Presidente da Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis
R-4897/97
N.º 86/A/99
1999.11.23
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS CLANDESTINAS – EXPLORAÇÃO PECUÁRIA – PERÍMETRO URBANO – LEGALIZAÇÃO – SALUBRIDADE – DEMOLIÇÃO.

Sequência:Sem resposta

I-Exposição de Motivos

1. Da instrução do processo acima referenciado concluí que a Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis havia determinado a suspensão da apreciação do pedido de legalização das instalações de uma exploração pecuária situada dentro do perímetro urbano, por aguardar revisão do Regulamento do Plano Director Municipal que revogue a interdição de tais estabelecimentos insalubres serem licenciados em áreas urbanas.

2. Considerando que esse órgão autárquico não pode isoladamente alterar aquele instrumento de planeamento territorial no sentido pretendido, dado que as revisões planificatórias dependem da intervenção da Administração Central, que a modificação em causa se mostra incompatível com um dos princípios estruturantes do plano em matéria de ocupação de solos, qual seja, o da separação das utilizações incompatíveis e que a suspensão do procedimento constitui renúncia ao exercício da competência administrativa, recomendei que fosse indeferido o pedido de legalização e ordenada a demolição das construções (arts. 63º, nº 1, alínea a), e 58º, nº 1, do regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro).

3. Respondeu V. Exa. ter a Câmara Municipal deliberado notificar o requerente do pedido de legalização a fim de apresentar “projecto com as obras executadas antes da entrada em vigor do PDM e quanto às restantes não serão legalizáveis, devendo ser demolidas” (ofícios nº …).

4. Tendo prosseguido a instrução e questionado V. Exa. quanto à natureza e dimensão das edificações construídas antes da entrada em vigor do Plano Director Municipal de Oliveira de Azeméis, informou tratar-se da cobertura do estábulo, da cobertura do pátio e do galinheiro.

5. Das informações obtidas pode concluir-se que a Câmara Municipal pretende viabilizar a legalização das construções realizadas antes da entrada em vigor do Plano Director Municipal, por não considerar aplicáveis as respectivas prescrições, nada adiantando quanto ao uso não regulamentar que actualmente lhes é conferido, atenta a proibição de instalação de nitreiras e explorações agro-pecuárias dentro do perímetro urbano (art. 61º, nº 2).

6. Não posso concordar com tal entendimento. A exploração agro-pecuária, para além de se encontrar instalada em edificações cuja construção não foi precedida de licenciamento administrativo, nunca beneficiou de autorização de funcionamento (Instruções aprovadas pela Portaria nº 6065, de 30.III.1929), pese embora a notificação do proprietário para que fosse apresentado o pedido de licença sanitária.

7. Vistos os condicionamentos urbanísticos actualmente em vigor, quer as edificações, quer o funcionamento da exploração pecuária, não parecem legalizáveis. Ao licenciamento urbanístico ex post das construções (art. 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951), e ao licenciamento da respectiva utilização (art. 26º, do regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro), opõe-se a disposição planificatória que proíbe a existência de nitreiras e explorações pecuárias dentro do perímetro urbano.

8. E, ao invés do sustentado pela Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, a disciplina de uso, ocupação e transformação do solo contida no Regulamento do Plano Director Municipal aplica-se à apreciação do pedido de legalização, não obstante algumas das construções serem anteriores à sua entrada em vigor.

9. Em área abrangida por plano director municipal, o pedido de licenciamento é regulado pelos arts 39º a 41º do regime jurídico relativo ao licenciamento municipal de obras particulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro. Os fundamentos que habilitam as câmaras municipais a indeferir um pedido de licenciamento ou de legalização de obras encontram-se fixados no artº 63º do RJLMOP. Os actos de indeferimento devem basear-se nos fundamentos contidos nas alíneas a) a g), do nº 1, do art. 63º, daquele regime , e podem fundar-se nos motivos enunciados nas alíneas a) e b), do nº 2, do mesmo artigo.

10. A solução vigente não diverge da tradicional do direito no urbanismo português. Já no domínio do anterior regime de licenciamento municipal de obras particulares(1), o poder de indeferimento assumia natureza vinculada.

11. Entre os fundamentos do indeferimento dos pedidos de licenciamento de obras particulares, conta-se a desconformidade da pretensão edificatória com instrumento de planeamento territorial válido nos termos da Lei (art. 63º, nº 1, alínea a), do RJLMOP), sendo nulos os actos camarários que defiram qualquer pedido em violação de plano (art. 52º, nº 2, alínea a), do mesmo diploma).

12. Ora, os requisitos de urbanização, de estética, de salubridade e de segurança que constituem os parâmetros da apreciação das obras realizadas são aqueles que se encontram em vigor no momento da apreciação do pedido, não os que vigoravam à data da realização das obras ilegais uma vez que já não possuem qualquer eficácia jurídica.

13. De outro modo, estar-se-ia a premiar o proprietário infractor que construiu sem licença municipal e que iria ver a sua pretensão sujeita a um crivo diverso, e porventura bem menos restritivo, o que resultaria num injustificável atentado ao princípio da igualdade.

14. E não se diga que tal solução contraria a presunção da irretroactividade das leis (art. 12º, nº 1, do Código Civil), porquanto não há quaisquer efeitos validamente produzidos, expectativas ou interesses, que a nova disciplina planificatória tenha que salvaguardar quando se trata de edificações ilegais. O proprietário que constrói sem licença está sujeito às modificações da disciplina urbanística, quer procedimental, quer material, e verá a sua pretensão confrontada com os parâmetros em vigor à data da apreciação do seu pedido.

15. Neste sentido escreve António Rebordão Montalvo(2), que “uma obra clandestina, não legalizada antes da entrada em vigor do PDM”, consubstancia um facto passado, mas os efeitos por ele desencadeados, traduzidos na perturbação causada na ordem jurídica, não se esgotaram antes daquela data, prolongaram-se já na vigência do PDM, pelo que as suas disposições podem ser aplicadas a efeitos pendentes de factos anteriores à sua entrada em vigor, sem que isso constitua violação do princípio da retroactividade da Lei.

16. O princípio geral é o de que as edificações e demais construções material e formalmente ilegais não se encontram protegidas contra a superveniência de normas de planeamento territorial e urbanístico com as quais não se conformem. Muito mais longe vai o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, ao estabelecer a caducidade das licenças de loteamento e de obras de urbanização, desde que tais actos não tenham sido objecto de uma confirmação da sua compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação dos solos constantes de plano regional de ordenamento do território, e nem por isso entendeu o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade das suas normas(3). Se pode ser posto em causa o aproveitamento urbanístico consolidado por meio da emissão de título jurídico válido e eficaz, por maioria de razão têm que ceder em face de novas normas de planeamento as edificações ilegais que com elas não se conformem.

17. Urge, assim, actuar no sentido de pôr cobro a uma situação não só formalmente ilegal, como substancialmente ofensiva dos interesses públicos em matéria ambiental. Conforme é reconhecido em parecer da Senhora Consultora Jurídica do Município, a laboração da exploração pecuária dá origem a uma situação de poluição ambiental de contaminação dos recursos hídricos. A ausência de controlo administrativo permite ao proprietário não satisfazer as condições higio-sanitárias legalmente exigíveis para estes estabelecimentos, verificando-se, designadamente, a contaminação das águas dos poços mais próximos causada pela descarga dos efluentes da exploração no solo.

18. Cabe, assim, à Câmara Municipal fazer cessar, por via do despejo administrativo das edificações a situação de ilegalidade e afectação dos interesses públicos em matéria ambiental a que dá causa a utilização não legitimada por qualquer título administrativo das edificações.

19. Para mais, esta medida, por fazer cessar a incomodidade ambiental e os prejuízos para o ambiente e qualidade de vida de quantos ali residem, permitiria equacionar uma hipótese de viabilizar a legalização das edificações por via da alteração ao uso pretendido. Mostrando-se desconforme com as prescrições do Plano a utilização como local de alojamento de animais e exploração pecuária, será porventura de admitir um outro uso que não atente contra a disciplina de uso dos espaços em vigor, se assim vier o requerente a pretender, como forma de preservar quanto foi edificado sem licença municipal. Já poderia, eventualmente, admitir-se que satisfizesse os requisitos legais e regulamentares de urbanismo e de salubridade das edificações urbanas.

20. A persistir o proprietário na pretendida utilização das instalações como local de alojamento de animais, mais não resta à Câmara Municipal que ordenar a demolição, porquanto não pode V. Exa. afastar esta medida de reintegração da legalidade urbanística por serem as edificações insusceptíveis de satisfazer os requisitos de urbanização aplicáveis, entre os quais se contam aqueles que definem a tipologia do uso, em função da classe e categoria do espaço.

21. Neste ponto, já não posso acompanhar o teor das conclusões alcançadas por António Rebordão Montalvo no estudo acima citado(4), quando considera que a demolição é uma medida de natureza sancionatória e que, por aplicação analógica do princípio constitucional da não retroactividade da penalização no domínio do ilícito de mera ordenação social, as normas do PDM não podem ser chamadas à composição dos requisitos previstos no art. 167º do RGEU e servirem de fundamento à ordem de demolição.

22. Esta conclusão contraria a conclusão prévia alcançada pelo citado autor quanto à aplicabilidade das disposições do plano às construções ilegais erigidas antes da sua entrada em vigor e parte do pressuposto que a demolição é uma medida de natureza sancionatória, qualificação que não parece admissível.

23. A demolição não é uma pena, nem uma medida de segurança, nem uma sanção acessória no domínio do procedimento contra-ordenacional ou nem , tão pouco, uma sanção disciplinar5, mas antes, uma medida de reintegração da legalidade urbanística. Não tem por escopo sancionar a conduta do infractor, mas proceder à reconstituição da situação material afectada pela conduta ilegal e, assim, reintegrar os interesses públicos lesados(6).

24. De outro modo, ficaria indefinidamente por resolver o destino das construções ilegais não susceptíveis de legalização em face das supervenientes disposições de instrumento de planeamento territorial e, repita-se, estar-se-ia a premiar os proprietários infractores que optam por construir sem licença e a discriminar, sem qualquer fundamento objectivo, as pretensões edificatórias previamente licenciadas.

II-Conclusões

De acordo com o exposto, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art. 20º, nº 1, al. a), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO
1º Que a Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis exerça o poder que lhe é conferido pelo art. 165º do regulamento Geral das Edificações Urbanas e ordene o despejo das instalações, por forma a fazer cessar a situação de poluição ambiental ocasionada pelo alojamento dos animais.
2º Que V. Exa. indefira o pedido de legalização das edificações, construídas antes ou depois da entrada em vigor do Plano Director Municipal de Oliveira de Azeméis, com fundamento em quanto se dispõe no art. 63º, nº 1, alínea a), do regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91.
3º Que V. Exa. ordene a demolição das edificações nos termos do disposto no art. 58º, nº 1, do regime jurídico citado, e do art. 53º, nº 2, al. l), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, cumprindo o procedimento estabelecido pelo Decreto-Lei nº 92/95, de 9 de Maio, se não vier a ser alterado, no âmbito do procedimento de legalização o uso pretendido.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel
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(1) DL nº 166/70, de 15 de Abril
(2) In Revista da Administração Local, LEGALIZAÇÃO DE CONSTRUÇÕES ILEGAIS ANTERIORES À ENTRADA EM VIGOR DE PLANO DIRCETOR MUNICIPAL, Nov.-Dez. 19996, p. 665.
(3) Cfr. Acórdão nº 517/99 T. Const.- Processo nº 61/95, Diário da República, 2ª série, nº 263, de 11/11/1999
(4) Cfr. ponto 15.
(5) A Constituição apenas prevê três tipos de direito sancionatório: o direito penal, o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar.
(6) Cfr, entre outros, Cláudio Monteiro, O EMBARGO E A DEMOLIÇÃO DE OBRAS NO DIREITO DO URBANISMO, Faculdade de Direito de Lisboa, ed. policopiada, 1995, p.126.