Director-Coordenador da Caixa Geral de Aposentações

Rec. n. º 33/A/00
Proc.: R-1442/97
Data: 07-04-2000
Área: A 3

Assunto: SEGURANÇA SOCIAL. PENSÃO DE APOSENTAÇÃO. PAGAMENTO INDEVIDO. REPOSIÇÃO.

Sequência: Acatada

Ao apreciar os casos concretos dos três reclamantes – e que adiante melhor caracterizarei – foi-me dado perceber o quanto de grave e injusta se veio a revelar a actuação da Caixa Geral de Aposentações relativamente ao processo de revogação dos actos de atribuição das pensões dos reclamantes. Não está em causa a legalidade e/ou o mérito da revogação propriamente dita. Está em causa, isso sim, a responsabilidade decorrente dos actos revogatórios dessa Caixa.
Efectivamente, revogado um acto com fundamento na sua ilegalidade não se me afigura justo nem legal que se exija a terceiros de boa-fé (serviços dos funcionários reclamantes) o encargo de suportarem os custos com a reparação dessa mesma ilegalidade, para a qual, aliás, estes em nada contribuíram, como adiante melhor evidenciarei.

Mas, sobretudo, aquilo a que não posso ficar indiferente – atenta a dimensão da ilegalidade e da injustiça – prende-se com o facto de os reclamantes em causa, perante a revogação das suas pensões, terem sido confrontados com a imposição de reporem as pensões indevidamente recebidas, sem que, ao mesmo tempo, tivessem sido devidamente ressarcidos pela “perda de vencimentos” correspondente ao tempo em que estiveram na irregular situação de aposentados (e para a qual, refira-se, também em nada contribuíram). Verifica-se que quer a Caixa quer os serviços dos reclamantes – estes, por razões atendíveis – não procederam à “reparação dos vencimentos perdidos” aos interessados e a Caixa, apesar disso, não deixou de recorrer à cobrança coerciva das dívidas com a exigência de juros moratórios.

É neste contexto que surge a presente Recomendação, a qual visa a resolução dos casos concretos dos reclamantes em causa e obstar a que, no futuro, se venham a deparar situações idênticas. Como V.Exa. compreenderá e por certo não deixará de querer corrigir, a actuação da Caixa nos casos assinalados comportou claro prejuízo – injustificado, violento e injusto – para os reclamantes.

I – Os factos

É comum aos três reclamantes o facto de terem requerido as respectivas pensões de aposentação no âmbito do regime da pensão unificada.

1. Situação do Senhor X:
1.1. Através do ofício de 96.01.19, e sob a epígrafe “pensão definitiva de aposentação”, a Caixa Geral de Aposentações informou o reclamante de que, “nos termos do art. 97.º do Estatuto da Aposentação (E.A.) – DL n.º 498/72, de 9/12 – foi reconhecido o direito à aposentação, por despacho de 96.01.19”, acrescentando em observações que a “aposentação é concedida sob condição de o Centro Nacional de Pensões confirmar os períodos de contribuição para a segurança social indicados no processo e a assunção dos correspondentes encargos no âmbito da pensão unificada, sendo o montante da pensão alterado posteriormente em conformidade com o que for informado por aquele Centro”.
1.2. Como consequência do despacho de aposentação, o reclamante foi de imediato desligado do serviço, passando à situação de aposentado em 19.01.96 e, consequentemente, a receber mensalmente da CGA a respectiva pensão.
1.3. Pelo ofício de 96.12.27, a Caixa Geral de Aposentações informou o reclamante de que o supra referido despacho de aposentação datado de 96.01.19 havia sido entretanto revogado em 96.12.06 com fundamento em ilegalidade por erro nos pressupostos, uma vez que o Centro Nacional de Pensões não confirmara a totalidade dos períodos contributivos para o regime geral de segurança social, pelo que o reclamante não reuniria o tempo de serviço suficiente para se poder aposentar.
1.4. Mais foi o reclamante informado pela CGA de que, em consequência da revogação do primeiro despacho, teria que repor a totalidade das importâncias recebidas daquela entidade a título de pensão de aposentação, no total de 868 519$00.
1.5. Posteriormente, perante as reclamações que lhe foram dirigidas pelo reclamante e pelo próprio serviço deste último (Câmara Municipal de Viseu), a Caixa Geral de Aposentações, por via dos ofícios de 97.02.14, veio expressar a sua posição sobre o assunto, nos seguintes termos: “os efeitos decorrentes da revogação da pensão com fundamento em ilegalidade por erro nos pressupostos (…) determina a anulação da sua desligação de serviço para efeitos de aposentação e a manutenção do vínculo ao serviço do activo, com o consequente direito aos vencimentos, bem como a obrigatoriedade da reposição das quantias recebidas a título de pensão”.
1.6. O serviço do reclamante (Câmara Municipal de Viseu) readmitiu o interessado, mas apenas lhe reconheceu e lhe liquidou os vencimentos posteriores à data da readmissão, recusando-se a pagar os alegados vencimentos perdidos por considerar que a responsabilidade pelo evento cabia por inteiro à Caixa Geral de Aposentações.
1.7. Não obstante o facto de o reclamante não ter recebido os vencimentos perdidos, e disso tendo conhecimento, a CGA não deixou de exigir ao interessado a reposição das importâncias pagas a título de pensão, tendo encaminhado a dívida para cobrança coerciva, pelo que o reclamante se encontra hoje confrontado com um processo de execução fiscal (com o n.º …/98 – Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Viseu) em que lhe é exigido o pagamento da quantia exequenda e juros de mora, num total, à data, de 1 119 668$00.

2. Situação do Senhor Y:
2.1. Os factos relativos a este reclamante pouco divergem do que foi evidenciado a propósito do outro reclamante. Contudo, importa salientar algumas especificidades: em causa está, por um lado, a reparação de vencimentos correspondente ao período compreendido entre 95.10.24 e 96.03.31, com os consequentes reflexos da contagem desse tempo para efeitos da aposentação e, por outro lado, a reposição das importâncias pagas pela CGA a título de pensão entre 96.01.01 e 96.02.29.
2.2. O serviço do reclamante (Direcção Regional da Agricultura da Beira Litoral), invocando para o efeito o despacho que sobre o assunto foi proferido pelo Senhor Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, alega que a responsabilidade pela indemnização devida ao reclamante relativa à perda de vencimentos no período em causa caberia exclusivamente à Caixa Geral de Aposentações.

3. Situação do Senhor Z:
3.1. Relativamente à situação desta reclamante evidencio as especificidades que a diferenciam dos outros casos descritos. Desde logo, a questão controvertida subjacente ao acto revogatório da pensão prende-se com o facto de a Caixa ter considerado no acto da atribuição da pensão um determinado tempo de serviço que, posteriormente, e no seu entender, não era susceptível de conferir direito de inscrição e, como tal, não podendo relevar para efeito do cálculo da pensão de aposentação. Esta matéria está, contudo, em apreciação no Tribunal, uma vez que a reclamante interpôs oportunamente recurso de anulação do acto revogatório. Não discuto, por isso, neste caso concreto, a legalidade ou ilegalidade do acto revogatório propriamente dito, mas admitindo, por mera hipótese, como tendo sido legal, suscita-se naturalmente enquadramento idêntico quanto às consequências e responsabilidades decorrentes da revogação.
3.2. Assim sendo, em causa não deixa de estar também, por um lado, a reparação de vencimentos correspondente ao período compreendido entre 95.04.19 e 95.11.30, com os consequentes reflexos da contagem desse tempo para efeitos da aposentação e, por outro lado, a reposição das importâncias pagas pela CGA a título de pensão no período em causa.

II – O direito

4. Importa começar por apreciar o primeiro acto administrativo relativo à atribuição da pensão definitiva de aposentação, ou seja, o despacho da CGA, proferido ao abrigo do art. 97.º do Estatuto da Aposentação, de reconhecimento do direito de aposentação. É certo que a CGA conferiu àquele acto a natureza de um acto administrativo sob condição. Efectivamente, a CGA fez depender a própria aposentação da verificação de uma condição: o Centro Nacional de Pensões confirmar os períodos de contribuição para a segurança social e a assunção dos correspondentes encargos no âmbito da pensão unificada. Contudo, esta condição é ilegal, pois a mesma só podia ter sido aposta no âmbito da atribuição da pensão provisória e, mesmo sim, incidido apenas sobre o montante da pensão e nunca sobre o período contributivo. A pensão só pode ser fixada, sob condição, no que concerne ao respectivo montante e não já quanto à verificação dos seus pressupostos.
4.1. Atente-se, para o efeito, no disposto no art. 97.º do Estatuto da Aposentação (E.A.) que por comodidade de exposição se passa a transcrever:
“1. Concluída a instrução do processo, a administração da Caixa, se julgar verificadas as condições necessárias, proferirá resolução final sobre o direito à pensão de aposentação e sobre o montante desta, regulando definitivamente a situação do interessado.
2. Suscitando-se dúvidas sobre matéria que possa influir no montante da pensão, a Caixa fixará provisoriamente as bases do seu cálculo, em conformidade com os dados já apurados e sem prejuízo da sua rectificação em resolução final, uma vez completada a instrução do processo”.
4.2. Que conclusões resultam destas normas legais?
4.2.1. Desde logo se verifica que a resolução final que fixe a pensão definitiva só deverá ser formulada pela CGA uma vez concluída a instrução do processo e, consequentemente, verificados que estejam todos os pressupostos da atribuição da pensão (reconhecimento do direito à pensão e respectivo montante). Entende-se que assim seja. Afinal, ao pretender regular definitivamente a situação de aposentação do subscritor, a resolução da CGA deverá ter em consideração todos os pressupostos da atribuição da pensão. Não faz, por isso, qualquer sentido que seja proferida a resolução final quando ainda não está concluída a instrução do respectivo processo, quando, afinal, subsistem dúvidas quanto ao próprio direito à pensão (sobretudo, um dos seus pressupostos fundamentais: o período contributivo para a segurança social ou tempo de serviço).
4.2.2. Admite-se (art. 97.º, n.º 2, do E.A.), contudo, que seja possível à CGA fixar provisoriamente uma pensão nos casos em que apenas esteja em causa o montante da pensão, mas não os seus pressupostos. Também se entende que assim seja, pois, neste caso, o direito à pensão apresenta-se consolidado, mas não o montante da mesma. Afigura-se assim lógico, razoável e legal que, nestas circunstâncias, possa ser aposta uma condição à pensão provisória que se traduzirá na posterior rectificação do montante da pensão e respectivos acertos.
4.3. Face ao exposto, nos casos em apreço, os actos de atribuição das pensões são ilegais, atenta a própria ilegalidade da condição aposta (1) (2). Ainda que assim se não entenda, o que só por mera hipótese se admite, a verdade é que os actos em causa nunca teriam sido praticados sem a aposição daquela condição, pelo que os mesmos seriam sempre inválidos por erro nos pressupostos de facto e de direito e, por isso, susceptíveis de revogação, dentro do prazo do respectivo recurso contencioso, com fundamento na sua própria invalidade (cfr. art. 141.º, n.º 1, do CPA). Os actos revogatórios, enquanto tais, foram, por conseguinte, validamente expressos.
4.4. A revogação com este tipo de fundamento tem efeitos retroactivos(3) . Estamos aqui no domínio da revogação anulatória, “cuja função é a de destruir – e não apenas fazer cessar – os efeitos de anteriores decisões administrativas inválidas, sendo tal invalidade a causa determinante do acto de revogação anulatória” (4). A revogação nestas circunstâncias não tem um simples efeito abrogatório (ex nunc), mas apresenta-se dotada de eficácia ex tunc, visando destruir todos os efeitos do acto revogado.

5.Apreciada a ilegalidade da decisão de atribuição da pensão de aposentação e apreciada a legalidade da revogação efectuada, importará debruçarmo-nos sobre a incidência dos efeitos do acto revogatório(5) em causa.
5.1.O acto de atribuição da pensão de aposentação (ou seja, a resolução da CGA) além de regular a situação do subscritor (destinatário imediato) não deixou de regular automaticamente, por decorrência da própria lei, a situação do serviço em que o subscritor exercia funções. Estamos, assim, como a doutrina refere, perante um acto administrativo de efeitos duplos(6) ou um acto administrativo assente numa relação jurídica de “poligonalidade”(7) em que se verifica existirem interesses e interessados diversos.
5.2. Efectivamente, nos termos do art. 99.º do E.A. que, conforme a epígrafe, trata do “termo do serviço”, as resoluções da CGA são “desde logo comunicadas aos serviços onde o subscritor exerça funções” (n.º 1) e, em consequência:
a) o subscritor fica de imediato desligado do serviço (n.º 2);
b) abre-se vaga no serviço (n.º 3);
c) o subscritor fica na situação de “aguardar aposentação” com direito a receber do respectivo serviço uma pensão transitória de aposentação desde o dia em que foi desligado do serviço até ao fim do mês em que foi publicado o nome do subscritor (n.º 3).
5.3. Verifica-se, assim, que o acto administrativo inicial da CGA (resolução de aposentação) regula imediatamente a relação jurídica (preparatória ou determinante) de aposentação em que o interessado e destinatário imediato é, naturalmente, o subscritor. Trata-se, afinal, de uma relação jurídica que se estabelece exclusivamente entre a CGA e o subscritor, à qual é totalmente alheio o serviço onde este último exercia funções. Contudo, tal acto da CGA não esgota os seus efeitos na relação jurídica de aposentação propriamente dita. Desde logo, o acto da CGA projecta-se, também, sobre uma terceira entidade (o serviço do subscritor) e, consequentemente, sobre a relação jurídica de emprego público. Ora, a constituição, a manutenção, a modificação, a suspensão e a extinção da relação jurídica de emprego desenrolam-se, em princípio, apenas entre o serviço e o funcionário. Acontece, porém, que nesta última relação interveio, a dada altura, um acto externo, emanado pela CGA, por via do qual o funcionário-subscritor foi colocado na situação de aguardar aposentação e, automaticamente, desligado do serviço. Como consequência da desligação do serviço, o aposentando perdeu o direito a perceber retribuição, afinal, contrapartida da prestação efectiva de trabalho(8).
5.4. O acto de reconhecimento do direito do subscritor à aposentação proferido pela CGA veio, todavia, a ser revogado, com fundamento em ilegalidade, alegadamente por erro nos pressupostos. Tal situação não pode, de forma alguma, ser imputável, no todo ou em parte, ao serviço respectivo do interessado. Por via da revogação do referido acto administrativo, o serviço viu-se na contingência de readmitir o funcionário que havia saído da sua esfera jurídica efectiva.
5.5. Se, como atrás referi, com a prolação do acto revogatório tudo se passa como se o acto revogado nunca tivesse existido e daí deriva a necessidade de reconstituir a situação que se verificaria se a aposentação não tivesse ocorrido – assim se concretizando o princípio da reconstituição da situação actual hipotética -, tal não pode querer significar que a ficção jurídica tenha que ir ao ponto de fantasiar que o funcionário esteve a trabalhar no serviço durante todo o período em que dele esteve efectivamente afastado (na situação de aposentando e de aposentado) e que lhe são devidos vencimentos relativos a essa ficção por parte de quem nada contribuiu para a situação gerada (o serviço).
5.6. Conclui-se, assim, que a operação de destruição do acto atingido pela revogação anulatória não pode (e não deve) ser cega, nem absoluta, sob pena de graves ilogismos e perversões. Impõe-se que se lhe introduzam “atenuações excepcionais, por motivos de equidade ou de segurança jurídica”(9). Esta é, aliás, a lição colhida junto de PIETRO VIRGA(10) que, ao apreciar o instituto do “annullamento” (“anulação”, ou seja, o equivalente à nossa revogação anulatória): “A eficácia dos procedimentos de anulação retroage ao momento da emanação dos actos viciados, que eles eliminam. Em consequência, caem todos os efeitos que o acto tenha produzido entretanto, à excepção daqueles factos materiais que se verificaram e que não é possível destruir (“factum infectum fieri naquit”). Na verdade, a retroactividade da anulação do acto administrativo pode explicar os seus efeitos quando se trate de considerar como não realizado um acto ilegitimamente emanado ou de considerar, vice-versa, como realizado um acto ilegitimamente omitido, mas não pode eliminar na sua materialidade um acto realmente acontecido ou fazer como se na realidade dos factos tenha sucedido um acontecimento que, pelo contrário, se não verificou”.
5.7. Como refere FREITAS DO AMARAL: “… importa na verdade considerar o espaço de tempo que medeou entre a prática do acto ilegal e o momento em que se reintegra a ordem jurídica e reconstituir, na medida do possível, a situação que neste último momento existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado e se, portanto, o curso dos acontecimentos nesse espaço de tempo se tivesse apoiado sobre uma base legal” (11).

Vejamos:
Em que medida será possível regressar ao ponto de partida, para que o serviço pague os vencimentos relativos ao período em causa, sendo certo que o funcionário não exerceu as suas funções nesse período?
Ou seja, em que medida será possível impor ao serviço a obrigação de pagamento ao funcionário dos vencimentos que ele deixou de receber, quando, é por demais evidente que não é possível reconstituir a prestação do trabalho não prestado, contrapartida do vencimento a que o funcionário teria direito se, de facto, o tivesse exercido?
Afinal, em que medida é possível reconstituir a relação jurídica de emprego público em toda a sua extensão, sendo certo que tal relação comporta direitos e deveres para ambas as partes (direito ao vencimento versus dever de prestar serviço, dever de pagar o vencimento versus direito à prestação efectiva de serviço)? Sendo impossível a reconstituição de todos estes direitos e deveres, não pode impor-se a reconstituição anómala (porque parcial) dessa mesma relação jurídica de emprego público, sob pena de se estar a defender a prática de um novo acto ilegal (pagamento de vencimentos sem contrapartida de trabalho efectivamente prestado). A “reconstituição na medida do possível” tem, afinal, a própria legalidade como limite: a coberto da eficácia retroactiva da revogação anulatória de um acto ilegal, não pode impor-se a prática de um outro acto ilegal, consubstanciado, nos casos concretos, no pagamento de remunerações por trabalho não prestado(12). Por outro lado, sempre se dirá que a “reconstituição na medida do possível” tem como limite a razoabilidade, a equidade, a segurança jurídica e a boa-fé em que assentam os interesses de terceiros legalmente protegidos, sendo certo que os serviços dos funcionários subscritores são, afinal, terceiras entidades com interesse directo em ambas as decisões da Caixa Geral de Aposentações (resolução de aposentação e decisão revogatória). Ora, como vimos, nos termos do disposto no art. 99.º, n.º 1, do Estatuto da Aposentação, a “desligação do serviço” é um acto consequente da resolução final emanada pela Caixa Geral de Aposentações sobre a aposentação do subscritor.
5.8. Assim, perante a impossibilidade de reconstituição integral da situação hipotética decorrente da anulação do acto ilegal que lhe esteve na origem, permanece a questão de saber quem deve reparar os prejuízos que os actos revogatórios trouxeram para os interessados. É pacifico o entendimento de que, perante o acto revogatório, os interessados ficam obrigados a repor as importâncias recebidas entretanto a título de pensões e, como contrapartida, é-lhes reconhecido o direito a serem compensados. Esta reparação tem alimentado duas teses distintas: uma que sustenta que o funcionário deve receber os vencimentos correspondentes ao período em causa (tese dos vencimentos) e outra no sentido de que o funcionário não tem direito aos vencimentos, mas sim a uma indemnização (tese da indemnização). A este propósito, importa referir que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) tem sido maioritariamente no sentido de acolher a tese da indemnização. O mesmo se passa com a Procuradoria Geral da República (PGR)(13). Efectivamente, conforme resulta do Acórdão do STA de 22.11.84, e passo a transcrever:
“(…) constitui princípio geral do nosso direito – que não tem sido posto em dúvida – o de que o vencimento corresponde a remuneração pelo efectivo exercício do cargo, salvos os casos exceptuados na lei.
(…) o vencimento remunera, em princípio, o serviço efectivamente prestado à Administração e não a simples existência do vínculo entre esta e o funcionário.
Sendo assim, a anulação contenciosa do acto que, extinguindo a relação de emprego, impediu o funcionário de prestar serviço durante o período decorrido entre o início da eficácia daquele acto e a respectiva integração, não pode, salvo disposição especial que tal permita, legitimar o abono dos vencimentos perdidos.
E isto porque a referida anulação, pela própria natureza das coisas, não tem a virtualidade de “reconstituir” uma prestação de serviço que não se verificou e que não pode, por isso, ser abrangida pela ficção que, no fundo, está na base da reconstituição da chamada situação actual hipotética – a que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado” (14).
5.9. Acontece que nos casos em apreço, a Caixa Geral de Aposentações, para fundamentar o acto revogatório, invocou que a resolução que atribuiu ao interessado o direito à aposentação estava viciada por erro nos pressupostos. Por conseguinte, reconheceu que errou. De todo o modo, como já tive oportunidade de referir, a invalidade resultou inequivocamente da fixação de uma condição ilegal (15) (16). Afinal, cumpria à Caixa, antes de decidir, fazer um exame exaustivo e completo das circunstâncias dos casos, de forma a determinar se os subscritores preenchiam, ou não, os requisitos legalmente exigíveis para acederem às respectivas pensões. Este comportamento omissivo ou negligente da Caixa Geral de Aposentações causou prejuízos ao funcionário e, por conseguinte, é susceptível de constituí-la em responsabilidade civil, geradora do dever de indemnização. Assim, verifica-se ter existido negligência na não apreciação rigorosa dos pressupostos do acto inicial de atribuição da pensão e culpa na selecção da condição resolutiva (cfr. ponto 3 desta Recomendação). Ao emitir um acto administrativo inválido (um acto ilícito porque ilegal), a Caixa Geral de Aposentações (pessoa colectiva de direito público – vd. D.L. n.º 277/93, de 10/8) podia, dentro do prazo legal, corrigir o erro e, assim, repor a legalidade, revogando o acto ilegal. Foi o que fez. Contudo, porque errou e porque revogou, ficou, por isso, constituída na obrigação de suportar os encargos (maxime, a indemnização) resultante da reconstituição da situação hipotética (ambas as decisões, ambos os actos administrativos são da sua exclusiva responsabilidade).
5.10. A este propósito prescreve o art. 2.º, n.º 1, do D.L. n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas(17) respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. De acordo com o art. 6º desse mesmo diploma legal, “consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
5.11. Para que se demonstre a responsabilidade do Estado ou das “demais pessoas colectivas públicas”, é necessário que tenha existido um facto ilícito – sendo frequentemente admitido que nos actos jurídicos a ilicitude coincide com a ilegalidade(18) – culposo(19), do qual tenha advindo um prejuízo ou dano, intercedendo entre o facto e o dano um nexo de causalidade adequada(20). Ora, nos casos em apreço demonstram-se preenchidos, como vimos, todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Caixa Geral de Aposentações, como e enquanto pessoa colectiva de direito público.

6. Faço notar que mesmo nos casos de responsabilidade concorrente de vários órgãos ou entidades da Administração Pública, a doutrina tem vindo a defender a possibilidade de ser estabelecida a graduação e a imputação das responsabilidades a cada uma das entidades intervenientes, defendendo-se, consequentemente, a possibilidade de direito de regresso entre elas(21).

7. Como V. Exa. por certo compreenderá, esta minha Recomendação, para além da razão da legalidade que a assiste, encontra também incontornáveis razões de justiça, pois não é aceitável que revogado um acto com fundamento na sua ilegalidade se exija a terceiros de boa-fé (serviços dos funcionários) o encargo de suportarem os custos com a reparação dessa mesma ilegalidade (para a qual, note-se, em nada contribuíram). Admitir o contrário seria defender, nestas circunstâncias, o absurdo empobrecimento sem causa dos serviços dos funcionários afectados por decisões da exclusiva responsabilidade da Caixa Geral de Aposentações.

8. Face a todo o exposto, não posso deixar de concluir, nos casos concretos, pela incidência da responsabilidade indemnizatória sobre a Caixa Geral de Aposentações, pelo que,RECOMENDO:

que a Caixa Geral de Aposentações assuma a responsabilidade nos casos em apreço e, consequentemente, pague aos interessados uma indemnização equivalente aos vencimentos perdidos por cada um deles, procedendo-se a eventual compensação caso se verifique que estejam a ser repostas, pelos interessados, as importâncias por eles recebidas, nos períodos em causa, a título de pensões;
que os períodos em que os funcionários estiveram na situação errada e indevida de aposentados, sejam contados como tempo de serviço(22), nos termos e para os efeitos previstos no art. 26.º do Estatuto da Aposentação (D.L. n.º 498/72, de 9/12)(23).

Com o pedido de que, com a máxima brevidade possível, me seja comunicada a posição que vier a ser assumida relativamente a esta Recomendação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
_______________________________
(1) A impossibilidade de estabelecer uma condição neste tipo de situações é, aliás, corroborada pelo disposto no próprio art. 121.º do CPA: “Os actos administrativos podem ser sujeitos a condição, termo ou modo, desde que estes não sejam contrários à lei ou ao fim a que o acto se destina”. Ora, a lei (art. 97.º do EA), como vimos, define as circunstâncias em que os actos administrativos de atribuição de pensões podem ser sujeitos a condição. Para além dessas circunstâncias fica a margem da ilegalidade.
(2) Atente-se, porém, no caso particular da reclamante Maria da Conceição Vasconcelos, onde não se verificou a aposição da aludida condição ilegal, decorrendo, neste caso, a ilegalidade do acto de aposentação da alegada apreciação errónea das condições de aposentação da subscritora (afinal, estava em causa tempo de serviço a que, mercê da legislação específica aplicável à actividade da subscritora, não conferiria direito de inscrição na Caixa Geral de Aposentações).
(3) Cfr. art. 145.º do CPA: “a revogação tem efeito retroactivo, quando se fundamente na ilegalidade do acto revogado”.
(4) MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, in “Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª ed., p. 667.
(5) Como bem evidencia ROBIN DE ANDRADE (in “A Revogação dos Actos Administrativos”, p. 352): “Não basta conhecer em abstracto o tipo de efeitos que o acto revogatório produz. É necessário compreender a sua projecção concreta”.
(6) PEDRO GONÇALVES, “Revogação de actos administrativos”, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, vol. VII, p. 319.
(7) MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, ob. cit., p. 610.
(8) A este propósito fala-se, normalmente, em vencimentos: “(…) a expressão vencimentos (em sentido lato) é utilizada como sinónimo das importâncias monetárias que o funcionário ou agente aufere ou recebe como titular da relação jurídica de emprego público e que, em maior ou menor medida, constituem contrapartida da prestação de serviço” (JOÃO ALFAIA, in “Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público”, vol. II, p.739)
(9) MARCELLO CAETANO, ob. cit., p. 554. Neste sentido se pronuncia igualmente ROBIN DE ANDRADE (ob. cit., p. 372) ao admitir a existência de “atenuações que razões de equidade, segurança ou boa-fé, impõem ao funcionamento pleno das consequências da retroactividade”.
(10) In “Il Provvedimento Amministrativo”, 4.ª ed., p. 454.
(11) Efectivamente, “para apagar inteiramente os vestígios da ilegalidade cometida, não pode tomar-se como critério a ideia de restabelecer a situação anterior à prática do acto ilegal, antes se faz mister aplicar o critério a que podemos chamar da reconstituição da situação actual hipotética” – vd. “A execução das sentenças dos tribunais administrativos”, Almedina, 2.ª ed., p. 41.
(12) Os titulares dos serviços dos respectivos funcionários poderiam incorrer, aliás, por isso mesmo, em responsabilidade financeira e criminal, por violação de normas de execução orçamental.
(13) Desde o Parecer n.º 254/77, de 12.01.77 que o Conselho da PGR tem defendido esta tese. Nesta mesma orientação, cfr. Pareceres n.ºs 9/80, 196/83, 182/83, 117/84, 73/86,173/87 e, mais recentemente, o Parecer n.º 86/92.
(14) Vd. neste sentido, Acórdãos do STA de 28.10.71, de 11.12.80, de 26.02.85, de 8/10/87, de 6/04/89, in “Acórdãos Doutrinais” n.º 43, p.889, n.º 121, p.22, n.º 230, p. 186, n.º 319, p.881 e n.º 339, p. 325.
(15) Em rigor, acaba por ser irrelevante o alegado “erro sobre os pressupostos de facto”, uma vez que o “erro” decorre da fixação prévia de uma condição manifestamente ilegal.
(16) Recordo aqui as especificidades relativas à situação da reclamante Maria da Conceição Vasconcelos já evidenciadas no ponto 3 e na nota 2 desta Recomendação.
(17) O legislador distinguiu perfeitamente a responsabilidade civil extracontratual do Estado das demais pessoas colectivas de direito público. Na verdade, não sendo os actos revogados da autoria, respectivamente, quer da Câmara Municipal de Viseu, quer da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral (DRABL), não pode funcionar, de pleno, quanto a estas entidades terceiras, o princípio da reconstituição da situação actual hipotética que existiria se os actos revogados, por alegada ilegalidade, não tivessem sido praticados, uma vez que aquelas decisões provieram de uma entidade distinta do Estado-Administração, pelo que só à Caixa Geral de Aposentações, enquanto pessoa colectiva de direito público, poderá caber indemnizar os funcionários lesados com a sua conduta ilegal e pelo período de tempo em que estiveram afastados do activo.
(18) Vd. neste sentido, Parecer da PGR n.º 86/92, DR II, n.º 226, de 25.09.93, p. 9989. Nos termos do art. 6.º do DL n.º 48051, antijuridicidade equivale a ilicitude (cfr., nomeadamente, Acórdão do STA de 10.01.87, in Ac. Dout. n.º 310).
(19) Acompanhe-se, a este propósito, o douto parecer de BARBOSA DE MELO, “Responsabilidade civil extra–contratual do Estado” (in C.J., Tomo IV, 32 e ss.): “(…) no contexto do direito administrativo europeu, a culpa vem sofrendo, de há muito, um processo de objectivação contínuo. Mercê deste fenómeno, o juízo de culpa deixou de tomar por base o horizonte psicológico do funcionário ou agente que pratica o acto delituoso. Por aí a teoria subjectiva da responsabilidade (isto é, a teoria assente na culpa) aproxima-se, em aspectos decisivos, da teoria objectiva, levando na prática, em muitos casos, a resultados semelhantes. Quer dizer: as ideias de equidade (O. Mayer), de risco (Cunha Gonçalves), de não enriquecimento sem causa (Hauriou), de segurança social (Duguit) que estão na base da teoria objectiva são hoje prosseguidas em alguns domínios – em particular no domínio dos actos ilícitos – pela teoria subjectiva, nomeadamente enquanto nesta se adopta um conceito de culpa in abstracto (a que expressamente adere o art. 4.º do D.L. n.º 48051), se aceita a ideia de que, perante actos ilegais ou ilícitos, a culpa se presume ou, ainda, se perfilha o conceito de culpa institucional (‘falta de serviço’ no direito francês, ‘falta de organização’ no direito alemão)…” e mais adiante refere: “No tipo de casos em que se enquadra o que estamos a tratar, deve considerar-se que existe uma presunção de culpa suficiente para a imputação subjectiva do dano ao Estado. Em primeiro lugar isso resulta do princípio segundo o qual a ilegalidade dos actos jurídicos contém em si culpa suficiente, à luz da referência geral do Estado-de-Direito, para a imputação ao Estado dos danos que tais produzem (…). Ora, neste último caso, entendem a doutrina e a jurisprudência comparadas que a ilegalidade consubstancia in re ipsa a culpa, de tal modo que ‘acertada a ilegalidade do facto fica automaticamente acertada a imputabilidade subjectiva’ (Cannnada-Bartoli); ‘se a culpa … foi cometida na emanação de certo acto jurídico, a culpa não poderá consistir senão na ilegalidade deste acto, podendo, aliás, gerar culpa qualquer espécie de ilegalidade’ (M. Waline); ou, segundo a jurisprudência alemã, a inobservância de disposições legais claras, a interpretação destas de maneira manifestamente errada e o não acatamento das orientações e o não acatamento das orientações dos tribunais superiores em questões jurídicas antes duvidosas conduzem, por princípio, os juízes a dar como provada a culpa (Jaenick/Selmer). Mesmo em situações em que o sentido da lei é ambíguo ou duvidoso os tribunais mantêm a censura da culpa caso entendam que o acto jurídico é ilegal …”
(20) Veja-se, a propósito dos pressupostos deste tipo de responsabilidade, FAUSTO DE QUADROS e outros, in “Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública”, Almedina, 1995, págs. 154 e ss., 204 e ss. e 295 e ss., verificando-se, nomeadamente, o acolhimento doutrinário e jurisprudencial, à tese francesa da responsabilidade do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas pela “faute du service”ou, como refere, BARBOSA DE MELO pela “culpa institucional” (ob. cit., p. 38).
(21) Nesse sentido, SANTIAGO MUNOZ MACHADO, “La Responsabilidad Civil Concurrente de las Administraciones Publicas”, Ed. Civitas, 1992.
(22) Vd., neste sentido, Parecer da PGR n.º 86/92, supra referenciado, p. 9990.
(23) Disposição legal que concretamente refere:”1- Contar-se-á por inteiro, para efeitos de aposentação, nos termos dos artigos anteriores, ainda que, no todo ou em parte, não corresponda a efectiva prestação de serviço: a) o tempo em razão do qual é atribuída remuneração, total ou parcial, ou subsídio de tratamento, ou é autorizada, em consequência de decisão administrativa ou judicial, reparação de qualquer montante; (…)”.