Presidente do Instituto da Água

Rec. n.º 70/A/00
Proc.:R-1194/96
Data: 21-12-00
Área: A 2

Assunto: URBANISMO E HABITAÇÃO. OBRA PÚBLICA. DANOS. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. INDEMNIZAÇÃO.

Sequência: Não acatada

I – DOS FACTOS

O Senhor … veio solicitar a intervenção do Provedor de Justiça junto de V. Exa., na mediação de assunto que se prende com a indemnização pelos danos sofridos no imóvel onde habita, em consequência da construção do sistema de saneamento da Costa do Estoril.
Dos elementos juntos ao processo, designadamente dos esclarecimentos prestados através do ofício de 30 de Julho de 1996 (proc. n.º …), conclui-se:

1. Em 22 de Junho de 1989, o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., procedeu à vistoria inicial do imóvel, elaborando o respectivo relatório, sendo que das conclusões ali alcançadas foi dado conhecimento ao interessado/reclamante.

2. Em Julho de 1991, o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., solicitou ao reclamante que indicasse os eventuais danos sofridos no imóvel.

3. Em 7 de Agosto de 1991, o lesado reclamou o ressarcimento dos danos sofridos.

4. Em 15 de Outubro de 1991, o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., procedeu à vistoria final do imóvel, elaborando o respectivo relatório, estimando o valor do prejuízo em Esc. 334 562$00 e dando conhecimento ao reclamante das conclusões alcançadas.

5. Naquela mesma data, o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., informou o reclamante de que deveria aguardar pelo resultado da análise ao relatório de vistoria final elaborado. Quando tal acontecesse, seria, então, convocado pelo Gabinete de Saneamento Básico da Costa do Estoril (GSBCE) ou pelo Ministério, para efectuar acordo sobre o montante de indemnização devido.

6. A Consulgal, Lda., havia sido contratada pela, ao tempo, Direcção-Geral dos Recursos Naturais, para proceder às vistorias iniciais e finais dos imóveis localizados na área de incidência e implantação do sistema de saneamento da Costa do Estoril, efectuar os respectivos relatórios de descrição, análise e orçamentação dos danos registados em propriedades de terceiros, finalizar os correspondentes processos e remetê-los para apreciação ao GSBCE.

7. Da natureza das relações estabelecidas entre o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda. e o GSBCE, e do leque de poderes que àquele Grupo de Vistorias havia sido conferido, só foi o reclamante clara e suficientemente informado em 2 de Novembro de 1995, através do ofício do Instituto da Água (INAG)- Núcleo de Acompanhamento das Obras de Saneamento da Costa do Estoril n.º ….

8. Do acordo estabelecido entre as partes em referência, constava que o Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., no desenvolvimento da actividade prevista, seria constituído por representantes do Gabinete Coordenador, da Câmara Municipal de Cascais, da Consulgal e do Empreiteiro. No entanto, tal “rapidamente caiu em desuso por indisponibilidade das referidas entidades” (ponto 7. da informação n.º …/1996).

9.A deficiente moldura humana e infra-estrutura técnica do GSBCE impossibilitava-lhe “gerir e resolver atempadamente as centenas de processos de indemnizações em causa” que lhe eram remetidos pelo Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., e “toda esta actividade cedo emperrou a máquina administrativa do “GSBCE”” (pontos 15 e 19 da informação n.º …/1996).

10. Em 22 de Novembro de 1991, o processo de vistorias ao imóvel do reclamante foi dado por concluído, tendo sido remetido pelo Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda., ao GSBCE, em data que se ignora.

11. A Administração só toma conhecimento do caso em apreço em 20 de Outubro de 1995 (os processos remetidos pelo Grupo de Vistorias ao GSBCE não estavam sujeitos a registo de entradas).

12. Por força do Decreto-Lei n.º 142/95, de 14 de Junho, extinguiu-se o GSBCE, tendo a responsabilidade pelos processos de indemnização em curso transitado para o Instituto da Água – Núcleo de Acompanhamento das Obras de Saneamento da Costa do Estoril.

13. Quando tomou conhecimento do processo tendente à indemnização do ora reclamante – ou seja, quase quatro anos depois de este ter sido enviado pelo Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda. -, o INAG invoca a prescrição do crédito, por entender ter-se verificado o “decurso de um prazo superior a três anos a contar da data do conhecimento pelo mesmo (interessado) dos danos causados no seu imóvel, do direito que lhe assistia à sua reparação e, inclusive, da respectiva extensão” (ponto 33 da informação n.º …/1996).

14. Defendeu, ainda, o INAG que o decurso deste mesmo prazo sem a efectivação do direito à indemnização ficou a dever-se à atitude passiva, omissiva e negligente do lesado, pelo que só a ele poderia ser assacada a responsabilidade pela extinção do seu crédito, atento o decurso do prazo prescricional.

II – DOS FUNDAMENTOS

Os factos em apreço subsumem-se à responsabilidade do Estado por actos lícitos.
O art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967 (que define o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública) , impõe ao Estado o dever de indemnizar os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenha imposto encargos ou causado prejuízos especiais ou anormais.
“O acto (lesivo) pode ser lícito, porque visa satisfazer um interesse colectivo (. . .). Mas pode, ao mesmo tempo, não ser justo (no plano da justiça comutativa ou no da justiça distributiva) que ao interesse colectivo (. . .), se sacrifique, sem nenhuma compensação, os direitos de um ou mais particulares ou os bens de uma outra pessoa” (JOÃO de MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. 1, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 682 e segs.)

Também J.J. GOMES CANOTILHO reconduz a responsabilidade pelos danos resultantes de trabalhos públicos à responsabilidade da Administração por actos lícitos (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, págs. 242 e segs.) e defende que “a reparação dos prejuízos derivados de obras públicas, sejam eles danos permanentes, sejam danos acidentais, incidentes sobre pessoas ou coisas, vem a evoluir para uma compensação de sacrifícios.

Invoca esse Instituto, como causa de exclusão do dever de indemnizar, o facto de já ter decorrido o prazo prescricional de três anos, contado desde a data em que o impetrante teve conhecimento do valor estimado dos prejuízos que lhe foram infligidos (15 de Outubro de 1991, data da vistoria final ao imóvel realizada pelo Grupo de Vistorias da Consulgal) – art. 498.º, n.º 1, do Código Civil, ex vi dos art.ºs 5.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e 71.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho.

Tal afigura-se correcto. Sempre se dirá, no entanto, a propósito da invocada prescrição, que o decurso do respectivo prazo não importa a extinção do direito do credor, mas tão só origina a convolação da obrigação civil em obrigação natural (compare-se o regime dos créditos prescritos com o que consta dos art.ºs 402.º e segs. do Código Civil) – neste sentido, MÁRIO JÚLIO de ALMEIDA e COSTA, Noções de Direito Civil, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 35 e segs..
E a obrigação natural define-se, na perspectiva do credor, como o poder de pretender uma prestação, já que esta se traduz num cumprimento reclamado pela justiça, embora não imposto coactivamente pelo direito.
E é esta vertente de defesa da ordem moral ou social, que corresponde a um dever de justiça, e que é intrínseca à obrigação natural, que a distingue da mera liberalidade ou caridade (J. DIAS MARQUES, Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª edição, Lisboa, págs. 139 e segs.).

E o caso em apreço parece ser daqueles em que se impõe, em nome da mais elementar justiça, o cumprimento da obrigação por parte do Instituto da Água, já que a espera do reclamante parece perfeitamente justificada pela expectativa que lhe foi criada pela empresa com quem sempre contactou – Grupo de Vistorias da Consulgal, Lda. -, no sentido de que o seu processo havia sido devidamente encaminhado com vista ao ressarcimento dos danos sofridos, sendo portanto dispensável qualquer actuação da sua parte.
E não parece que fosse exigível ao reclamante que soubesse das dificuldades de organização e gestão sentidas nos serviços do GSBCE, nem se vislumbra que tal facto possa militar em desfavor do lesado, surgindo como causa justificativa do incumprimento da obrigação.

Entendo, isso sim, que cabe ao Estado agir de forma a tutelar a confiança daqueles que com ele se relacionam, cumprindo as suas obrigações com pontualidade e resolvendo os processos que se arrastaram no tempo devido ao mau funcionamento dos serviços, de forma a não prejudicar aqueles que são alheios a tal facto.

Não se esqueça, outrossim, que o princípio da boa fé surge como regra basilar em todos os domínios onde exista uma relação especial de vinculação. E esta regra implica a colaboração das partes, com lisura e correcção, em ordem a satisfazer o direito do credor, removendo as dificuldades que obstem àquela satisfação.

Finalmente, sempre se dirá que a obrigação de indemnizar não estava dependente de qualquer actuação do lesado, e muito menos judicial. Tendo a Administração, ou devendo ter, conhecimento dos danos causados e do seu montante, na sequência de um procedimento genérico por ela própria instaurado com vista ao respectivo ressarcimento – procedimento esse que era do conhecimento dos interessados e no qual estes tinham o direito de confiar -, era sua obrigação providenciar pela indemnização independentemente de qualquer interpelação.

III – CONCLUSÕES

São estas motivações, Senhor Presidente do Instituto da Água, atendendo a que é especialmente exigível aos entes públicos que coadunem a sua actuação com os princípios da boa fé, da tutela da confiança e do dever de justiça, que me aconselham dever RECOMENDAR

a V. Exa., ao abrigo do disposto no art. 20.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que:

Assuma o Instituto da Água a responsabilidade pelos danos provocados no imóvel do reclamante em consequência das obras de implantação do sistema de saneamento da Costa do Estoril, indemnizando-o dos prejuízos sofridos em consequência dessa actividade.

Nos termos do disposto no art. 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, solicito a V. Exa. que me comunique o seguimento que vier a ter esta minha Recomendação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

H. NASCIMENTO RODRIGUES