurança Social fossem transferidas para outros organismos públicos ou fossem assumidas por entidades privadas, podendo tal transferência abranger pessoas e bens afectos à Junta Central das Casas do Povo.

E no que especialmente se refere ao património imobiliário, estabeleceu este diploma que:
Artigo 10º – Transitam para a titularidade dos centros regionais de segurança social, no momento da criação dos serviços locais, a propriedade ou o arrendamento das sedes e delegações das casas do povo, respectivamente, integralmente financiadas ou cuja renda é paga por verbas do orçamento da Segurança Social. (…)

3. 3ª Fase da Evolução
Nesta 3ª fase, que começou em 1990, deu-se a autonomização das casas do povo em relação ao Estado, deixando estas de ter qualquer tutela estadual, passando o seu regime a ser o das associações de direito privado estabelecido no Código Civil.
3.1. O Decreto-Lei n.º 185/85, que extinguiu a Junta Central das Casas do Povo, foi parcialmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 246/90, de 27 de Julho, que determinou que a constituição, extinção e consequente destino dos bens das Casas do Povo se rege pelas disposições do Código Civil aplicáveis às associações, o que aliás era já determinado, enquanto regime subsidiário, pelo artigo 30º do Decreto-Lei n.º 185/85 .
O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 246/90 estabelece que as Casas do Povo, para ganharem a sua verdadeira autonomia institucional, deveriam transformar as relações de dependência tutelar do Sistema da Segurança Social, substituindo-as pela celebração de acordos de cooperação com serviços públicos, autarquias e outras entidades privadas interessadas na prestação de serviços ou na utilização das instalações. Nesta medida, dispõe o artigo 2º deste diploma, sob a epígrafe “regime financeiro”, que:
Artigo 2º – 1. As receitas das Casas do Povo são constituídas por: (…)
f) Compensações por serviços prestados pela utilização de instalações, ao abrigo de acordos ou contratos de cooperação celebrados com serviços públicos e autarquias ou com entidades ou instituições particulares.
(…)3. Os acordos ou contratos de cooperação a que se refere a alínea f) do n.º 1 devem prever os objectivos, as obrigações recíprocas acordadas, os encargos decorrentes e a data de produção de efeitos, bem como, sempre que se considere oportuno, a acção tutelar ou fiscalizadora a exercer pelas entidades interessadas nos serviços prestados pela Casa do Povo.
3.2. Não obstante o disposto no Decreto-Lei n.º 185/85, que previa a criação de serviços locais da segurança social, apenas o Decreto-Lei n.º 245/90, de 27 de Julho, veio definir o regime da criação de serviços locais de segurança social, determinando, com interesse para o assunto ora em apreço, que:
Artigo 1º – (…) 4. Para o funcionamento dos serviços locais, os centros regionais de segurança social podem celebrar protocolos com entidades públicas ou privadas, qualquer que seja a sua natureza, os quais deverão prever, nomeadamente, os objectivos do acordo, as obrigações recíprocas acordadas, os encargos decorrentes e a data de produção de efeitos.
Artigo 5º – 1. A implantação de serviços locais em sedes ou delegações de Casas do Povo, nos termos do n.º 4 do artigo 1º, não determina a transição, para a titularidade dos centros regionais de segurança social, da propriedade ou dos contratos de arrendamento das sedes e delegações das casas do povo que sejam integralmente financiadas ou cuja renda seja paga por verbas do orçamento da Segurança Social, salvo na situação prevista no número seguinte.
2. O património das casas do povo referidas no número anterior que, embora unicamente afectas a fins de segurança social, já não disponham de órgãos constituídos nos termos legais passa para a titularidade do centro regional da segurança social da respectiva área, mediante Portaria do membro do governo responsável pela Segurança Social.(…)
3.3. O parecer n.º 48/92 da Procuradoria Geral da República, homologado em 30.12.92, acima citado, faz um elenco da tipologia actual das casas do povo, o qual se passa a transcrever:
“Aquando da entrada em vigor dos Decretos-Leis n.º 245/90 e 246/90, configuraram-se no universo das casas do povo, além do mais, as três situações seguintes:
a)Casas do povo em plena realização dos fins que lhes são próprios, com meios financeiros próprios para esse efeito, através de órgãos regularmente constituídos, com instalações não afectas ao funcionamento de serviços locais de segurança social;
b) Casas do povo realizando os fins que lhes são próprios, com meios financeiros próprios, através de órgãos regularmente constituídos, em cujas instalações passaram a funcionar os serviços sociais da segurança social, com base na contratação prevista no n.º 4 do artigo 1º do Decreto-Lei .º 245/90, disso sendo remuneradas;
c) Casas do povo sem meios próprios de financiamento nem órgãos sociais regularmente constituídos, não desenvolvendo quaisquer dos respectivos fins estatutários ou legais, com instalações integralmente afectas aos serviços locais de segurança social e totalmente financiadas por verbas do orçamento da segurança social, como se nos CRSS estivessem integradas.

Na primeira e na segunda das referidas situações, têm as casas do povo vida associativa própria das pessoas colectivas de utilidade pública que são, em relação às quais não se põe a questão da aplicação ou não do disposto no n.º 2 do artigo 2º do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 245/90, isto é, a transferência do seu património para os CRSS.
A aplicação do estatuído na referida disposição só se coloca, naturalmente, em relação à situação delineada em terceiro lugar, certo que aí as casas do povo já não existem de facto, tudo se passando como se integradas estivessem nos CRSS, que de todo as financiam, designadamente no que concerne à conservação e ou substituição do respectivo património.”

III-A Casa do Povo de …

Embora a situação ora em análise não seja directamente enquadrável em nenhum dos tipos de casa do povo acima elencados, uma vez que estamos perante instalações afectas a serviços de uma Administração Regional de Saúde, e não a serviços locais da segurança social, o certo é que a Casa do Povo de … é uma associação em plena realização dos fins que lhes são próprios, com meios financeiros próprios para esse efeito, com órgãos regularmente constituídos, nas instalações da qual se encontra em funcionamento uma extensão de saúde.
Na verdade, a Casa do Povo de … funciona desde 26.2.76 em edifício expressamente construído para o efeito, tendo, pelo menos desde essa data, órgãos sociais próprios regularmente constituídos.
Conforme determinou o Decreto-Lei n.º 4/82, de 11 de Janeiro, a Casa do Povo tem, desde 30 de Novembro de 1982, Estatutos devidamente aprovados.
Não pode, pois, deixar de se concluir que a Casa do Povo de … adquiriu, nessa data, a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública, de base associativa, que actualmente se rege pelas disposições do Código Civil relativas às associações, nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei n.º246/90 .
Desde data imprecisa, o primeiro andar do imóvel acima referido foi ocupado pela extensão do Centro de Saúde do Marco de Canaveses, e entre 18.10.79 e 1988 a A.R.S. do Norte comparticipou, de forma regular, nas despesas de utilização daquele imóvel, calculadas em conformidade com o estabelecido no Despacho Conjunto das Secretarias de Estado da Saúde e da Segurança Social de 4.10.79 referido no ponto 1.6. supra.
Posteriormente a 1988 a Casa do Povo de … nada mais recebeu por parte da A.R.S. do Norte a título de comparticipação naquelas despesas, situação que se mantém.

IV-Conclusões

Analisados os factos acima descritos, e tendo em conta a legislação em vigor, verifica-se que:
1. Numa primeira fase, em que importava assegurar a continuidade da prestação dos serviços, os serviços de acção médico-social foram substituídos pelos serviços médico-sociais, determinando a Portaria n.º 431/76, de 20 de Julho, que durante a fase de articulação e até à completa integração, os serviços médico-sociais continuassem a utilizar as instalações das casas do povo afectas à prestação de assistência médica.
2. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 129/79 determinou que o património imobiliário das Casas do Povo fosse utilizado pelos serviços quer médico-sociais, quer de segurança social, mediante o pagamento dos respectivos encargos.
3. A partir de 1982, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 4/82, as casas do povo ou foram extintas ou se transformaram em pessoas de utilidade pública de base associativa, tuteladas pelo Estado, que poderiam “executar, por delegação, tarefas cometidas aos serviços públicos”. Nesta data, a Casa do Povo de … adquiriu ope legis a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública.
4. Já a partir desta altura se previa que as casas do povo fossem compensadas pela utilização das suas instalações, mas atenta a tutela pública que ainda impendia sobre elas por parte da Secretaria de Estado da Segurança Social, visto serem estas casas tuteladas pela Junta Central das Casas do Povo, e, a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 185/85, tuteladas pelos centros regionais da segurança social, o seu regime manteve-se híbrido.
5. A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 246/90, de 27 de Julho, não subsistem mais dúvidas: as casas do povo são associações, reguladas nos termos do disposto no Código Civil, não tuteladas por qualquer entidade pública.
Dispõe expressamente o artigo 1º deste Diploma que “a constituição e a extinção das Casas do Povo e consequente destino dos bens subsistentes regem-se pelas disposições do Código Civil aplicáveis às associações”.
6. Caso estas associações não respeitem os seus fins legais ou estatutários, serão extintas, quer nos termos do disposto neste diploma, quer por decisão judicial, nos termos do disposto no artigo 182º do Código Civil.
7. Verifica-se, quanto à Casa do Povo de …, que esta é actualmente uma associação privada, de reconhecida utilidade pública, que prossegue os seus fins de natureza cultural, recreativa e desportiva na localidade onde se encontra inserida.
8. Atenta esta nova natureza legal de associação, pessoa colectiva de direito privado, com património autónomo que não deixou em momento algum de ser seu , não se compreende com base em que elementos conclui a ARS do Norte beneficiar actualmente de um regime excepcional de utilização do imóvel em causa.
9. Não colhe, pois, a argumentação expendida no parecer que fundamentou a decisão da Administração Regional de Saúde do Norte que ora se contesta, ao apontar que da natureza de “pessoa colectiva de utilidade pública” da Casa do Povo de … resulta ser esta associação “discriminada positivamente” pelo Legislador, com um regime jurídico específico traçado pelo direito administrativo, o que legitimará que uma outra entidade pública (a A.R.S do Norte) usufrua do seu património imóvel sem a correspondente contrapartida.
10. Se a Casa do Povo de …. é uma pessoa colectiva de utilidade pública é-o porque o legislador entendeu que, ao promover o desenvolvimento e o bem-estar das comunidades, as casas do povo deveriam ficar sujeitas a um estatuto que integra um complexo de direitos e deveres. No entanto, de tal facto não pode resultar a sujeição da utilização do seu imóvel por parte de uma entidade pública, sem qualquer contrapartida, porquanto:
10.1. O Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novembro estabelece, como um dos deveres das pessoas colectivas de utilidade pública, “colaborar com o Estado (…)na cedência das suas instalações para a realização de actividades afins”. Ora, claramente, o funcionamento de uma extensão de saúde não pode ser considerada uma actividade afim das desempenhadas por uma associação de cariz cultural, desportivo e recreativo.
10.2. Na verdade, um sacrifício desta natureza (ver-se privada dos meios de rendimento proporcionados por um imóvel que lhe pertence) deveria estar expressamente previsto em normas legais ou em acordo celebrado para o efeito, o que não sucede. Efectivamente, conforme resulta da análise histórica realizada, o Decreto-Lei n.º 129/79, que serve de base ao direito a que se arroga a A.R.S. do Norte, é de natureza claramente transitória, e reportava-se a entidades não autónomas, fortemente tuteladas pelo Ministério dos Assuntos Sociais, que dispunha então do seu património, primordialmente com o objectivo de garantir que às populações continuassem a ser prestados os necessários serviços enquanto não se encontrassem em pleno funcionamento o Sistema de Segurança Social e o Serviço Nacional de Saúde.
10.3. Ainda que assim não fosse, o princípio da proporcionalidade a que está sujeita a Administração Pública determina que não se imponham aos particulares sacrifícios inadequados, desnecessários ou desproporcionais (em sentido estrito), o que sucede manifestamente no caso em apreço.
11. Conclui-se, pois, que a A.R.S. do Norte ocupa sem título, desde 1990, parte de um imóvel da Casa do Povo de ….

V-Atento o exposto,

RECOMENDO
que sejam entabuladas negociações entre a Administração Regional de Saúde do Norte e a Casa do Povo de … com vista a que o uso do imóvel propriedade desta associação passe a ser titulado por negócio jurídico celebrado entre ambos, no qual ficarão previstas as compensações devidas pela utilização do imóvel que se entenderem adequadas.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel