Presidente da Câmara Municipal do Porto
Número: 51/A/99
Processo. 2690/94
Data: 01.06.1999
Área: A1

Assunto: URBANISMO E OBRAS – IMÓVEL – PERIGO DE RUÍNA – OBRAS COERCIVAS – ACTUALIZAÇÃO DAS RENDAS – PRIORIDADE DE INTERVENÇÃO MUNICIPAL

Sequência: Não Acatada

I – Exposição de Motivos

1. Em queixa que me foi apresentada contestava o Sr…, o incumprimento pela proprietária do prédio em que reside e de que é arrendatário, sito na Travessa …, nessa cidade, de intimação camarária para a realização de conservação e beneficiação, proferida nos termos do disposto pelo art. 10º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951.

2. Realizada vistoria com vista a avaliar as condições de salubridade e segurança do imóvel, concluíram os peritos camarários que o edifício necessitava de reparações ao nível da cobertura, fachadas, rede de esgotos e de águas, caixilharias, pavimentos, paredes e tectos, encontrando-se a cobertura (telhado e tectos) em risco de iminente desmoronamento, pelo que as obras deveriam ser iniciadas imediatamente (vistoria realizada em …1998).

3. Definidas as obras de beneficiação necessárias e efectuada a adequada notificação à proprietária do imóvel, verificou-se não ter sido dado cumprimento voluntário à notificação, tendo a Câmara Municipal do Porto sancionado a conduta da infractora por via da instauração do competente processo de contra-ordenação e aplicação da coima respectiva.

4. Accionados os poderes sancionatórios que o caso impunha, permaneceu inalterada a situação de perigo para a segurança de todos quantos habitam o edifício, porquanto não promoveu essa Câmara Municipal procedimento destinado a executar coactivamente as obras em falta.

5. Questionada a Direcção Municipal de Equipamentos e Serviços Gerais sobre os motivos que justificativos de tal omissão, foi referido que a Câmara Municipal não se substituía aos proprietários em todos os casos de não realização de obras impostas por via administrativa, “não só por custos incomportáveis, mas também pelas consequências sociais que advêm na maioria destes casos, no que concerne aos aumentos brutais que as rendas degradadas sofrem e decorrentes da Lei …, sendo muitas vezes este facto do desconhecimento da generalidade dos munícipes de mais fracos recursos” (ofício nº …, DE …1998).

6. É recorrente nos processos pendentes neste órgão do Estado quanto à degradação do património habitacional edificado, a argumentação expendida pelos municípios como justificativa do não exercício do poder de substituição dos senhorios fazer apelo à escassez dos recursos financeiros disponíveis.

7. Alias, tal questão foi ponderada no âmbito de estudo relativo aos condicionalismos legislativos e administrativos do estado de degradação do património habitacional edificado, do concelho de Lisboa realizado pelos serviços da Provedoria de Justiça.

8. Entre os interesses próprios do aglomerado populacional cuja prossecução compete aos Municípios, conta-se a necessidade de conservação do parque habitacional local, na medida em que serve, simultaneamente o direito constitucional à habitação e o interesse público na preservação do espaço urbano, o que vem a merecer expressa consagração constitucional (art. 65º da CRP).

9. Assim, são cometidos às câmaras municipais os poderes de ordenar, precedendo vistoria, a demolição, total ou parcial, ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde e segurança das pessoas (art. 51º, nº 2, alínea d), da Lei das Autarquias Locais).

10. Para este efeito, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, atribui às câmaras municipais os poderes de ordenar, precedendo vistoria, a execução de obras necessárias para corrigir más condições de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio (art. 10º do RGEU), a demolição dos imóveis que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública (art. 10º, § 1º, do RGEU) e a realização de reparações nas redes de canalização interior e exterior de água e esgotos e nas instalações sanitárias (art. 12º do RGEU).

11. Qualquer destas competências visa a intervenção camarária, no exercício de poderes de polícia, em casos em que se mostram afectadas as condições de segurança e salubridade das edificações que comprometem as adequadas condições de habitabilidade ou representam um perigo real para pessoas e bens.

12. O não cumprimento voluntário da ordem municipal de realização de obras, abrigo do disposto pelos citados arts. 10º e 12º do RGEU, ou o desrespeito dos prazos fixados para o efeito, podem fundar a deliberação de ocupação do prédio pela câmara a fim de mandar proceder à sua execução imediata (art. 166º do RGEU).

13. A posse administrativa do imóvel com vista à realização de obras pela câmara em substituição do destinatário da notificação respectiva não se mostra vinculada, antes dependendo do exercício de um poder discricionário da câmara municipal. Dificuldades orçamentais são, por isso, invocadas pelos municípios para a escassez de intervenções desta índole, o que não permitirá, por certo, aceitar a produção de danos pessoais provocada pela derrocada de imóveis ruinosos com a latitude que o fenómeno conhece, em especial nos grandes centros urbanos.

14. Não desconhece este Órgão do Estado os condicionalismos políticos e legislativos que se acham subjacentes ao elevado número de solicitações a que os municípios cabe dar resposta neste domínio, em face da generalizada degradação do parque habitacional edificado o qual, em grande medida, deriva de um conjunto de aspectos que se prendem com o regime do arrendamento urbano.

15. Por força do fenómeno do congelamento das rendas e na falta de posterior actualização em função dos valores de mercado, assistiu-se à criação de uma situação em que os proprietários se abstêm de realizar obras em razão do diminuto valor dos rendimentos obtidos e da fraca expectativa de os imóveis virem a ser arrendados a valores de mercado, em face dos elementos vinculísticos do contrato de arrendamento. De igual forma, os inquilinos não realizam as mesmas obras, quer por não lhes ser imposto esse dever, quer por não lhes pertencer o local arrendado, quer ainda por, em muitos casos, não disporem de meios para custear as obras.

16. As autarquias locais, apesar das incumbências legais a que se encontram adstritas, abstêm-se de intervir. Certo é que o poder das câmaras municipais de se substituírem aos proprietários na realização de obras de beneficiação não pode ser visto como contrapartida de um direito dos arrendatários em sentido próprio, pelo que mesmo reconhecendo a legitimidade dos direitos e interesses dos inquilinos, não pode deixar de se considerar que a pretendida intervenção municipal será sempre pautada por razões de interesse público, e apenas na medida em que o interesse público coincida com o interesse directo e pessoal dos munícipes haverá satisfação destes últimos por via da actuação da Administração Pública.

17.Por este motivo, em diversas abordagens da questão da intervenção municipal com vista à recuperação das condições de salubridade ou segurança de um edifício ou de uma das suas fracções, tenho considerado que a requerida intervenção municipal depende, antes de mais, das prioridades de intervenção estabelecidas, sendo razoável que, atentas as limitações financeiras, sejam privilegiadas as situações de maior risco para a segurança ou saúde públicas.

18. Não compete ao Provedor de Justiça pronunciar-se sobre os critérios estabelecidos em matéria de afectação de meios e recursos financeiros, já que para tanto, se imporia que conhecesse individual e concretamente o universo das intervenções requeridas e dos meios disponíveis para a sua satisfação, o que não está ao seu alcance, nem constitui sua atribuição. Daqui decorre que não pode este Órgão do Estado substituir-se às câmaras municipais na apreciação global das situações existentes nos concelhos respectivos.

19. Contudo, não se encontra vedada a formulação de um juízo de valor no caso presente, uma vez tratar-se de uma daquelas situações em que se mostra desrazoável a falta de intervenção municipal com carácter prioritário, atento o risco de iminente desmoronamento verificado já em Março do ano findo.

20. Admitindo que as câmaras municipais procedam a uma auto-vinculação, ainda que de carácter meramente indicativo, definindo critérios e prioridades de actuação, estes sim, sujeitos à intervenção do Provedor de Justiça, parece em tudo razoável que sejam prioritárias as intervenções municipais em edificações que ameacem a segurança dos seus ocupantes,designadamente, as que apresentem perigo de ruína iminente, deixando para segundo plano as intervenções ditadas por outros motivos.

21. Mesmo tratando-se do exercício de um poder público condicionado pela visão global e sistemática que o órgão municipal possua sobre o modo como exerce as suas competências e como ordena as prioridades da sua actuação, nos termos acima expostos, não constitui motivo válido da omissão municipal o alegado aumento desmesurado de rendas que produziria,por não ser inteiramente válida tal afirmação, uma vez que se mostram fracas as repercussões no valor das rendas após a beneficiação do imóvel, o que é gerador da generalizada falta de estímulo económico-financeiro para que os proprietários procedam à reabilitação dos imóveis.

Com efeito, o reduzido valor das rendas para habitação, apesar dos meios de correcção accionados pelos senhorios, contrasta, de forma impressiva, com o custo médio do arrendamento, ao abrigo do Novo Regime do Arrendamento Urbano (Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro).

22. Por outro lado não se mostra admissível a manutenção de uma situação de perigo para a segurança pública com tal justificação. Não pode a Câmara Municipal do Porto omitir o exercício dos poderes de polícia urbanística das edificações fundada em razões que não lhe cumpre apreciar. Não cabe aos órgãos administrativos obstar à prossecução do interesse público legalmente definido, por motivos relativos ao equilíbrio das posições contratuais de inquilinos e senhorios, já que podem os proprietários recorrer judicialmente das imposições municipais e os inquilinos, em caso de insuficiência de meios económicos,lançar mão dos regimes de comparticipação financeira em matéria de arrendamento (Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, Decreto-Lei nº 68/86, de 27 de Março, e Decreto-Lei nº 162/92, de 5 de Agosto, quanto ao subsídio de renda para jovens inquilinos).

23. Julgo que haverá de distinguir-se o conjunto das atribuições municipais em matéria de salubridade e segurança das edificações do conjunto das actividades de fomento habitacional, pois ali não se trata de melhorar a qualidade de vida dos moradores, mas de salvaguardar a sua integridade contra um risco que se vem agravando desde 1994. Por este motivo, ao considerar ameaçado um interesse público primário, considero de inteira justiça a intervenção que recomendo, sem quebra do estrito respeito pela autonomia municipal na definição das prioridades da sua intervenção.

II – Conclusões

De acordo com o exposto, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art. 20º, nº 1, al. a), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

1º Que não se abstenha a Câmara Municipal do Porto de realizar obras de reparação e de beneficiação em substituição dos proprietários intimados, com fundamento na consequente correcção dos valores das rendas, porquanto não é lícito omitir o exercício de poderes de polícia urbanística das edificações por motivos inerentes ao equilíbrio das posições contratuais em matéria de arrendamento urbano.

2º Que definidos os critérios e prioridades de actuação, sejam consideradas prioritárias as intervenções municipais em edificações que ameacem a segurança dos seus ocupantes,designadamente, as que apresentem perigo de ruína iminente.

3º Que seja reavaliada a situação de degradação do imóvel sito na Travessa …, e que em função dos critérios de intervenção estabelecidos, sejam tomadas as medidas necessárias para obstar à situação de perigo de iminente desmoronamento.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL