Ministro da Administração Interna
R-3434/98
N.º 76/A/99
1999.11.09
Área:AÇORES

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – PSP – CHEFE DE ESQUADRA – CURSO DE PROMOÇÃO (EXCLUSAO) – ACTO ILÍCITO – REVOGAÇÃO – INDEMNIZAÇÃO.

Sequência:Sem resposta

I-Introdução

Em 27/07/98, foi aberto processo na Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores em virtude de reclamação relativa à exclusão do concurso de admissão ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra da 1ª Subchefe X….
Os factos relevantes para a presente instrução não se apresentam controvertidos. Assim:

1. A 1ª Subchefe X… concorreu ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra;

2. A interessada ficou posicionada em nono lugar, conforme consta da ordem de serviço nº …, de …/…/95, do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública – sendo que foram admitidos vinte e cinco opositores ao referido concurso;

3. O senhor Subintendente …l, Comandante Regional de Angra do Heroísmo da Polícia de Segurança Pública remeteu à Escola Superior de Polícia, em 27/03/95, a folha de informação (identificada como anexo I, modelo 2) relativa à 1ª Subchefe X…;

4.Na parte II deste documento, epigrafada “apreciação das qualidades”, o ponto 1 (“qualidades morais”), alínea a) (“comportamento moral”), foi preenchido de modo a qualificar a interessada como estando posicionada na coluna 2 (“abaixo da média”);

5.Importa referir que, na parte III da mesma informação (“juízo ampliativo”) foi lavrado o seguinte comentário:
“Trata-se de uma graduada que é uma boa executante. Todavia, para funções de Comando terá de se aperfeiçoar e modificar comportamentos”

6. A coberto do ofício nº …, dirigido ao senhor Comandante da Escola Superior de Polícia, o senhor Comandante Regional de Angra do Heroísmo da Polícia de Segurança Pública prestou as seguintes informações:
” Sobre o assunto de que trata o V/ofício-Confidencial – em referência, informo a V. Exa. o seguinte:
– Aquando do preenchimento da FOLHA DE INFORMAÇÃO-CONFIDENCIAL (Anexo 1-Mod.2) relativamente à lº Subchefe nºs 00/000 000, X…, no que concerne à II Parte, nº1, alínea a), o seu enquadramento no ponto 2 (abaixo da média) teve por base o seguinte:
– Este Comando não possui elementos probatórios que atestem o mau comportamento moral da referenciada. Todavia, a mesma não conseguiu evitar que a generalidade do pessoal do Comando se refira a ela em termos negativos, atribuindo-lhe relacionamentos extraconjugais com alguns homens, de que terão resultado situações de escândalo na própria Esquadra onde prestava serviço.
No que respeita à III Parte, no capítulo do Juízo Ampliativo, ao classificá-la como boa executante, mas que teria, para ser oficial e exercer funções de comando, de modificar comportamentos, teve por base o seguinte juízo:
– Ainda em conexão com o referido sobre o comportamento moral, há a acrescentar que a mesma subchefe esteve como monitora na E.P.P. no ano lectivo de 1994/95 e solicitou a sua continuação em Torres Novas no ano lectivo de 1995/96, deixando entregues à mãe um filho de 11 e uma filha de 13 anos, alheando-se, de certo modo, da responsabilidade que lhe caberia na condução da educação de uma filha adolescente. O pedido, porém, não lhe foi concedido por informação negativa deste Comando.

Os dados desta informação complementar não puderam ser dados a conhecer à referenciada, em virtude da mesma se encontrar, na situação de licença para férias, no Continente, para onde seguiu após o conhecimento telefónico, a partir de Lisboa, de uma carta anónima relativa a si”.

7. Em 27/09/95, o júri do concurso proferiu a seguinte deliberação:
1.O Júri do Concurso de Admissão ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra, admitiu ao referido concurso a 1ª Subchefe nºs 00/000 000 – X…, do Comando Regional de Angra do Heroísmo, em virtude de na informação inicialmente feita e que acompanhou o seu processo de candidatura, não ser explícito qualquer tipo de comportamento que apontasse para a falta das qualidades morais minimamente exigidas para o exercício do posto de Chefe de Esquadra.
2.Face a informação complementar do sobredito Comando Regional, enviado a esta Escola e aqui recebido em 27SET95, o júri entendeu que a candidata em causa não possui qualidades morais indispensáveis ao desempenho da função, não satisfazendo assim o disposto no artº 7º, nº 4 das Normas de Admissão e Frequência aos Cursos de Promoção a Chefe de Esquadra e Comissário, aprovadas por Despacho do Comandante-Geral de 27JUL86, publicados em anexo à O.S. nº .. (I Parte), de 03JUL86, pelo que deliberou o seguinte:
a) Que a 1ª Subchefe nºs 00/000 000 – X…, do Comando Regional de Angra do Heroísmo, seja excluída da admissão ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra;
b) Que, em consequência do constante na alínea a) e em obediência ao numerus clausus estabelecido para o citado concurso, se solicite ao Comando-Geral a convocação para o curso do 26º classificado do retromencionado concurso.

8. Nesta deliberação foi aposto, em 28/09/95, o despacho de “Concordo” (segundo parece do senhor Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública);

9. Por despacho de 20/11/95 foi mantida a decisão de exclusão à admissão ao 29º curso de promoção a chefe de esquadra;

10. Deste despacho foi interposto recurso hierárquico para o Ministro da Administração Interna que, em 19/07/96 e por despacho proferido no Parecer nº 399-T/96 do processo nº 84/96, concedeu provimento ao recurso e revogou o acto impugnado;

11. Em 20/08/96 (segundo se pode depreender do comprovativo de envio de fax), a interessada solicitou ao Ministro da Administração Interna o reconhecimento do direito de frequentar o curso de promoção a chefe de esquadra que se iniciaria em Outubro de 1996;

12. Já no âmbito da instrução do processo aberto na Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores foi recebido o ofício nº …, do Gabinete do Secretário de Estado da Administração Interna, que, em suma, defende que “(…) a posição que a interessada obteve no concurso em que foi excluída não poderia dar-lhe o direito a ser admitida em curso de promoção cujos frequentadores tenham sido escolhidos através de outro concurso (…)” (vide parecer nº … no qual foi exarado despacho em 03/10/98).
À luz do que fica transcrito, importa tomar posição sobre a matéria reclamada.

II-Exposição de Motivos

O facto que motivou a abertura do processo no âmbito de cuja instrução formulo a presente recomendação foi a exclusão indevida da 1ª Subchefe X… do concurso de admissão ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra. Mas, como resulta à saciedade da simples leitura do conjunto de factos que deixei expostos, a exclusão da interessada não foi resultado de um mero erro administrativo, de uma apreciação errónea de factos ou de um deficiente entendimento sobre a interpretação do normativo aplicável.

Com efeito, o comportamento da Polícia de Segurança Pública – através, sucessivamente, do senhor Comandante Regional de Angra do Heroísmo, do júri do concurso e, finalmente, do senhor Comandante-Geral – é indiciador de uma total arbitrariedade, a que se soma uma absoluta incongruência. Se não, vejamos:
a) O senhor Comandante Regional de Angra do Heroísmo informou que a candidata tem um comportamento moral “abaixo da média” e que “(…) para funções de Comando terá de se aperfeiçoar e modificar comportamentos”;
b) Esta informação foi considerada insuficiente;
c) Tal facto levou a que o senhor Comandante Regional de Angra do Heroísmo viesse reconhecer que o “comando não possuía elementos probatórios que atestassem o mau comportamento moral da referenciada” acrescentando, unicamente, que a generalidade do pessoal do Comando se referia à interessada em termos negativos. Finalmente, e quanto à necessária modificação de comportamentos, o senhor Comandante relatou que a interessada “solicitou a sua continuação em Torres Novas no ano lectivo de 1995/96, deixando entregues à mãe um filho de 11 e uma filha de 13 anos, alheando-se, de certo modo, da responsabilidade que lhe caberia na condução da educação de uma filha adolescente”;
d) Em face dos esclarecimentos, o júri do concurso deliberou, concluindo, que a interessada não possuía “qualidades morais indispensáveis ao desempenho da função”;
e) O senhor Comandante-Geral concordou com a deliberação.
Acrescente-se que o formulário usado – a folha de informação identificada como anexo I, modelo 2 (vide Normas de Admissão e Frequência aos cursos de Chefe de Esquadra e Comissário) – impede, em absoluto, o cumprimento do pressuposto administrativo da rigorosa objectividade na descrição dos factos; e implica necessariamente o desrespeito do princípio de que a transmissão de elementos deve ser feita em termos de evitar que tais informações possam suscitar estados de opinião susceptíveis de influenciar a apreciação dos factos pelos órgãos competentes.

Não obstante, a simples leitura do processo revela que a decisão de exclusão da 1ª Subchefe X… foi resultado da prática, de uma forma quase grosseira, de actos claramente violadores de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, prática essa reiterada desde 27/03/95 até 20/11/95 – e que apenas cessaram (os actos mas não os efeitos) em 19/07/96.
A interessada foi impedida de aceder ao exercício de um cargo profissional para o qual, não só tinha os requisitos teóricos necessários, como estava habilitada pela prestação de provas práticas com resultados muito satisfatórios. E este impedimento atingiu, inquestionavelmente, o conteúdo do direito ao trabalho (artigo 58º da Constituição da República Portuguesa, adiante C.R.P.), nas vertentes da livre escolha da profissão, da igualdade de oportunidades e não discriminação no acesso a cargos profissionais artigo 58º, nº 2, alínea b), da C.R.P..

Por outro lado, não posso deixar de registar que a elevada classificação da interessada – que ficara em nono lugar em cento e trinta e dois candidatos – contrasta gritantemente com a ligeireza (e invalidade) da argumentação que fundamentou a exclusão.
Como é bom de ver, não julgo violado o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da interessada (artigo 26º, nº 2, da C.R.P.). Diferentemente, o caso em apreço configura uma situação de violação do bom nome e reputação da senhora D. X… uma vez que ocorreu uma óbvia lesão da honra, dignidade e consideração social mediante a imputação feita pelo senhor Comandante Regional de Angra do Heroísmo da Polícia de Segurança Pública na folha de informação e no ofício subsequente. E esta lesão foi, se não agravada, pelo menos mantida na deliberação do júri do concurso de 27/09/95.

Da leitura de toda a literatura existente sobre as qualidades morais da interessada não resulta a alegação de uma só situação concreta. Por outras palavras, a argumentação cinge-se a juízos conclusivos – aliás, a um juízo (supostamente moral) conclusivo – que foi considerado suficiente pelas sucessivas instâncias, até ao Comando-Geral, e isto, acrescente-se, sem que à interessada fosse dada a oportunidade de se pronunciar.

De acordo com o nº 2 do artigo 18º da C.R.P., as restrições dos direitos, liberdades e garantias consagrados constitucionalmente devem obedecer, para além do mais, aos princípios da adequação, da necessidade, e da proporcionalidade entre as limitações impostas e os fins visados. Ora, demonstrar, em face do quadro factual exposto, que a actuação da Polícia de Segurança Pública não foi adequada, necessária ou tão pouco proporcional ao fim visado é, no mínimo, redundante.

Na situação que me foi dada averiguar verificou-se culpa funcional uma vez que os actos ilícitos violadores da Lei, maxime da Lei Fundamental, e dos princípios aplicáveis, foram praticados no exercício dos cargos de Comandante Regional de Angra do Heroísmo, de Presidente do júri do concurso e de Comandante-Geral, e dentro dos limites das suas atribuições e competências.

As actividades ilícitas, bem como as culpas funcionais, são imputáveis ao Comandante Regional de Angra do Heroísmo, ao Presidente do júri do concurso e ao Comandante-Geral porquanto estes revelaram, no mínimo, negligência, falta de zelo, e desconhecimento das regras de ordem técnica e de natureza prudencial que deveriam ter sido aplicadas (vide artigo 6º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967).

Estão, aliás, reunidos os demais pressupostos para a verificação da responsabilidade civil extra-contratual: o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade adequada. E acresce que o procedimento que me foi dado averiguar afectou de forma inadmissível os princípios da confiança e segurança jurídica ínsitas no conceito de Estado de direito democrático a que se reporta o artigo 2º da C.R.P., e infringiu o estatuído no seu artigo 18, nº 1.

Por tudo isto, mais estranha se torna a argumentação defendida até à exaustão de que a interessada não poderia frequentar o curso seguinte. Importaria, então, perguntar: os cursos de promoção a chefe de esquadra subsequentes revestiram-se de características tão diferentes dos anteriores, em termos de provas físicas e escritas, que impediram que a 1ª Subchefe X… os frequentasse? Mas ainda que assim fosse, não se justificaria que esta nova exclusão (agora em sede de recurso) fosse devidamente fundamentada?

