Presidente do Conselho Directivo do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo
Número: 27/A/99
Processo: 3235/98
Data: 23.04.1999
Área: A3

Assunto: SEGURANÇA SOCIAL – REGIME DE TRABALHADOR INDEPENDENTE – ESCALÃO DE REMUNERAÇÃO – CONTRIBUIÇÕES – VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DO BENEFICIÁRIO – REVISÃO DO PROCESSO

Sequência: Acatada

1. Foi-me solicitada a intervenção relativamente ao indeferimento por parte do Serviço Sub-Regional de Lisboa desse Centro Regional, do pedido do beneficiário nº…, referente à mudança de escalão de remunerações a considerar como base de incidência de contribuições.

2. A situação de facto relevante resume-se, essencialmente, ao seguinte:

2.1. Aquele Serviço Sub-Regional dirigiu ao reclamante o ofício nº …, de …., através do qual solicitava que indicasse o escalão de remunerações a considerar como base de incidência de contribuições, bem como, o esquema de protecção social pretendido.

2.2. Em anexo a esse ofício, atentas as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro, no regime de segurança social dos trabalhadores independentes, juntou-se um folheto informativo.

2.3. Neste folheto, referia-se, na parte que interessa à apreciação dos presentes autos, o seguinte: “Os trabalhadores independentes (…) devem indicar, em impresso próprio o escalão de remunerações pretendido. (…) É ainda importante saber que pode ser pedida (…) nos meses de Setembro e Outubro, a mudança de escalão de remunerações, (para que esta possa ser considerada a partir do ano seguinte).”

2.4. O reclamante, presente o teor desse folheto, efectuou a sua opção, tendo, no momento, optado pelo 1º escalão.

2.5. Em …, o reclamante solicitou a mudança de escalão, a qual foi, no entanto, indeferida com fundamento no disposto no art.º 36º, nº 4, do Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro.

3. O beneficiário reclamou desta decisão junto desse Centro Regional, invocando, essencialmente, o facto de o boletim informativo que lhe fora anteriormente remetido não mencionar a limitação à mudança de escalão que lhe era agora oposta.

4. Esse Centro manteve a decisão do Serviço Sub-Regional de Lisboa com fundamento no facto de, nos folhetos distribuídos na altura, se chamar “…logo à atenção de que os beneficiários para mais esclarecimentos se deveriam, junto dos serviços, informar bem e actuar a tempo”, conforme se refere no ofício nº …, de …, dirigido ao beneficiário.

5. Na sequência do pedido de intervenção que me foi dirigido, os serviços da Provedoria, por se entender que a informação transmitida ao beneficiário a propósito da matéria em causa era deficiente, solicitaram informação a esse Centro Regional quanto à disponibilidade para promover a revisão do processo, através do ofício nº 13.207, de 30 de Julho de 1998, destes serviços.

6. A resposta, veiculada através do ofício nº …, de …, foi no sentido de se manter a inalterabilidade da decisão inicial, sustentando-se essa posição nos seguintes fundamentos:

– que a natureza daquele tipo de instrumento informativo leva a que o respectivo conteúdo seja limitado à divulgação das linhas gerais do assunto versado e que, dado a informação não ser, nem poder ser exaustiva, o leitor é sempre convidado a procurar, junto dos serviços competentes, mais informação, que, eventualmente, possa aplicar-se à sua situação pessoal;

– que, complementarmente, foi indicada a legislação aplicável, habilitando à consulta da fonte legislativa;

– a pretensão do exponente não podia ser deferida por se estar no âmbito do exercício de um poder vinculado.

7. Esta fundamentação não é, no entanto, aceitável porque insuficiente, já que nela se omite qualquer referência à questão essencial que se suscita no presente processo.

Com efeito, a questão essencial prende-se, antes de mais, com a bondade da informação prestada ao beneficiário; ora, esse Centro Regional, em momento nenhum, se pronuncia quanto a essa questão, limitando-se a afirmar que era exigível ao beneficiário que complementasse a informação recebida, através de consulta aos serviços competentes ou da análise da legislação referenciada.

8. A avaliação do caso sub judice passa, pois, por saber se a informação veiculada pelos serviços de segurança social ao beneficiário era correcta e o habilitava a formar, validamente, a sua vontade.

9. Pelo que importa, desde logo, proceder à comparação entre o teor dessa informação e o regime legal aplicável à matéria de mudança de escalões de rendimentos e verificar se essa informação incluía todos os aspectos essenciais à formação da vontade do beneficiário.

10. A matéria relativa à mudança de escalão, a que se refere o boletim informativo, encontra-se regulamentada no art.º 36º do Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro.

De acordo com as normas previstas neste artigo, a alteração da remuneração convencional está dependente da verificação de várias condições:

– a primeira, reporta-se ao momento em que o pedido dos beneficiários nesse sentido deve ser efectuado, correspondendo o mesmo ao período compreendido entre o dia 1 de Setembro e 31 de Outubro de cada ano (nº 1);

– a segunda, reporta-se ao momento a partir do qual é conferida eficácia àquele pedido,fixando-se o mesmo no dia 1 de Janeiro seguinte (nº1);

– a terceira, refere-se à possibilidade de essa alteração se processar para um escalão mais elevado, determinando-se que, nesse caso, apenas pode ter lugar para o escalão imediatamente superior ao que vigorava para o interessado (nº 4);

– e, a quarta, faz depender a faculdade prevista no número anterior do facto de o beneficiário ter uma idade inferior a 55 anos à data em que a alteração produza efeitos (nº4).

11. Ora, se se considerar o teor da informação transmitida ao beneficiário quanto à matéria, conclui-se imediatamente que nela apenas se referem as condicionantes à mudança de escalão constantes do nº 1 daquele artigo e se omitem as constantes do nº. 4.

12. No entanto, o conhecimento por parte do beneficiário destas últimas condições assumia tanta ou mais relevância do que aquelas que mereceram referência por parte dos serviços de segurança social.

Com efeito, essas condicionantes são essenciais à opção inicial dos beneficiários na medida em que, caso não sejam tidas em conta nessa opção, podem prejudicar, definitivamente,a possibilidade de virem a usufruir de uma pensão de reforma de valor superior.(1)

13. O boletim informativo remetido ao beneficiário apresentava, pois, incompletudes essenciais.
Conforme refere Jorge Ferreira Sinde Monteiro, no que toca à questão dos prospectos,(2) “…um prospecto é incompleto quando silencia factos essenciais, que não são apenas os de comunicação para admissão na bolsa, mas todos os que têm especial relevância para uma decisão materialmente fundada do investidor”.

14. A apreciação da situação não deve, porém, esgotar-se no processo comparativo acima referido, mas incluir, também, uma ponderação relativa a dois aspectos que assumem, igualmente, importância determinante.

15. O primeiro desses aspectos diz respeito ao tipo de destinatário que importa considerar na divulgação deste género de instrumento informativo.

O autor atrás citado, ao abordar a matéria relativa à responsabilidade por prospectos (3), diz, a propósito da apreciação tendente a saber quando um prospecto de emissão é correcto, que “…deve partir-se da perspectiva de um investidor medianamente dotado de conhecimentos e não da de um especialista”.

16. Com efeito, quando se procede à divulgação de informação sob aquela forma, não pode deixar de considerar-se que o público alvo é constituído, na sua larga maioria, por destinatários que não têm um particular conhecimento especializado.

17. Ora, presente esse pressuposto, não podia admitir-se como provável que esse tipo de destinatário, confrontado com a solicitação efectuada e a informação prestada, concluísse ou sequer se apercebesse que aquela informação apenas correspondia “…à divulgação de linhas gerais do assunto versado…” ou que, para além das condições referidas no folheto haveria certamente outras, quando é certo que a verificação de outras condições não era ressalvada de algum modo, no folheto.

18. No caso concreto essa hipótese ainda era menos provável, já que, ao mesmo tempo que se solicitou ao beneficiário que formulasse a sua opção, este, para o efeito, foi especialmente aconselhado a ler atentamente aquela informação.

19. Assim sendo, também não era exigível que o beneficiário formulasse a sua opção após consultar os serviços competentes ou verificar a legislação referenciada.

20. O segundo aspecto a ter em conta, prende-se com a confiança suscitada pela origem da informação.

A origem da informação terá, naturalmente, suscitado ao beneficiário a confiança não só de que na elaboração do folheto havia sido observado o cuidado exigido, como, também, de que o mesmo não apresentava inexactidões ou incompletudes essenciais.

21. Com efeito, sendo certo que o teor da informação, já por si, não era susceptível de suscitar ao beneficiário qualquer dúvida, a confiança na fonte da informação também se constituiu como factor determinante do reforço da convicção de que as condicionantes à mudança de escalão eram, tão só, as explicitadas nesse mesmo boletim informativo.

22. Presentes as circunstâncias acima referidas, não pode deixar de concluir-se que:

– a informação veiculada pelos serviços de segurança social ao beneficiário foi deficiente, porque incompleta, na medida em que, apesar de referenciar alguns condicionamentos à mudança de escalões, omitiu outros, sem sequer os referir genericamente, sendo que estes eram essenciais à formação da vontade do mesmo;

– essa informação deficiente era susceptível de suscitar ao destinatário “tipo” a convicção errada de que os condicionamentos à mudança de escalão eram apenas os expressamente referidos quanto aos momentos da realização do pedido e da produção de efeitos desse mesmo pedido;

– nessa medida, a informação prestada não habilitou o beneficiário a formar validamente a sua vontade;

– as circunstâncias relativas ao teor da informação, à confiança que suscitava a respectiva origem, ao momento em que foi prestada e ao objectivo imediatamente associado a essa prestação, excluíam a exigibilidade de o beneficiário se dirigir aos serviços competentes para obter, quanto à matéria em causa informações complementares.

23. Atentas essas razões, a Administração tornou-se responsável pela prestação ao beneficiário da informação deficiente, sendo que, essa mesma responsabilidade não pode ser excluída pela mera sugestão da consulta dos serviços informativos ou pela referenciação da legislação aplicável, como adiante demonstrarei.

24. Com efeito, os serviços de segurança social ao prestarem uma informação deficiente violaram o princípio da colaboração da Administração com os particulares, no âmbito do qual, se insere a obrigação de, em geral, serem prestadas aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam (4) e violaram, em especial, a obrigação de informar prevista no art.º 42º a Lei de Bases da Segurança Social.

25. Esta última norma, ao consagrar, em especial, a obrigação de informar, associando-a, directamente, à efectivação dos direitos e deveres dos beneficiários, configura-se como uma disposição legal de protecção.

Saliente-se quanto a este aspecto, que o autor que tenho vindo a citar refere (5) que, ainda que se não verifique a violação de um direito subjectivo de outrem, a obrigação de reparar pode, todavia, resultar da “… infracção de uma norma que possa ser qualificada como disposição legal de protecção … de interesses alheios”.

26. No entanto, ainda que assim se não entendesse, no caso concreto, a responsabilidade sempre resultaria do disposto no art.º 7º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo, o qual prevê expressamente a responsabilidade da Administração Pública pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórias.

27. Como se refere no Código do Procedimento Administrativo, 2ª edição, de Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim,(6) “certo é que, prestada uma informação escrita, pela Administração, mesmo sem existir o correspondente dever legal, ela torna-se responsável pelos prejuízos que daí advenham aos particulares”, explicitando-se, mais à frente, quanto ao tipo dessa responsabilidade (7) que “o significado do preceito é, para nós, o de que a Administração responde civilmente pelas informações erróneas prestadas aos particulares … constituindo-se na obrigação de ressarcir os prejuízos daí derivados.”

28. Refira-se, ainda, que a responsabilidade extra-contratual da Administração por factos ilícitos está, também, consagrada na Lei Fundamental conforme resulta do disposto nos arts. 22º e 271º da Constituição da República.

29. Ora, no caso em apreço, para além, da ilicitude e do dano, já referidos, verificam-se todos os restantes requisitos constitutivos da responsabilidade extra-contratual, nomeadamente a imputação do facto causador do dano ao lesante, a existência de culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Com efeito, a deficiência da informação veiculada ao beneficiário é imputável, a título de culpa, à Administração Pública e essa deficiência constituiu a causa do dano que se veio a verificar para o beneficiário.

30. Os serviços de segurança social tornaram-se, pois, responsáveis pelos prejuízos causados ao beneficiário, estando, por esse motivo constituído na obrigação de reparar os danos patrimoniais causados. Essa reparação, conforme resulta do art.º 566, nº 1 do Código Civil, deve, em regra, passar pela reconstituição natural, sendo que, apenas nas situações em que ela não seja possível, ou em que não repare integralmente os danos ou, finalmente, em que seja excessivamente onerosa para o devedor se recorrerá à execução não específica, por sucedâneo pecuniário (Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, III-815).

31. Ora, a reconstituição natural é possível neste caso, bastando para o efeito permitir ao beneficiário que efectue agora a opção que teria feito em 1994, se, nesse momento, lhe tivessem sido dadas a conhecer todas as condicionantes legais à mudança de escalão, ou seja, que o mesmo seja colocado na situação em que estaria se o acto ilícito não tivesse sido praticado.

32. Saliente-se, por último, que não obsta à revisão do processo o facto de se estar no âmbito do exercício de um poder vinculado.
É que o respeito pelas normas da responsabilidade civil extra-contratual do Estado também é vinculativo.

33. No entanto, ainda que se entenda que não se encontram reunidos os pressupostos da responsabilidade extra-contratual do Estado, o certo é que a declaração do beneficiário encontra-se viciada de erro. Erro esse que não respeita à transmissão da declaração, mas que se traduz num vício na formação da vontade.

34. Assim, no caso concreto, ainda que se entenda que o facto de o reclamante não ter sido correctamente informado não releva em sede de responsabilidade civil da Administração, esse facto assume importância porque torna o erro desculpável e relevante. Dessa forma, encontrando-se a declaração do beneficiário que, em 1994, consubstanciou a opção pelo 1º escalão afectada de vício na formação da vontade, o acto administrativo que, consequentemente, aceitou a alteração de escalão fica necessariamente afectado nos seus pressupostos.

Em face do exposto, tenho por bem formular a V. Exª a presente

RECOMENDAÇÃO

no sentido de promover a revisão do processo, permitindo-se que o beneficiário opte, com efeitos a 1994, pelo escalão de rendimentos a considerar para efeitos de incidência de contribuições, porque teria optado, se nessa data, a sua vontade não tivesse sido viciada pela informação errada que lhe foi prestada pelos serviços de segurança social.

Recomendação acatada

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENERES PIMENTEL

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(1) Como se sabe, o valor das pensões de velhice e invalidez é determinado, nos termos do artº 33º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329/93, de 25 de Setembro, com base no total das remunerações mais elevadas, compreendidos nos últimos 15 anos com registo de remunerações.

(2) Em “Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações”, Coimbra, 1989, pág.101

(3) Loc. cit.

(4) artº 7º, nº 1, al. a), do Código do Procedimento Administrativo.

(5) Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Informações Face a Terceiros, no Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXIII, de 1997, a págs.43

(6) Nota V, a pág. 119

(7) Nota VI, a pág. 119