Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Número: 60/A/99
Processo: 3065/92
Data: 16.07.1999
Área: A1

Assunto: AMBIENTE – RUÍDO – BARES – DISCOTECAS – LICENÇA DE UTILIZAÇÃO – DESPEJO ADMINISTRATIVO

Sequência: Não Acatada

I – Exposição de Motivos

1. No exercício do direito consagrado pelo art. 3º da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, foi-me dirigida queixa relativa a situação de poluição sonora imputada ao funcionamento de diversos estabelecimentos de bebidas, com e sem salas de dança, nas imediações das …, freguesia de …, em Lisboa.

Expõe o reclamante, em suma, mostrar-se prejudicado o descanso nocturno do seu agregado familiar, por se terem instalado na área circundante à da respectiva habitação vários bares e discotecas, designadamente os estabelecimentos denominados A, B, C e D.

Conjuntamente com o reclamante habitam a sua mulher, filha, genro e dois netos, os quais, tal como ele, são privados do repouso no período nocturno, seja pela excessiva concentração de pessoas na via pública, seja pela propagação do ruído associado à difusão de música ambiente.

Há largos anos que os lesados convivem com incomodidade grave e diária, sendo forçados, no limite da exaustão, a abandonar o local da residência, pernoitando em casa de familiares e amigos.

2. A situação, já insustentável, agravou-se, todavia, com o início da exploração de esplanada, em terraço sito ao nível das janelas dos quartos do fogo, em edifício ocupado pela discoteca D, já que ali é propagada música ambiente, a céu aberto, durante todo o período nocturno.

3. A intervenção exercida pelos agentes policiais, na sequência dos pedidos efectuados pelo reclamante, não se mostra adequada, considerada a dimensão que o problema assume, à reposição da tranquilidade, uma vez que esta intervenção é por natureza pontual e não dispõem as forças de segurança de competências para adoptar um procedimento com maior alcance.

4. Encetou o reclamante diligências junto das autoridades administrativas competentes, tendo em vista a apreciação dos factos reclamados e a adopção de medidas necessárias à reintegração dos interesses lesados.

Por fim, veio o reclamante a requerer a intervenção do Provedor de Justiça, invocando a omissão do exercício dos poderes públicos. Isto, porquanto, diz terem sido realizados, pela ex-Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais de Lisboa e Vale do Tejo, ensaios de medição acústica, cujos resultados atestam a procedência da reclamação, e ter sido reconhecida pela Câmara Municipal de Lisboa a ilegalidade da exploração da esplanada, sem que, contudo, determine a imposição de medidas restritivas do funcionamento da D.

5. Foi a actividade instrutória desenvolvida através de inquirição da Direcção Regional do Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo, e dos departamentos competentes da Câmara Municipal de Lisboa, tendo sido coligidos os dados que passo a expor:

5.1. As queixas apresentadas junto da Câmara Municipal de Lisboa, relativamente aos incómodos provenientes da exploração dos estabelecimentos B e A, remontam ao ano de 1989. No ano de 1997 foi formulada nova reclamação, visando, também, os estabelecimentos C e D.

5.2. Em comunicação dirigida, pelo ofício nº …/98/…, à Direcção Regional do Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo, informou o Exmo. Director do Departamento de Planeamento e Controlo Ambiental, em …1998:

“A existência da incomodidade alegada deve-se ao funcionamento de um bar com música gravada pertencente à discoteca D, situado na cobertura do edifício, encontrando-se diluída a contribuição dos outros estabelecimentos, em termos de poluição sonora.

Consultado o alvará sanitário para o espaço em causa, constatou-se a licença para exploração de um estabelecimento de bebidas e sala de dança, na 1ª categoria, não sendo feita qualquer alusão à utilização do terraço, presumindo-se, por conseguinte, que a mesma seja ilegal.

Aliás, o espaço objecto do processo de concessão de alvará era apenas constituído por rés-do-chão e 1º andar, estando o primeiro apetrechado com equipamento para o exercício da actividade de discoteca e bar, e o segundo para bar.

Acresce que, durante as vistorias realizadas, verificou-se que, na aludida cobertura, apenas existiam os aparelhos de ventilação e refrigeração de todo o edifício, conforme consta do parecer técnico desta Divisão, ínsito na informação nº … 93, concluindo-se que a adaptação do terraço para a actividade de bar, designadamente a construção de uma estrutura em vidro, foi implementada após a concessão do alvará sanitário.”

5.3. A vistoria efectuada no âmbito do processo de licenciamento sanitário, concluiu no sentido da imposição de determinados condicionalismos à exploração, notificando-se (1), em consonância, a sociedade requerente a:

a) Limitar o campo sonoro no interior da discoteca a um nível de Leq <=102 dB (A). b) Limitar o campo sonoro no interior do bar a um nível de Leq <=85 dB (A). c) Nos lances de escada entre a antecâmara da discoteca e bar e, entre o bar e o terraço, colocar parede em vidro duplo (lado interior da escada) entre o lance e a respectiva laje sobrejacente com excepção do patim de acesso ao bar. d) Limitar, quer na discoteca quer no bar, a produção de baixas frequências e sons de percussão. e) Não substituir equipamentos por outros de maior potência sem o conhecimento do serviço. 5.4. Questionada a Câmara Municipal sobre o cumprimento das limitações em causa, e, bem assim sobre a quantificação do ruído perturbador produzido pela discoteca D, veio o Exmo. Director do Departamento de Planeamento e Controlo Ambiental esclarecer desconhecerem os serviços se tais condições se mostram observadas, acrescentando não ter sido promovida acção de caracterização dos níveis sonoros emitidos, face à presunção de ilegalidade da exploração exercida na cobertura do terraço. Eventual intervenção da Divisão de Impacto Ambiental foi relegada para momento subsequente ao da legalização da esplanada (of. nº …/98/…, de … 1998 e of. nº …/98/…). 6. Em 17 de Fevereiro p.p., foram recebidos nas instalações da Provedoria de Justiça, na sequência da convocatória que entendi dirigir ao Exmo. Director Municipal de Planeamento e Gestão Urbanística, a Exma. Directora do Departamento de Administração Urbanística da Zona Ocidental, e técnico do mesmo departamento. Inquiridos sobre o licenciamento dos diversos estabelecimentos invocados na queixa foi informado, em suma, o seguinte: 6.1. A competência para licenciar os estabelecimentos de restauração e bebidas encontra-se delegada na Direcção Municipal de Planeamento e Gestão Urbanística, tendo sido instituída uma comissão especial para apreciar a legalização dos estabelecimentos não licenciados anteriores à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, e de estabelecimentos apenas licenciados por alvará sanitário. 6.2. Quanto à discoteca D, é certo que a exploração da esplanada não se mostra licenciada. Foi o proprietário intimado a proceder à demolição das obras ilegais levadas a cabo no terraço em … de 1995, sem que, contudo, a intimação haja sido acatada. A Direcção de Conservação de Edifícios e Obras Diversas (DCEOD) organizou o respectivo processo, tendo sido extraviada a documentação que se encontrava na sua posse. A DCEOD não prestou informação sobre a sequência concedida ao assunto. O alvará sanitário nº …, de … de 1993, reporta-se à exploração exercida no interior do edifício da discoteca, não comportando qualquer menção à utilização do terraço, a qual, aliás, foi iniciada em momento posterior. A Discoteca D não possui alvará de licença de utilização para efeitos do disposto no art. 1º, nº1, alínea b), e art. 50º, nº1 do Regime do Licenciamento de Obras Particulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na sua redacção actual, que habilite a exploração, nem, tão pouco, se mostram licenciadas as obras efectuadas. O projecto de arquitectura mereceu aprovação municipal, sem que haja sido concedido o adequado seguimento ao assunto. Não foi emitido parecer pela Administração do Porto de Lisboa nem, tão pouco, foram apresentados os projectos da especialidade. Nada consta relativamente ao exercício do poder de despejo sumário (art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto nº38.382 de 7 de Agosto de 1951, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº44.258, de 31 de Março de 1962). 6.3. O estabelecimento A, por seu turno, encontra-se licenciado, tendo as obras merecido aprovação municipal e tendo a Direcção Geral do Turismo emitido parecer favorável (2). 6.4. Relativamente ao B não se encontra qualquer acto de licenciamento, nem, sequer, pedido de licenciamento de obras. Foi desencadeado processo de intimação para desocupação por falta de licença de utilização. Em … de 1989 foi proposta intimação ao abrigo do art. 165º do R.G.E.U. O despejo veio a ser aprovado em … 1989 pelo Vereador do Pelouro. A intimação, porém, nunca terá sido notificada aos proprietários. Foi autuada a sociedade …, Lda., por motivo de ocupação sem licença de utilização (art. 8º, § 3º do R.G.E.U). O processo foi recebido no DCEOD em …1993. Não se encontram elementos que revelem ter a Polícia Municipal feito mais que autuar para efeitos contra-ordenacionais. É referida, entre a documentação sobre o assunto, a existência de um alvará de licença sanitária (nº …, emitido em … de 1989), sem que exista prova daquele licenciamento, nomeadamente, por não ser encontrado o dito alvará. A Ouvidoria da Câmara Municipal de Lisboa emitiu parecer no sentido de ser impedido o funcionamento até ao licenciamento. 6.5. A exploração da C também não se encontra licenciada, nem as obras se encontram legalizadas. Da análise da documentação facultada, verifica-se ter a sociedade … Lda., requerido o licenciamento da exploração deste estabelecimento em …1997. A Divisão de Impacto Ambiental emitiu parecer desfavorável em … 1998, em razão da não apresentação de projecto de isolamento sonoro. O Regimento de Sapadores Bombeiros pronunciou-se sobre o projecto em … p.p., preconizando a adopção de medidas regulamentares, destinadas a precaver os riscos de incêndio. II – Apreciação 1. As informações obtidas permitem concluir inequivocamente que, de entre os quatro estabelecimentos visados na queixa, três mantêm funcionamento ilegal, sem que se encontrem por parte das autoridades administrativas adoptados os procedimentos necessários para protecção dos seguintes interesses públicos: urbanização, estética, segurança, salubridade e salvaguarda do ambiente. 2. Na verdade, os estabelecimentos C e B não se encontram munidos de qualquer título que habilite o seu funcionamento, tanto por não disporem os respectivos proprietários de licença sanitária, emitida ao abrigo das Instruções aprovadas pela Portaria nº 6065 de 30 de Março de 1929, como de alvará de licença de abertura, nos termos fixados pelo Decreto-Lei nº 328/86, de 30 de Setembro, como ainda por não se mostrar a utilização ali praticada licenciada pelo município ao abrigo do regime que actualmente vigora no que à exploração dos estabelecimentos de bebidas diz respeito (3). 2.1. Nem, de resto, obtiveram aprovação municipal as obras de instalação dos estabelecimentos. 2.2. Aprovado o despejo da edificação ocupada pelo B em … 1989, não foi, sequer, efectuada a notificação ao destinatário, condição de eficácia do acto, pelo que não foram accionados quaisquer procedimentos de execução. 3. Relativamente à discoteca D, não foi verificado o cumprimento dos requisitos urbanísticos definidos em matéria de polícia administrativa das edificações, porquanto apenas se pronunciou a Câmara Municipal sobre o projecto de arquitectura, sem que, na falta de apresentação dos projectos da especialidade haja a Câmara Municipal intimado o proprietário a suprir aquela omissão ou desencadeado outro procedimento de reposição da legalidade. 3.1. A exploração não se confina ao espaço compreendido na licença sanitária, verificando-se infracção ao conjunto de limitações impostas com o acto de licenciamento sanitário, designadamente, as de condicionamento do campo acústico ao interior da edificação. 3.2. Desconhece o Departamento de Planeamento e Controlo Ambiental da Câmara Municipal de Lisboa se foram cumpridos os condicionalismos enunciados supra (ponto 5.3), fixados no acto de licenciamento, pois não teve lugar vistoria que verificasse a regularidade da exploração exercida no interior da edificação, nas fracções correspondentes ao rés-do-chão e ao primeiro andar. 3.3. O alvará sanitário não é condição suficiente para o funcionamento, mas ainda assim não posso deixar de formular reservas ao seu deferimento, pois nada mostra terem sido aprovadas as obras de instalação do estabelecimento, como nada faz crer ter sido deferida licença de utilização. Ora, determina-se no art. 50º, nº1, do citado Regime do Licenciamento de Obras Particulares que, em caso algum, pode ser licenciado o funcionamento de um estabelecimento, sem que seja exibida licença de utilização, a qual precede conferência do projecto de arquitectura com as obras executadas. Quando, o que poderia suceder, mas não sucedeu, é realizar-se conjuntamente a vistoria para o efeito da emissão das duas licenças – licença de utilização e licença sanitária. 3.4. Não compreendo, tão pouco, quais as razões que possam legitimar o não exercício de acção de fiscalização destinada a conhecer da conformidade da actividade com o licenciamento sanitário concedido, na falta de apresentação pelo responsável de elementos probatórios que permitam dar por cumpridas as adaptações preconizadas. 3.5. Não foi, também, prestada justificação atendível para a não execução coactiva da intimação para demolição das obras ilegais levadas a cabo no terraço. 4. A Câmara Municipal de Lisboa, ao omitir o exercício dos poderes de que dispõe em sede de reposição da legalidade, e ao não praticar os actos necessários à execução das deliberações tomadas no uso daquela competência, é responsável pela perpetuação de uma situação ilegal, tanto mais reprovável quanto reforça a confiança dos infractores na consolidação de actos ilegais. 4.1. A inércia dos órgãos e serviços com competências próprias em sede de ordenamento territorial e urbanístico, representa violação do dever de boa administração porquanto acarreta prejuízo para a regular prossecução do interesse público. 4.2. Não deve a Câmara Municipal permitir que se perpetuem situações de ilegalidade, tanto mais que à flagrante violação da Lei, acresce, no que concerne à exploração da D, a desobediência deliberada a ordem municipal de demolição e o manifesto desrespeito pelas condições do licenciamento concedido. 4.3. Para mais, as garantias de autoridade concedidas constitucionalmente aos poderes locais, se vulneradas pelo seu não exercício atempado e escrupuloso, perdem a sua razão de ser e toleram que se crie um injustificado clima de impunidade na comunidade municipal. 4.4. É certo que o poder de determinar o despejo de edificação ocupada sem a respectiva licença de utilização ou em desconformidade com o uso licenciado, previsto no art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (4), apresenta carácter discricionário, cabendo à câmara municipal a possibilidade de escolher a oportunidade de agir (5). Não pode confundir-se, porém, discricionaridade e arbitrariedade. Apreciados os factos, não se conhece qualquer motivação de interesse público que possa fundar o não exercício da faculdade de determinar a interdição do exercício da utilização prosseguida nos edifícios ocupados pelos estabelecimentos de bebidas D, B e C, sem o necessário título de licenciamento. 4.5. Na verdade, a licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas é expressamente equiparada à licença prevista no art. 26º do regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro (6). O acto administrativo que concede a licença de utilização para serviços de bebidas atesta a conformidade da obra com o projecto aprovado, a adequação do estabelecimento ao uso previsto, e, ainda, o cumprimento das pertinentes disposições regulamentares (seja das que estabelecem os requisitos das instalações, classificação e funcionamento dos estabelecimentos, seja das que regem os domínios sanitário e da segurança contra os riscos de incêndio). 4.6. Parecem mostrar-se, pois, preenchidos, no que toca a todos e a cada um dos estabelecimentos, os pressupostos de facto e de direito do exercício do poder de ordenar o despejo sumário das edificações. 5. São de ordem diversa, como tive, já, oportunidade de frisar, os interesses públicos cuja regular prossecução se mostra lesada por não ter tido lugar, em momento prévio ou subsequente ao do início da exploração de cada um dos estabelecimentos, a verificação do cumprimento das pertinentes normas legais: urbanização, estética, segurança, salubridade e salvaguarda do ambiente. 5.1.Na ausência de elementos que atestem a conformidade da exploração com o regime jurídico aplicável ao seu exercício, deve presumir-se a preterição do conjunto de normas que integram a disciplina legal. De outro modo, interrogo-me sobre que justificação teriam as normas legais e regulamentares ao imporem a necessidade de a Administração Pública licenciar ou autorizar certas actividades e estabelecimentos. Ora, é ponto assente serem os estabelecimentos alvo da reclamação, de acesso ao público, frequentados por elevado número de pessoas que recorrem aos serviços ali prestados, com concentração diária no mesmo espaço de centenas de utilizadores. 5.2. Por este mesmo motivo, não pode ser descurada a análise da adequação das condições de funcionamento dos estabelecimentos com os requisitos legais e regulamentares em matéria de salubridade e de segurança contra o risco de incêndio. Não se mostra sequer definida a capacidade dos estabelecimentos por referência ao número de utentes cujo acesso é permitido (v.d. art. 30º, nº 5), nem, foi verificada a adequação das condições de funcionamento, higiene e conservação das estruturas, instalações e equipamentos dos estabelecimentos de bebidas visados ( art. 32º do Decreto-Lei nº 168/97), pelo que não se pode concluir encontrar-se regularmente acautelada a protecção dos utentes. 5.3. Por fim, não foram observados os meios afectos à prevenção contra riscos de incêndio. É meu dever ter presente que a necessidade de licenciamento eleva o município a uma posição de garantia do público e dos transeuntes. Em caso de sinistro em estabelecimentos não licenciados, cujo funcionamento clandestino a Câmara Municipal não ignora, não será legítimo invocar excepções de qualquer ordem que obstem à responsabilidade civil do município por danos que venham a ser verificados. 5.4. Não pode deixar de merecer a minha ponderação a circunstância de a exploração ilegal dos estabelecimentos prejudicar gravemente os moradores vizinhos, com preterição do direito fundamental ao descanso, sem que os mesmos aufiram de compensação. A situação apreciada apresenta-se tão mais iníqua quanto é certo que ao elevado provento que os proprietários dos estabelecimentos auferem no exercício da utilização ilegal, se contrapõe, como efeito directo daquele exercício, na esfera dos reclamantes, a grave incomodidade. 5.4.1. Observo que o legislador interditou o funcionamento de casas de espectáculos, discotecas, bares e estabelecimentos congéneres, cujas instalações não disponham de condições adequadas de isolamento acústico, no período compreendido entre as 24 horas e as 8 horas (7). Ora, se tais restrições visam, expressamente, os estabelecimentos licenciados, nos termos em que o estatui o preceito contido no nº 1 do citado artigo, por maioria de razão não há-de suscitar reservas, tendo presente o elemento teleológico da norma, a sua aplicação aos estabelecimentos de bebidas, com ou sem salas de dança, que mantenham funcionamento ilegal. Apelo aqui para a compreensão da dupla natureza dos factos geradores de poluição sonora. De um lado, os seus efeitos no plano da degradação da qualidade de vida dos cidadãos, a par dos danos psicológicos e fisiológicos sobre a saúde; de outro lado, a perturbação sobre a ordem pública, na sua vertente de sossego e tranquilidade na via pública. 6. Mostra-se, pois, devidamente fundada, na necessidade de protecção de interesses públicos ponderosos, a posição que a câmara municipal vier a assumir no sentido de determinar o despejo dos três estabelecimentos que prosseguem exploração à revelia do licenciamento municipal. 6.1. Considero encontrarem-se preenchidos todos os pressupostos do exercício daquela competência: pressupostos de facto, de direito e de mérito. Julgo, pois, que a margem de livre decisão administrativa disposta por Lei à Câmara Municipal encontra reunidas todas as condições para que o resultado da ponderação seja unívoco. A liberdade concedida à Administração é relativa, já que devem os seus órgãos determinar-se pelo fim de interesse público específico para cuja prossecução essa liberdade lhes foi outorgada. Ora, não verifico, na minha análise, tão exaustiva quanto mo permitiu a audição dos competentes órgãos e serviços camarários, qualquer facto determinante de um interesse público cuja consecução fundamente suficientemente o não exercício daquele poder (8). 6.2. Esta observação pode tornar-se mais clara se nos confrontarmos com o desvio de poder próprio dos actos administrativos que se afastam do fim previsto pelo legislador na concessão do poder discricionário. Do disposto no § único do art. 19º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (9), resulta que não é um qualquer motivo do acto que pode legitimar a sua anulação.
Apenas o motivo principalmente determinante. Isto, com o sentido de excluir os motivos superabundantes que, não obstante se encontrem na base do acto, não se apresentem como motivo suficiente para a sua prática.

Do mesmo modo, quando um órgão administrativo não actua, invocando para esse efeito a discricionaridade contida no poder, há-de submeter-se a abstenção e os seus motivos a um teste semelhante; por outras palavras, verificar se o órgão deixou de intervir por motivo que possa dar-se como determinante em estreita afinidade com a norma habilitante ou se, pelo contrário, condiciona o seu comportamento a um motivo superabundante, ignorando a verificação de factos constitutivos de pressupostos de facto e de direito que apontam para a necessidade de intervir.

6.3. Regressando aos factos descritos, pode verificar-se que os proprietários dos estabelecimentos mantêm exploração indevida há largos anos, sem que se justifique, assim, conceder-lhes, previamente ao exercício do poder de despejo, um prazo para regularização da situação.

Nem venha brandir-se com o princípio da proporcionalidade para encontrar vias mais contemporizadoras, pois o seu alcance cessa onde se inicie a ilegalidade. A reintegração do interesse público admite, sem dúvida, ajustamentos determinados pela proibição do excesso, mas o primado da Lei escapa a esta ordem de ponderações.

Tolerar por mais tempo a abertura de estabelecimentos não licenciados, quando é certo que dispuseram os seus proprietários do tempo necessário para os regularizar, é inconveniente, é injusto para com os proprietários de estabelecimentos congéneres cumpridores e mostra-se claramente lesivo do direito ao repouso e tranquilidade dos moradores mais próximos.

A simples apresentação de pedido de legalização não basta para ter por reposta a legalidade, não devendo a Administração consentir,no decurso da pendência de eventual procedimento administrativo de licenciamento, no exercício de uso ilegítimo.

7. De todo o modo, e na eventualidade de a Câmara Municipal entender, escorando-se em motivo de interesse público não revelado, e após ponderação de elementos de facto até agora desconhecidos, não exercer a faculdade discricionária de ordenar o despejo sumário, sempre deverá, ao menos, aplicar aos estabelecimentos reclamados a interdição do funcionamento no período horário compreendido entre as 24 horas e as 8 horas.

Isto, por não poder a Câmara Municipal de Lisboa tolerar que os proprietários de estabelecimentos não licenciados beneficiem de um regime mais permissivo que aquele a que se subordinam os estabelecimentos com exploração licenciada. São de ordem pública as motivações que oponho ao não exercício de sindicância administrativa relativamente aos estabelecimentos que mantêm funcionamento ilegal, e não considerações de simples oportunidade, conveniência ou mérito.

III – Conclusões

Tudo visto, e no exercício dos poderes que a Constituição e a Lei me conferem,

RECOMENDO

1º que seja ordenado, nos termos do disposto no art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o despejo sumário dos estabelecimentos D, C e B, sitos na freguesia de …, porquanto vêm sendo explorados sem o licenciamento municipal devido que habilitaria uma utilização conforme, tendo presente que no art. 10ºdo Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, se equipara a licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas à licença prevista no art. 26º do Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares;

2º que, de imediato, no decurso dos prazos a conceder para audiência dos interessados (arts 100º e segs. do Código do Procedimento Administrativo) e para efeito do disposto no art. 165º §4º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (45 dias), seja fixado um horário de funcionamento conforme com as exigências contidas no art. 3º, nº2, do Decreto-Lei nº 271/84, de 6 de Agosto (interdição entre as 24 horas e as 8 horas); e,

3º cumulativamente, instaurado procedimento contra-ordenacional: por infracção prevista no art. 54º, nº1, alínea a), do Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e ainda por infracção prevista no art. 38º, nº1, alínea f), do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) V. informação nº … 93, de … 1993, do serviço do controlo de ruído, Divisão de Impacto Ambiental, proc. camarário nº … /91.

(2) cfr. procs. 2672/OB/89 e 136/0B/86.

(3) Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho e demais legislação complementar.

(4) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 38382, de 7 de Agosto de 1951, com a sua actual redacção.

(5) Assim pode ler-se no Acórdão do S.T.A. de 27/7/1978 (in AD nº206, ANO XVIII, p.290) “O titular do poder discricionário é o único juiz da oportunidade e da conveniência em o exercer.

Diz-se, no já referido art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas que ‘as câmaras municipais poderão ordenar…o despejo sumário…’. Ora, como se sabe, a expressão ‘poderão’ inculca, normalmente, a ideia de que o legislador confere aos seus órgãos uma margem de liberdade – relativa, é claro, de apreciação: – verificadas certas circunstâncias, o órgão terá o poder de agir ou de não agir ou de escolher a oportunidade de agir”.”

(6) cfr. art. 10º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho.

(7) art. 3º, nº2 do Decreto-Lei nº 271/84, de 6 de Agosto.

(8) “Que tal opção seja realmente livre, por desígnio do legislador, é algo de que duvidamos, desde logo porque o legislador a faz depender de pressupostos com algum sentido orientador, mesmo quando formulados através de conceitos indeterminados, como acontece no caso aqui analisado, e assim condiciona e orienta o decisor, pelo que a discricionaridade de escolha “livre” , entre soluções “indiferenciadamente admissíveis” não é totalmente livre, estando sempre ligada a pressupostos legalmente definidos, de forma mais ou menos determinada (…) o pressuposto, ao delimitar o âmbito da ponderação legítima, fornece os limites da dita margem de livre apreciação (…), com o que vincula, de algum modo, a decisão a tomar no uso da discricionaridade “pura”.

A decisão discricionária nunca é uma escolha de moeda ao ar ou indiferente entre várias alternativas jurídicas de solução, só aparentemente “indiferenciadamente admissíveis”; antes resulta da busca da única decisão legítima no caso – válida juridicamente e também do ponto de vista das exigências do mérito administrativo. (…)

Também a discricionaridade pura será exercício de função jurídica e, portanto, procura da melhor solução jurídica e administrativa, conforme a intenção da delegação legislativa do poder e simultânea atribuição da competência em causa à Administração. Quer do ponto vista da correcção jurídica, quer do ponto de vista do mérito – e o interesse público é questão jurídica e questão de mérito – não haverá aqui, para a autoridade administrativa, soluções equivalentes. (PORTOCARRERO, Maria Francisca, Discricionaridade e conceitos imprecisos: ainda fará sentido a distinção? Anotação ao Acórdão do STA de 20.11.1997, Pº 39512, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 10, Julho/Agosto, 1998.)

(9) Decreto-Lei nº 40 768, de 8 de Setembro de 1956.