Presidente da Câmara Municipal da Praia da Vitória

Rec.nº 74/A/99
Proc.:R- 1372/99
Data:1999.10.29
Área: AÇORES

Assunto:SAÚDE PÚBLICA – ANIMAIS – ESTÁBULO – DIREITO AO AMBIENTE E QUALIDADE DE VIDA – DESPEJO.

Sequência: Acatada

I-Introdução

Foi dirigida ao Provedor de Justiça uma reclamação relativa à utilização dada a um edifício sito …, na freguesia dos Biscoitos, de que é proprietária a senhora D… Nos termos da queixa, o edifício reclamado é utilizado como estábulo e existe nas suas proximidades um bebedouro e um tanque para alimentação de bezerros, situação que tem implicações no ambiente circundante – pelos cheiros causados e pela ocorrência de insectos – e que constitui um perigo para a saúde pública.

Às implicações ambientais que o facto reclamado acarreta acresce, ainda, a violação do disposto no artigo 59º do Código de Posturas do Município.

No âmbito da instrução do processo assegurada pela Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores foram solicitados a V.Exa., senhor Presidente da Câmara Municipal da Praia da Vitória (vide ofício nº …), esclarecimentos sobre:

– A utilização licenciada para o referido edifício;
– A construção de outras infra-estruturas (i.e. bebedouro e tanque) e o seu licenciamento;
– A efectiva utilização do edifício como estábulo;
– As medidas que haviam sido tomadas.

Este ofício foi respondido por comunicação de 02/09/99. Em suma, era informado que:

a) A construção do edifício não fora licenciada;
b) Existia no local um bebedouro e um tanque;
c) O estábulo, o bebedouro e o tanque estavam a céu aberto;
d)O edifício era utilizado para arrumação de máquinas e instrumentos agrícolas;
e) Foi instaurado procedimento de contra-ordenação e determinada a demolição da construção não licenciada;
f) Foi requerida a legalização da obra.

Por ofício nº …, este Órgão do Estado remeteu a V.Exa. nova comunicação questionando se, e atendendo ao disposto no artigo 59º, nº 1, alínea b) do Código de Posturas da Câmara Municipal da Praia da Vitória, o facto de existirem habitações a menos de 200 metros da instalação reclamada não acarretava, só por si, a impossibilidade da mencionada legalização.

Pelo ofício nº …, a Câmara Municipal da Praia da Vitória expendeu o entendimento de que não era violado o artigo 59º , nº 1, alínea b) do Código de Posturas, “uma vez que o destino dado à construção existente na Rua do Moinho, não é o de estábulo ou sala de ordenha, mas sim de armazenamento de alfaias agrícolas, adubos e sementes (…)”.

Por outro lado, foi oficiado o senhor Delegado de Saúde do Concelho da Praia da Vitória (vide ofício nº …) relativamente, em especial, às implicações para a saúde pública que decorriam da alegada existência dos animais naquela localização.
A coberto do ofício nº …, o senhor Delegado de Saúde prestou os esclarecimentos que se transcrevem na íntegra:

a)Apesar de nos finais de Maio/97 termos recebido queixa da existência de bezerros num cerrado em frente a uma casa de habitação – queixa que teve como resultado a remoção de estrumes e deixou de haver animais no prédio – apenas em Janeiro do corrente ano nos foi solicitado parecer da Câmara Municipal relativamente à queixa de (…). Tendo sido constatado o início de construção de instalações para animais esta Delegação de Saúde foi do parecer de serem tomadas medidas ao abrigo do nº 1 do artigo 59º do código de posturas da Câmara Municipal Da Praia da Vitória (anexo).
Tanto quanto nos é dado saber foi instaurado processo de contra-ordenação que, de acordo com nosso pedido de esclarecimento à Câmara Municipal o mesmo se encontra em fase de conclusão. Alem disso, a 23 de Março p.p. estiveram presentes nesta Delegação de Saúde 4 moradores daquela canada a fim de se inteirarem do ponto de situação para eventuais tomadas de posição, tendo resultado uma exposição por escrito a qual finda pondo em causa o sistema Judicial Português.
b)Existem instalações habitacionais na proximidade daquele prédio ( < 200 metros ) bem como um mini - mercado (sem queixas ).
c)Pela não existência de nexo-casualidade (vector/doença ) – no mínimo há de 20 anos de existência – só nos é permitido afirmar e, atendendo a que se trata de uma zona rural – que haverá insalubridade sempre que os estrumes produzidos não forem removidos com frequência e prontamente conduzidos para longe das áreas habitacionais, arruamentos e logradouros públicos bem como de nascentes, poços, cisternas ou outras origens ou depósitos de água potável e respectivas condutas.

Assim, e em síntese, os factos relevantes apurados no decurso da instrução do presente processo são os seguintes:
1ºExiste, junto …, na freguesia dos Biscoitos, uma instalação composta por um estábulo, um bebedouro e um tanque;
2ºNo prédio existem bezerros (estranhamente, nenhuma das entidades fez referência ao número de animais que encontrou no local);
3º Existe, ainda, uma construção cuja edificação não foi autorizada pela Câmara Municipal da Praia da Vitória;
4ºEste edifício é utilizado para arrumação de máquinas e instrumentos agrícolas;
5ºO prédio em questão parece ser propriedade da senhora D….. No entanto, subsiste a dúvida quanto a esta questão uma vez que a Câmara Municipal não contradiz esta afirmação mas refere a o proprietário [cf. ofício nº …];
6ºExistem edifícios de habitação, bem como um estabelecimento comercial – que, sendo um mini-mercado, está autorizado a vender, entre outros, bens alimentares – a uma distância inferior a 200 metros do prédio em causa;
7ºFoi instaurado procedimento de contra-ordenação e determinada a demolição da construção não licenciada;
8º Foi requerida a legalização desta obra.

II-Exposição de Motivos

O direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado, direito constitucionalmente consagrado e cuja concretização foi alcançada na Lei de Bases do Ambiente, adiante L.B.A. (cf. artigo 2º, nº 1, da Lei nº 11/87, de 7 de Abril), impõe a observância do princípio de Recuperação [artigo 3º, alínea g)], nos termos do qual “devem ser tomadas medidas urgentes para limitar os processos degradativos nas áreas onde actualmente ocorrem e promover a recuperação dessas áreas”.

Também o artigo 48º, igualmente da L.B.A., define a obrigatoriedade de remoção das causas da infracção, bem como a reconstituição da situação anterior.
Nos termos do disposto nas alíneas d) e e) do nº 2 do artigo 51º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, é da competência da câmara municipal, no âmbito do exercício das competências de planeamento do urbanismo e da construção, a fiscalização das construções que constituam perigo para a saúde e segurança das pessoas, e a concessão de alvarás de licença para estabelecimentos insalubres, incómodos, perigosos ou tóxicos.

O Capítulo VII do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951 (epigrafado “Alojamento de animais”), regula as condições de licenciamento e funcionamento das instalações para alojamento de animais situadas em zonas urbanas. A primeira parte do corpo do artigo 115º expressamente dispõe que “as instalações para alojamento de animais somente poderão ser consentidas nas áreas habitadas ou suas imediações quando construídas e exploradas em condições de não originarem, directa ou indirectamente, qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das habitações”, e o § único da mesma disposição acrescenta que “as câmaras municipais poderão interditar a construção ou utilização de anexos para instalação de animais nos logradouros ou terrenos vizinhos dos prédios situados em zonas urbanas quando as condições locais de aglomeração de habitações não permitirem a exploração desses anexos sem risco para a saúde e comodidade dos habitantes”.

Nos termos dos artigos 6º e 7º das Instruções aprovadas pela Portaria nº 6065, de 30 de Março de 1929, e do nº 28 da Tabela Anexa ao mencionado diploma, a instalação de currais de bois e de vacas deve respeitar as condições de funcionamento que foram determinadas, e devem dispor do competente alvará de licença sanitária.

O nº 1 do artigo 59º do Código de Posturas Municipais proíbe a construção de silos [alínea a), 1ª parte], a actividade de armazenagem de qualquer tipo de silagem [alínea a), 2ª parte] e a construção de estábulos [alínea b), 1ª parte], “a uma distância inferior a 200 metros, em linha recta, de qualquer habitação ou zona habitacional” [alíneas a) e b), in fine]. Ora, como parece óbvio, a presença de animais a céu aberto pressupõe a construção [construção, acto, efeito ou arte de construir; obra construída ou em via de construção; estrutura; edifício; traçado metódico de figuras geométricas (…)(1) ] de estábulo [estábulo, coberto ou curral em que se abriga o gado (2)].
Ou, por outras palavras: a circunstância de estarem abrigados no prédio rústico em questão diversos animais faz daquele espaço um curral ou um estábulo. E este facto é ilegal, até porque pressupõe, igualmente, a existência de silagem ou outra comida para gado, e dos resíduos por eles provocados.

No entanto, importa destacar que a circunstância de se encontrar posta em crise a salubridade e o conforto dos residentes nas habitações contíguas ao estabelecimento reclamado constitui, por si só, motivo impeditivo da sua subsistência do curral (ou estábulo), nos termos das disposições conjugadas da L.B.A. e do Regulamento Geral das Edificações Urbanas. A este propósito, o Código de Posturas Municipais apenas vem trazer um argumento acrescido mas não é, sequer, determinante.

Como é bom de ver, a presente Recomendação foi motivada pela existência de animais, os quais não podem estar em local próximo de habitações se esta presença afectar a salubridade e o conforto dos moradores; quanto ao edifício de arrumos agrícolas, não se vislumbram argumentos contrários à sua legalização, embora somente para este fim.

O exercício das competências de polícia administrativa por parte das câmaras municipais resulta da disciplina do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, que dispõe que “constituem contra-ordenações a violação do disposto no presente regulamento e nos regulamentos municipais neste previstos, competindo aos serviços de fiscalização da câmara municipal competente a instrução do respectivo processo (…)” (cf. artigo 161º).

Assim, a constatação do funcionamento de um curral, ou estábulo, na área do concelho da Praia da Vitória e na proximidade de edifícios de habitação, não pode deixar de conduzir, nos termos mencionados, à instauração de processo contra-ordenacional.
A incumbência de fiscalização do cumprimento das disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e do Código de Posturas Municipais conferida, no presente caso, à Câmara Municipal da Praia da Vitória, vem acompanhada, como já referi, da competência para o processamento das contra-ordenações respectivas. E a decisão de instaurar o competente procedimento contra-ordenacional constitui, perante a verificação dos necessários pressupostos, poder vinculado da câmara municipal.

A limitação da discricionaridade não se esgota, porém, na tutela do interesse público a prosseguir, antes se estendendo a todos os demais princípios a que a acção administrativa se encontra vinculada e, em especial no caso presente, aos princípios da legalidade e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos. Na verdade, sendo a Câmara Municipal da Praia da Vitória competente para o processamento da respectiva contra-ordenação, e tendo comprovado a violação do disposto no artigo 115º, do Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, e no artigo 59º, do Código de Posturas Municipais, não pode deixar de ser instaurado aquele procedimento.

Mas, acrescente-se, a situação em causa não pode vir a ser legalizada, uma vez que é reconhecido que não é susceptível de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares, em especial relativas à proximidade de edifícios de habitação (cfr. artigo 167º, nº 1, do Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951).
Uma vez que a legalização do estabelecimento reclamado constituiria o único meio de evitar o despejo do edifício (cf. corpo e § 1º do artigo 168º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas), este não pode ser evitado, por não estarem reunidas as condições urbanísticas e de salubridade. A consequência será, obrigatoriamente, o despejo do edifício, ao abrigo do disposto no artigo 168º, do Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951.

É certo que a Câmara Municipal da Praia da Vitória poderia empenhar-se, conjuntamente com o proprietário reclamado, na busca de uma solução alternativa para a instalação do estabelecimento reclamado. Mas tal circunstância não poderá significar o incumprimento das pertinentes disposições legais urbanísticas e de salubridade, ou o sacrifício do bem estar e da qualidade de vida dos cidadãos afectados, para além de um período razoável.

Uma vez que o proprietário tem, pelo menos desde Maio de 1997 (vide ofício do senhor Delegado de Saúde, de 21/04/99), conhecimento da incomodidade provocada, não posso deixar de considerar decorrido o prazo máximo aceitável para a resolução da questão.

Acresce que, como afirma ESTEVES DE OLIVEIRA(3) , o prolongamento no tempo de uma situação de comprovada ilegalidade fere o princípio da legalidade, uma vez que “quando a Administração tiver de reportar-se ao princípio da prossecução do interesse público, como parâmetro da sua actuação – ou seja, quando tal actuação não estiver vinculadamente fixada na própria Lei – a sua “liberdade” ou discricionaridade para agir nesse sentido fica limitada pelo princípio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos, de outras pessoas com quem essa sua actuação brigue (…)(4)” .

A circunstância de não haver qualquer referência feita ao despejo dos efluentes produzidos no estabelecimento reclamado indicia a inexistência de qualquer dispositivo criado para esse fim. Ora, se é certo que a criação de animais a céu aberto em áreas rurais torna desnecessárias medidas de rejeição de efluentes, é igualmente verdade que a proximidade de edifícios de habitação altera em absoluto esta situação. Por esta razão, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas não impede a existência de estabelecimentos de criação de gado em áreas habitacionais; mas exige a salvaguarda do conforto e da salubridade das habitações. No caso em apreço, é manifesto que não pode continuar a coexistência numa mesma área de animais bovinos e de pessoas.

III-Conclusões

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:

A. que a Câmara Municipal da Praia da Vitória ordene o despejo imediato do prédio rústico reclamado, sito junto à Canada do Moinho, na freguesia dos Biscoitos;
B. que, não obstante, seja instaurado o competente procedimento contra-ordenacional com base na violação das disposições que regulam as condições de alojamento de animais.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

___________________________________
(1) Dicionário da Língua Portuguesa,7ª Edição,Porto Editora,pág.463
(2)Ibidem,pág.759
(3)MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA,PEDRO COSTA GONÇALVES,J.PACHECO DE AMORIM,Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª Edição,Almedina,pág.86
(4)Idem,pág.98