A invalidade da actuação que impediu o acesso da 1ª Subchefe X… ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra acarretou a obrigação de reparação da violação dos direitos da interessada. Não tendo sido possível a reposição natural da situação – integração no 29º curso – impunha-se, então, a reconstituição da situação hipotética mais próxima – inclusão em curso subsequente -, e a reparação pecuniária dos danos provocados.

Anote-se, por fim, que o mesmo zelo procedimental que afastou a possibilidade da interessada frequentar um curso diferente daquele a que concorrera inicialmente poderia ter motivado, por exemplo, a ponderação de procedimento disciplinar – ou mesmo criminal – em relação a todos quantos violaram, de forma tão grosseira, direitos constitucionalmente consagrados.

III-Conclusões

Foi este o conjunto de factos que motivou a intervenção do Provedor de Justiça na função principal que lhe cabe de promoção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e de defesa da justiça no exercício dos poderes públicos.

Afigura-se-me claro que a presente situação configura um caso de responsabilidade civil do Estado, por actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício. Com efeito, estamos perante um procedimento ilícito; este conjunto de actos inválidos foi gerador de danos; e a interessada pode alegar ter ipso facto sofrido danos emergentes daquele procedimento.

Importa esclarecer que a posição que sustento na presente recomendação – a inclusão da interessada no próximo curso de promoção a chefe de esquadra e o pagamento de indemnização por danos sofridos – leva em linha de conta duas realidades distintas:
a) Por um lado, a eliminação do efeito negativo da não admissão ao concurso não se opera pelo mero reconhecimento do erro, ainda que acrescido do pagamento de indemnização relativa aos prejuízos concretamente sofridos em consequência do acto ilegal praticado pela Polícia de Segurança Pública e posteriormente revogado (teoria da indemnização);
b) E, por outro lado, a teoria da indemnização deve ceder, num primeiro momento, à da reposição nos casos em que o lesado mantém o interesse no desempenho da categoria superior a que tinha direito, se não fora o acto ilegal praticado pela Administração (teoria da reposição).

Atento à necessidade de se estabelecer uma ligação entre a lesão e o dano – através da previsibilidade deste em face daquela – sou levado a concluir que a indemnização cujo pagamento recomendo se deve confinar aos danos que a lesada provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão do seu direito ou interesse protegido.

Mas, no contencioso administrativo, e ao contrário do que sucede no contencioso de plena jurisdição, a tutela é indirecta – ou seja, não se opera pela restauração directa da situação do lesado, decorrente da própria decisão -, antes cabendo à Administração tomar as providências adequadas em ordem a que a decisão anulatória produza os seus efeitos práticos normais.
Assim, salvo os casos de impossibilidade ou de grave prejuízo para o interesse público, na execução da decisão anulatória proferida, a Administração deve reconstituir a situação (hipotética) que existiria à data do trânsito em julgado, como se o acto ilegal não tivesse sido praticado.

No caso em apreço, revogado o acto administrativo que excluíra a 1ª Subchefe X… do 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra, a Administração daria execução à decisão revogatória ao proferir um acto de sinal contrário, e ao providenciar pela admissão a que a candidata tinha direito.
Mas, acrescidamente, deve a Administração, através de Vossa Excelência, reconhecer a procedência da alegação da ofensa de direitos subjectivos ou de interesses legalmente protegidos, bem como a prova da existência de nexo causal entre a ilegalidade e o prejuízo. E esta responsabilidade da Administração podia ser efectivada por acordo com a lesada quanto ao montante da indemnização, com fundamento no Decreto-Lei nº 48.051, de 29 de Novembro de 1967. O Provedor de Justiça manifesta, desde já, a disponibilidade deste Órgão do Estado para proceder à necessária mediação para apuramento do montante da indemnização.

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,
RECOMENDO
A. Que a 1ª Subchefe X… seja admitida ao próximo curso de promoção a chefe de esquadra, sem necessidade de prestação de provas adicionais;
B. Que a 1ª Subchefe X… seja ressarcida dos danos causados no procedimento de candidatura ao 29º Curso de Promoção a Chefe de Esquadra, e que o montante da indemnização seja apurado por acordo com a interessada, com fundamento no Decreto-Lei nº 48.051, de 29 de Novembro de 1967.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel