Presidente da Câmara Municipal da Horta
Número: 46/A/99
Processo: 901/99
Data: 07.06.1999
Área: Açores

Assunto: URBANISMO E OBRAS – OBRAS PÚBLICAS – ALVARÁ DE LOTEAMENTO – IRREGULARIDADE DO PROJECTO DE ARQUITECTURA – ENQUADRAMENTO PAISAGÍSTICO DA CONSTRUÇÃO – INCUMPRIMENTO DO DIREITO À

Sequência: Não Acatada

I- Introdução

Em 01/03/99, foi aberto processo na Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores em virtude de reclamação relativa ao processo municipal de obras particulares nº …98, da Câmara Municipal da Horta.

Era solicitado, entre outros pedidos, que fosse assegurada uma medida cautelar antes do início das obras de construção a que se referia o processo camarário reclamado. Não obstante a impossibilidade legal de serem determinadas medidas cautelares por iniciativa deste Órgão do Estado, determinei que a instrução do presente processo fosse assegurada com carácter de urgência.

A instrução do processo visou, então, a averiguação dos seguintes aspectos reclamados:

– As irregularidades do projecto de arquitectura apresentado;
– A conformidade do projecto de arquitectura com os planos em vigor e legislação urbanística;
– O aspecto exterior do edifício a construir e a inserção no ambiente urbano e na paisagem;
– A decisão da Câmara Municipal da Horta relativa às cotas de soleira e de implantação, bem como à cércea;
– O incumprimento do direito à informação.

Através do ofício nº …, de …99, foram solicitados esclarecimentos a V.Exa., senhor Presidente da Câmara Municipal da Horta, relativamente ao processo camarário nº …98. Em …99 (ofício nº …), foi remetida à Provedoria de Justiça cópia daquele processo.

Tendo verificado que do processo camarário cuja cópia me foi remetida não constavam os pareceres emitidos, em …98 e …99, pela senhora Jurista, Drª. N…, nem, tão pouco, o parecer da DOU que acompanhou o ofício nº …, de … 98, enviado ao requerente, foi solicitada a sua entrega na Provedoria de Justiça – o que veio a acontecer a coberto do ofício nº …, de …99.

Computados os elementos constantes do processo aberto na Provedoria de Justiça, é notória a conclusão de que a principal questão suscitada pela reclamação é a interpretação da expressão “não poderão ter mais de 2,5 pisos incluindo sótão ou cave” constante do alvará de loteamento nº …97, e a sua conformidade com as especificações do projecto de arquitectura constante do processo camarário nº …98.

II – Exposição de Motivos

Destaque-se, como nota prévia, que a Câmara Municipal da Horta, face à controvérsia da matéria em causa, solicitou diversos pareceres (jurídicos e urbanísticos) para basear a sua decisão.

Entre os pareceres obtidos, importa chamar a atenção para os emitidos pela senhora Jurista da Câmara Municipal que, tanto em …98 como em …99, identificam os factos em debate e apresentam a solução que, segundo creio, melhor resolveria a situação reclamada.

Lembre-se parte da informação de …98, que identifica as objecções suscitadas por dois interessados (porque vizinhos da edificação cujo licenciamento é visado) no processo camarário nº …98:

“O alvará de loteamento nº …97 determina que as habitações não poderão ter mais do que 2,5 pisos incluindo sotão ou cave.
E o que significa meio-piso?”.

Relativamente, em especial, à cota de implantação – que é, também, um dos aspectos controvertidos invocados por quem se opõe à deliberação camarária de autorização da construção em causa – refere a senhora Jurista:
“Julgamos que não havendo definições no alvará, terá que imperar, não só o bom senso, mas sobretudo a uniformização relativamente: (1) aos critérios exigidos no passado para os restantes moradores da zona, o que se traduz (2) nas situações actuais das moradias vizinhas e (3) àquilo que se deseja para o futuro naquela zona (…).
De resto, a apreciação do projecto de arquitectura (após a verificação da conformidade com o alvará de loteamento) incidirá “sobre o aspecto exterior dos edifícios e sua inserção no ambiente urbano e na paisagem”, conforme dispõe o artigo 17º/1 do D.L. 445/91, de 20.11 (alterado pelo D.L. 250/94, de 15.10)”.

Como bem refere a senhora Jurista, a circunstância do alvará fazer uso de uma expressão tecnicamente imprecisa e de controvertida significação (“2,5 pisos incluindo sótão ou cave”), por um lado, e o facto de não determinar a cércea e o número de pisos acima e abaixo da cota de soleira, por outro, não é impeditivo de uma tomada de decisão, em conformidade com o alvará de loteamento nº …98, que respeite o ambiente urbano e a paisagem circundante.

Assim sendo, o aspecto exterior do edifício cuja construção se pretende deve buscar a necessária conformidade urbanística e paisagística, nos termos da já mencionada disposição contida no artigo 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro.

Por estes motivos, discordo, em absoluto, da opção da Câmara Municipal da Horta de aprovar o licenciamento em causa em …98. Com efeito, uma vez que o ofício nº …, de …98, dispõe que requerente deve “apresentar até à entrega dos projectos de especialidades, um levantamento topográfico do terreno com a implantação do edifício nos termos indicados, e o tratamento dos espaços exteriores, após implantação e construção do edifício” (conforme sugestão do senhor arquitecto J…), melhor teria sido que a aprovação apenas ocorresse após a apresentação destes elementos, e somente na eventualidade de os mesmos merecerem a aprovação camarária. Por outro lado, até àquela data ainda não havia sido emitido parecer pela Direcção Regional do Ambiente (o que só aconteceu em …99).

Em …98, o requerente solicitou a reapreciação do projecto – o que levou a que fosse pedido novo parecer ao senhor arquitecto J.L.. Este, em …98, afirmou que “a área de construção excede o que seria admissível numa interpretação da expressão de 2,5 pisos nos desenhos do loteamento. Sendo a área de implantação da moradia de 120 m2, os 2,5 pisos deveriam corresponder a 300 m2 de construção”.

Não obstante, na reunião de …98 foi lavrada a deliberação de aprovado (no parecer do senhor arquitecto J.L.). Estranhamente, porém, e como resulta do teor do ofício nº …, de …98, a aprovação não incidiu sobre o conteúdo do parecer mas sobre “o pedido para Construção de Moradia na R…, freguesia da Matriz” (cf. ofício supra citado dirigido ao senhor C.L.).

A senhora Jurista, no parecer de …99, concluiu mesmo pela conveniência da reapreciação do projecto. E, mais uma vez, ao pedido de parecer não correspondeu, por parte da Câmara Municipal da Horta, qualquer decisão em conformidade – nem, tão pouco, se cuidou de, fundamentadamente, explicar as razões da discordância. Segundo parece, as sugestões da senhora Jurista não foram atendidas e nenhuma consequência delas resultou. Acresce a todos estes factos a circunstância dos dois reclamantes vizinhos da edificação em causa não terem sido informados das sucessivas diligências ocorridas no procedimento administrativo. Quando lhes foi dado conhecimento de decisão relativamente a reclamação que haviam apresentado – como aconteceu através do ofício nº …, de …99 -, a respectiva comunicação não foi acompanhada da “exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão” (cf. artigo 125º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo), sendo absolutamente insusceptível de gerar o contraditório. Com efeito, é o seguinte o seu conteúdo:

“Relativamente à exposição apresentada por V.Exa., na qualidade de primeiro promotor e no que se refere ao assunto em epígrafe, tenho a informar que a Câmara reunida em 4 do corrente, deliberou indeferir a respectiva exposição”.

A coberto do ofício nº …, de …99, o requerente foi informado da confirmação da deliberação de …98 que aprovou o projecto geral de arquitectura.

É certo que o procedimento analisado não contrariou directamente nenhuma disposição do regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares (aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro), designadamente o disposto nos artigos 14º e seguintes. Por outro lado, o parecer da Direcção Regional do Ambiente, constante do ofício nº …, de …99, é favorável ao licenciamento da edificação. Mas também é verdadeira a afirmação de que a Câmara Municipal da Horta não respeitou o termos das propostas contidas nos pareceres que pediu, e não cumpriu o dever de informação dos interessados (onde se inclui o próprio requerente do licenciamento que, igualmente, não foi informado da existência de reclamações sobre a sua pretensão).

Afirmar que a Câmara Municipal da Horta não acatou as sugestões constantes dos pareceres que pediu simplesmente porque aqueles elementos configuraram pareceres não vinculativos constitui um argumento com o qual não posso estar de acordo. Com efeito, se, por um lado, “os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à Lei e ao direito” (artigo 3º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo) e se, por outro, “compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público” (artigo 4º, do mesmo diploma), a circunstância da Câmara Municipal ter solicitado a emissão de pareceres técnicos apenas pode ter sido motivada pela necessidade do conhecimento destes elementos para o cumprimento cabal do seu dever de ponderação. Assim, actuar em sentido contrário aos pareceres pressuporia, no mínimo, uma explicitação dos motivos do sentido da decisão.

Como afirma MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA ao anotar o artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, “os actos que “decidem em contrário de parecer, informação ou proposta oficial” respeitam, claro, aos casos em que tais formalidades são legalmente obrigatórias, mas também a todos os casos em que elas são oficiais, isto é, fruto da intervenção dos serviços ou de terceiros (caso, por exemplo, dos peritos) que haja sido suscitada oficialmente na instrução do procedimento” . E acrescenta o mesmo Autor que “a proposição da necessidade de fundamentação nestes casos, quando se trate de pareceres – isto é, de intervenções consultivas (ou de instâncias consultivas técnicas ou administrativas) -, vale tanto para os pareceres obrigatórios como para os facultativos (…)”.

Não posso deixar de me perguntar, face à inutilidade prática dos pareceres de que a Câmara Municipal da Horta se muniu (designadamente dos pareceres da senhora Jurista): para que serviu o apelo à senhora Drª. N. M.?

Em face de tudo quanto fica exposto, três conclusões se me impõem:
– Nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, a apreciação do projecto de arquitectura incide, não só sobre a verificação da conformidade com o alvará de loteamento, mas também sobre o aspecto exterior dos edifícios e sua inserção no ambiente urbano e na paisagem. Assim, a Câmara Municipal da Horta poderia ter deliberado no sentido de ser obtida a conciliação do projecto de arquitectura com a paisagem urbana circundante;

– Tendo aprovado o projecto de arquitectura nos termos que atrás expus, será edificada uma construção que, respeitando genericamente os termos do alvará de loteamento (“2,5 pisos incluindo sótão ou cave”), colide com a volumetria preexistente na zona onde se insere;

– Foi violado o dever de colaboração da Administração com os particulares (artigo 7º, do Código do Procedimento Administrativo), e foi incumprido o direito de informação a que a Câmara Municipal da Horta se encontrava obrigada (artigos 61º e 64º, do mesmo diploma).

Quanto à primeira, a Câmara Municipal da Horta deliberou – não obstante as claras sugestões contidas nos pareceres técnicos – não fazer uso da faculdade emanada do disposto no artigo 17º, nº 1, do regime jurídico de licenciamento municipal de obras particulares, não obstante ter ficado suficientemente comprovada a “forte volumetria (…) da construção” (cf. parecer do senhor arquitecto J.L., de …98), que contrasta com o ambiente urbano e a paisagem circundante que resulta do aspecto exteriores das habitações já edificadas.

Quanto à segunda, é ainda possível, e recomendável, aproximar o interesse do requerente da licença de construção das pretensões dos moradores vizinhos, designadamente mediante o recurso ao auxílio técnico do senhor arquitecto J.L., e nos termos da proposta do seu parecer de …98.

Quanto à terceira conclusão, importa assegurar que os particulares interessados, designadamente em processos de licenciamento de obras particulares, não continuem a ser postos à margem dos procedimentos nem, tão pouco, sejam tratados como obstáculos à actuação da Administração.

Neste contexto, é incompreensível que a Câmara Municipal da Horta não tenha promovido um encontro entre os diferentes interessados por forma a ser explorada a possibilidade de conciliar os interesses em presença. Então, a posição final da Câmara Municipal apresentar-se-ia como a decisão (conciliatória) possível, e não como uma deliberação tomada em favor do requerente e contra os restantes beneficiários do alvará de loteamento.

II – Conclusões

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

à Câmara Municipal da Horta que:

A. Pondere, com especial cuidado e nos termos atrás descritos, o enquadramento paisagístico da construção cujo licenciamento foi obtido através do processo camarário nº …98;

B. Faça intervir no processo de enquadramento paisagístico acima recomendado, para além do senhor arquitecto J.L. e de outros técnicos cuja participação se julgue conveniente, os senhores G.M. e A. L., na qualidade de interessados naquele procedimento,

C. Tome medidas no sentido de ser assegurada a participação dos interessados na formação das decisões que lhes disserem respeito, em especial cumprindo as normas do Código do Procedimento Administrativo relativas ao direito à informação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª Edição, Coimbra, 1998, Almedina, pág.595

(2) Ibidem, pág. 596