Chefe de Estado Maior da Força Aérea

 

Rec. n.º 30/A/00

Processo: R-2601/97

Data:06-04-2000

Área: A 4

Sequência: Acatada

 

Assunto: FORÇAS ARMADAS E FORÇAS DE SEGURANÇA. DEFICIENTE. REFORMA EXTRAORDINÁRIA.

 

1. É do conhecimento de Vossa Excelência que recebi várias reclamações sobre a aplicação do D.L. n.º 134/97, de 13 de Maio, pelo facto de este não se aplicar aos deficientes das Forças Armadas que optaram pelo serviço activo, criando-lhes uma situação menos favorável relativamente aos militares deficientes que transitaram directamente para a reforma extraordinária.

A completa compreensão de toda esta problemática exige que se tenha em atenção a evolução histórica do regime legal relativo aos deficientes das Forças Armadas.

I- Evolução histórica

2.Até à publicação do D.L. n.º 44 995, de 24 de Abril de 1963, não era permitida a permanência no serviço activo aos militares dos quadros permanentes das Forças Armadas que ficassem diminuídos na sua capacidade física, em consequência de ferimentos ou acidentes ocorridos em serviço, em serviço de campanha, ou na manutenção da ordem pública.

Só com a publicação do referido diploma o legislador passou a entender que para o desempenho de alguns cargos não era necessária a plena validez. Assim o artigo 1.º do referido diploma estabeleceu que os militares dos quadros permanentes mutilados nas condições referidas poderiam, se o desejassem, continuar no serviço activo ainda que a respectiva capacidade física apenas lhes permitisse o desempenho de alguns cargos ou funções que dispensassem a plena validez.

Deveriam, para o efeito, submeter-se a uma junta médica que avaliaria da aptidão para todo o serviço ou apenas para o desempenho de alguns cargos. A regulamentação do diploma em causa veio a ser efectuada pela Portaria n.º 21 776 do Ministério do Exército, de 7 de Janeiro de 1966.

3. Posteriormente, o D.L. n.º 45684, de 27 de Abril de 1964, veio atribuir o direito à reforma extraordinária a todos os deficientados ao serviço da Nação que não quisessem permanecer no serviço activo, estabelecendo os critérios de fixação da pensão e a fórmula do respectivo cálculo, tendo como referência o último posto no activo.

4. Mais tarde, o regime estatuído pelo D.L. n.º 210/73, de 9 de Maio, veio alargar o universo dos destinatários do referido regime a todos os militares dos quadros permanentes e do quadro de complemento do Exército e do pessoal não permanente da Armada e da Força Aérea, que se deficientaram pela ocorrência de acidentes ou doenças resultantes do serviço de campanha, ou de manutenção da ordem pública ou da prática de acto humanitário, ou de dedicação à causa pública.

Nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 1, do referido diploma os militares que já se encontravam na situação de reforma extraordinária (ou a gozar de pensão de invalidez), poderiam voltar ao activo desde que efectuassem o respectivo pedido no prazo de um ano, a contar da data da entrada em vigor do referido diploma, dispondo o n.º 3 do mesmo artigo que seriam colocados no posto e lugar a que teriam direito se tivessem sempre permanecido no activo.

5. Posteriormente, foi publicado o D.L. n.º 295/73, de 9 de Junho, que estabeleceu que os militares dos quadros permanentes na situação de reforma extraordinária seriam graduados nos postos como se no activo estivessem. Porém, no seu n.º 4, acrescentava que as respectivas pensões não acompanhariam tal graduação mantendo-se nos termos estabelecidos e calculados à data da mudança de situação.

Estes diplomas tinham como âmbito de aplicação os militares vítimas de deficiências ocorridas após 1 de Janeiro de 1961 (vide artigo 8.º do D.L. n.º 44 995; artigo 9.º do D.L. n.º 45 684 e artigo 17.º do DL n.º 210/73).

6. O DL n.º 43/76, de 20 de Fevereiro, que surgiu no pós 25 de Abril, no seu artigo 1.º veio alargar o conceito de deficiente das Forças Armadas passando a considerar como tal todo o cidadão que se deficiente no cumprimento do serviço militar, não apenas em serviço de campanha ou em situações equiparadas, mas também no exercício de funções e deveres militares em condições de que resulte "risco agravado equiparável ao definido naquelas situações".

No seu artigo 7.º reequacionou o direito de opção previsto no DL n.º 210/73, e no artigo 18.º n.º 1 veio estabelecer que adquiririam automaticamente o estatuto de deficientes das Forças Armadas:

– Os inválidos da 1.ª Guerra Mundial, de 1914-1918, e das campanhas ultramarinas anteriores;

– Os militares no activo que foram contemplados pelo DL n.º 44995 de 24 de Abril de 1963 e que posteriormente beneficiaram do disposto no DL n.º 210/73, de 9 de Maio;

– Os considerados deficientes ao abrigo do disposto no DL n.º 210/73, de 9 de Maio.

Por força do disposto no n.º 2 daquele artigo, passou a ser aplicável ainda o novo conceito de deficiente a todos aqueles que face à legislação anterior não tinham sido considerados como tal, desde que se encontrassem numa das situações previstas no n.º 2 do artigo 1.º, mediante revisão do respectivo processo.

7. Foi então publicada a Portaria n.º 162/76, de 24 de Março, que disciplina a referida revisão. De acordo com o preceituado no seu n.º 3 esta efectua-se a pedido do interessado, mediante requerimento, não estando actualmente dependente de prazo, de acordo com o que dispõe a Portaria n.º 114/97, de 12 de Março, (primitivamente fora fixado em 180 dias, tendo sido sucessivamente prorrogado).

8. Assim, verificou-se que, por efeito da aplicação desta Portaria de 1976, passou a haver no seio das Forças Armadas dois grupos bem diferenciados de deficientes:

– Por um lado, os deficientes das Forças Armadas que já eram considerados como tal antes da entrada em vigor do D.L. n.º 43/76, e que, encontrando-se na situação de reforma extraordinária ou beneficiários de pensão de invalidez, já haviam exercido o direito de opção, tendo tido para o efeito o prazo de um ano. Nos termos do n.º 7 da Portaria em causa não lhes era permitido o regresso ao serviço activo, pelo que as respectivas pensões, de acordo com o preceituado no artigo 4.º, do D.L. n.º 295/73, de 9 de Junho, continuariam estabelecidas com referência ao momento do exercício do direito de opção.

– Por outro lado, os que ainda não eram considerados deficientes das Forças Armadas antes da entrada em vigor do D.L. n.º 43/76, e que pretendendo beneficiar do novo conceito mais abrangente de deficiente aí consagrado, requereram revisão dos respectivos processos individuais. Aos elementos deste grupo a alínea a), do n.º 8, permitiu-lhes que verificados certos condicionalismos optassem pelo serviço activo após a revisão do processo, podendo entretanto solicitar a passagem à situação de reforma extraordinária (ou pensão de invalidez caso não pertencessem aos quadros permanentes), recuperando, do mesmo passo, nos termos da alínea e) daquele n.º 8, o posto e a antiguidade a que teriam ascendido se não tivessem estado desligados do serviço activo.

9. Nessa sequência, requeri ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa e 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 4.º do D.L. n.º 295/73, de 9 Junho, (que proibia que dos deficientes do 1.º grupo voltassem ao activo depois de efectuada a opção) e no n.º 7, alínea a), da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março (que estabelecia que a atribuição da graduação aos DFAs em situação de reforma extraordinária não alterava a pensão de reforma calculada à data de mudança de situação), por entender que ambas constituíam uma violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.

10. Quanto ao preceituado no artigo 4.º, do D.L. n.º 295/73, não considerou o Tribunal Constitucional que ferisse qualquer princípio fundamental com assento constitucional, nomeadamente o princípio da igualdade, pois que considerou constituir mera expressão do que na lei geral se dispõe relativamente ao momento da fixação do respectivo regime.

11. Relativamente à alínea a) do n.º 7 da Portaria 162/76, de 24 de Março, declarou a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral no Acórdão n.º 563/96, publicado no Diário da República I Série A, n.º 114, de 15 de Junho, de 1996, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República.

Fundamentou o douto Acórdão a sua decisão "… Na verdade, se todos podem (ou puderam) optar, seja porque o Decreto-Lei n.º 210/73 o permitiu a alguns seja porque o regime de 1976 o proporcionaria aos restantes, as condições de exercício do direito de opção são desiguais: àqueles, qualificados deficientes das Forças Armadas em contexto legal mais exigente, foi reconhecido um dado prazo para a opção, num específico circunstancialismo sociopolítico; aos últimos, de estatuto como deficiente das Forças Armadas recente, ou porque o obtiveram mediante a revisão dos seus processos nos termos que passaram a ser permitidos pelo diploma de 1976, ou porque o novo regime lhes veio permitir a sua qualificação como deficientes das Forças Armadas, mesmo com dispensa de qualquer relacionação com campanha ou equivalente, a esses reconheceu-se-lhes poderem exercer a sua opção sem qualquer limitação temporal (após sucessivas prorrogações dos prazos). A norma da alínea a), do n.º 7, da portaria, não se compagina com uma visão holística e igualitária do D.L. n.º 43/76 …"

12. Em execução da referida decisão do Tribunal Constitucional foi publicado o DL n.º 134/97, de 31 de Maio. No seu artigo 1.º, estatui que "… Os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 18.º, do DL n.º 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos. No seu artigo 2.º, dispõe ainda que esses DFAs passam a ter direito à pensão de reforma correspondente ao posto a que forem promovidos.

II- Situação actual

13. Segundo informação obtida por esta Provedoria de Justiça junto do gabinete de Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional, apurou-se que:

– O Exército aplicou o referido diploma legal a todos os militares que se encontravam na situação de reforma extraordinária anteriormente à vigência da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março, independentemente de terem ou não estado no serviço activo em regime de dispensa de plena validez.

– Na Marinha não existiam deficientes abrangidos pela previsão das alíneas b) e c), do artigo 18.º, do DL n.º 43/76, de 21 de Janeiro.

– Na Força Aérea o D.L. n.º 134/97, de 31 de Maio, foi aplicado de forma literal, donde resultou a exclusão dos militares que se encontravam na situação de reforma extraordinária antes da vigência da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março mas que tinham permanecido algum tempo no serviço.

Está nesta situação o Sargento-Mor Pára-quedista …, conforme decorre dos ofícios daquele Estado Maior da Força Aérea n.ºs 9785, de 14 de Junho de 1999 e 16368, de 18 de Outubro do mesmo ano.

III- Análise e proposta de solução

14. Houve efectivamente diferente aplicação do diploma legal acabado de referir. Afigura-se que terá o Exército procurado promover a perfeita execução do Acórdão do Tribunal Constitucional que se encontra na génese do diploma, ao invés do que sucedeu nesse ramo das Forças Armadas, cuja aplicação, embora conforme com a letra do preceito, deixou de fora alguns militares.

15. O Tribunal Constitucional ao declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do disposto na alínea a) do n.º 7 da Portaria 162/76, pretendeu obviar à situação discriminatória resultante da desigualdade de condições em que foi exercido o direito de opção pelos vários deficientes. Até á legislação de 1976 o prazo para o respectivo exercício era apenas de um ano (artigo 15.º, n.º 1, do D.L. n.º 210/73, de 9 de Maio); após 1976, além de ter passado a ser possível a qualificação com dispensa de relacionação com o serviço de campanha, passou a não existir qualquer limitação temporal para o efeito (n.º 3, da Portaria 162/76, de 24 de Março, na redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 114/79, de 12 de Março).

16. Afigura-se mais justa e consentânea com a ratio do referido Acórdão, a interpretação extensiva efectuada pelo Exército do disposto no decreto-lei em causa.

17. Sendo o espírito daquele diploma, confessadamente no seu preâmbulo, o de proceder à plena execução da decisão do Tribunal Constitucional, há que fazer uma interpretação extensiva do mesmo, no sentido de abranger também todos aqueles que, preenchendo os requisitos do seu artigo 1.º, optaram pelo serviço activo no período em que essa opção não representava o resultado discriminatório que veio a representar, ou seja, sob a vigência do D.L. n.º 210/73, de 9 de Maio.

18. Parece, pois, que o legislador ao executar o aresto em questão, disse menos do que pretendia "minus dixit quam voluit". Em casos como este refere Baptista Machado na "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", Almedina Coimbra, 1983, "…o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma…"

19. Pelas razões expostas, bem como por razões de justiça relativamente ao que aconteceu no Exército, RECOMENDO:

a V. Exa a aplicação do disposto no D.L. n.º 134/97, de 13 de Maio, ao Sargento-Mor Pára-quedista …, deficiente das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 18.º, do D.L. n.º 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária, antes da vigência da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março, não obstante tenha permanecido algum tempo no serviço activo.

 

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

 

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL