Ministro do Trabalho e da Solidariedade

Rec.nº: 29/A/99
Processo: 2829/96
Data: 27.04.1999
Área: A3

Assunto: sEGURANÇA SOCIAL – SUBSÍDIO DE MATERNIDADE – PEDIDO EXTEMPORÂNEO – INDEFERIMENTO – REPOSIÇÃO DE LEGALIDADE

Sequência: Não Acatada

1. No dia … de 1998 dirigi à Senhora Directora do Serviço Sub-Regional de Sintra do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo a Recomendação nº 27/A/98, cuja cópia se junta, acerca da situação que passo a expor.

2. A beneficiária … requereu atribuição do subsídio de maternidade, tendo esta sido indeferida porque aquele requerimento tivera lugar após o decurso do prazo previsto no art.º 19º do Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril.
No entanto, a beneficiária requerera, oportunamente, a atribuição dos subsídios de nascimento e de aleitação, apenas não o tendo feito quanto ao subsídio de maternidade porque desconhecia que tal direito lhe assistia.

3. Entendi, porém, que a vontade real da beneficiária era a de receber as prestações a que tinha direito por força do nascimento de sua filha, já que, quando soube que aquele direito lhe assistia, desde logo veio requerer a respectiva atribuição, em … .
Embora o desconhecimento da Lei não justifique, em termos gerais, a falta do seu cumprimento, também é certo que, em matéria de segurança social, ao Estado está cometido um especial dever de informação.
Por essa razão, a competente informação deveria ter sido prestada, desde logo, no momento do acto de entrega dos requerimentos relativos aos subsídios de nascimento e aleitação, o que não sucedeu.
Em face do exposto e por considerar que não havia qualquer interesse público digno de relevo que se opusesse ao interesse da beneficiária em receber o subsídio de maternidade, recomendei a revogação do acto de indeferimento do subsídio desta prestação.

4. Todavia, o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo veio comunicar o não acatamento daquela recomendação, através do ofício nº …, de …, cuja cópia igualmente se junta.

5. Isto, essencialmente, porque aquele Centro considera que o facto de a beneficiária ter requerido a atribuição dos subsídios de nascimento e de aleitação não pode ser interpretado como vontade da beneficiária em receber todas as prestações devidas por força do nascimento da sua filha, bem como, quanto ao dever de informar, que os respectivos serviços teriam prestado a competente informação se tivessem sido consultados.

Invocou, também, que a obrigação que impende sobre a Administração de suprir as deficiências dos requerimentos e de interpretar o cumprimento das formalidades no sentido mais favorável aos administrados não permite suprir deficiências de fundo, nem que a Administração se substitua aos particulares.

Por fim, entende aquele Centro regional que, nesta matéria, não é deixada qualquer margem de autonomia à Administração na interpretação da Lei, pelo que não pode haver lugar à aplicação de qualquer dos princípios que invoquei.

Por isso concluiu que não pode proceder-se à revogação do acto de indeferimento sem infringir a Lei, nomeadamente, o art.º 19º do Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril.

6. Não posso, porém, deixar de discordar com tais argumentos, o que me leva a suscitar a questão junto de Vossa Excelência.

7. Com efeito, e começando pelo último dos argumentos invocados, não é certo que o princípio da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e bem assim o princípio da proporcionalidade apenas vinculam a Administração no caso de a actividade desta comportar o exercício de poderes discricionários.

Se é certo que eles têm, aí, o seu espaço privilegiado de aplicação, também não é menos certo que a esfera da autonomia pública não se restringe ao exercício do poder discricionário. Na verdade, a doutrina tem salientado a existência de novas dimensões de autonomia pública, desde logo as que resultam da interpretação e aplicação da Lei. E, neste domínio, não estamos somente perante os casos de utilização, pelo legislador, de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, mas também quando se trata simplesmente da subsunção de uma situação à previsão normativa.

Em nenhum domínio da sua actividade – seja mais ou menos vinculada – pode a Administração escapar ao respeito dos princípios gerais que norteiam a sua actividade. Como explica Gomes Canotilho e Vital Moreira,(1) o interesse público é o momento teleológico necessário de qualquer actuação da Administração, trate-se de actos jurídicos (de direito público ou privado) ou de operações materiais.

8. Ora, o que está exactamente em causa na questão sub judice é a apreciação que o Centro Regional fez da conduta da interessada. Não está em causa o alargamento do prazo para requerer as prestações nem a criação de situações excepcionais que a Lei não permite, mas a apreciação daquele comportamento com vista a apurar se se subsume na previsão da norma implicada.

9. Passando agora à análise dos restantes argumentos, verifica-se que, em tal ponderação, não só se negligenciaram os referidos princípios, como não se acautelou o respeito do princípio da boa fé.

10. Com efeito, à luz desse princípio seria impossível retirar dos factos conhecidos as ilações extraídas pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo.

Tal apreciação foi, pois, insuficiente, já que, conforme refere António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro ” (2)- o controlo, com referência a bitolas tidas por superiores, das leis,insuficientes porque humanas, é tão velho como o Direito…A Lei não se confunde com o Direito. Uma dogmática jurídica, radicada na cultura que a suporte e na segurança das convicções científicas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e a solução do caso concreto, um percurso que nenhuma Lei pode dispensar e que o legislador não pode corromper. A boa fé permite a consolidação dessa dogmática que, no sistema jurídico e não, apenas, na Lei tenha a sua força…”.

11. E exemplo claro dessa insuficiência é, desde logo, o primeiro argumento aduzido:

– “…os requerimentos apresentados pela beneficiária… com vista a usufruir dos subsídios de nascimento e de aleitação não podem ser entendidos como uma manifestação inequívoca da vontade daquela beneficiária em receber todas as prestações devidas por força do nascimento da sua filha.

Na realidade, tais benefícios apesar de dependerem de uma circunstância concreta, que é o nascimento de um filho, são distintos, destinando-se a assegurar diferentes finalidades, pelo que a requerente poderia efectivamente pretender beneficiar de um e não de outro.”.

12. Não se questiona que, embora seja pouco frequente, os beneficiários das prestações relativas à maternidade possam livremente decidir não usufruir de uma delas e que tal decisão deva ser respeitada pelos centros regionais da segurança social. Se assim não fosse, bastaria o requerimento de uma das prestações para que se presumisse a vontade de requerer as restantes.
Também não se questiona o entendimento do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo quanto às obrigações que impendem sobre a Administração relativas à informação a prestar aos administrados e à supressão de deficiências dos requerimentos.

13. Pese embora o comportamento da Administração seja relevante para a apreciação da questão, como adiante explicarei, não é isso, todavia, que está em causa no caso vertente. O que se passa é que a decisão da reclamante de requerer apenas os subsídios de nascimento e de aleitação (e, portanto, a omissão do requerimento do subsídio de maternidade) se encontrava viciada de erro. Erro esse que não respeita à transmissão da declaração mas que se traduz num vício na formação da vontade.

14. Permita-me Vossa Excelência que chame à colação a posição da Caixa Geral de Aposentações que, em caso idêntico que lhe foi apresentado pelos serviços da Provedoria de Justiça, veio a entender estar-se perante um caso de aplicação “…do regime do erro sobre o objecto do negócio jurídico regulado no art.º 251º do Código Civil, que remete para o art.º 247º, ou seja a anulabilidade da declaração depende de o destinatário da declaração conhecer ou não dever ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

Todavia, reconheceu-se que a Administração não podia nem devia conhecer qual o regime mais favorável ao interessado, competindo apenas a este cuidar de recolher as informações necessárias tendo em vista realizar a melhor opção.

Assim sendo, considerou a Administração que “…se não podemos falar de vontade viciada no sentido técnico, nos termos dos arts. 247º e 251º do Código Civil, sobre as declarações, haverá de compreender-se que aí estamos no âmbito dos negócios jurídicos entre particulares, pelo que para a segurança e certeza do tráfico jurídico, há que acautelar a confiança que o declaratário depositou nas declarações do declarante, de modo a igualar as posições das partes.”. Mas, no caso concreto que estava em discussão, “…trata-se de uma relação entre a Administração Pública e o particular, sujeita às regras do direito público, algumas delas vocacionadas para a protecção do interessado porque este está de certa forma mais desprotegido e menos esclarecido, porque não há uma paridade de posições, basta o privilégio de execução prévia da Administração Pública, para as desequilibrar.”.

Para concluir que, atentas as circunstâncias específicas e pessoais que envolveram a situação concreta – onde se incluiu o facto de o interessado não ter sido devidamente informado sobre a melhor opção a realizar – “…não repugna que, a título excepcional, de acordo com um juízo de mérito, pois que resulta uma situação injusta e um sacrifício que não é justificado para o interessado”, possa ser alterada a situação.

15. É, pois, no contexto até agora definido que importa apreciar a conduta do Centro Regional.
Assim, no caso concreto, o facto de a reclamante não ter sido informada de que a concessão do subsídio de maternidade dependia de requerimento não releva em sede de responsabilidade civil da Administração, mas assume importância porque torna o erro desculpável e relevante.

16. Saliente-se, a este propósito, que a interessada se deslocou, em tempo, aos serviços de segurança social para requerer as prestações, só não o tendo feito quanto ao subsídio de maternidade por, erradamente, ter considerado que tal requerimento não era necessário e não ter sido informada do contrário. Ou seja, não se verificou um comportamento negligente por parte da interessada que tornasse repreensível a sua omissão. Pelo contrário, ele é perfeitamente compreensível atendendo às circunstâncias do caso concreto. Circunstâncias que não se restringem às supra indicadas mas que englobam, também, as consequências do parto.

17. Como o próprio Centro Regional reconhece, no seu ofício, o período posterior ao parto tem reflexos no estado de saúde da parturiente (quer físicos, quer psíquicos) e envolve sempre, quer por esse facto, quer pela necessidade de prestação de cuidados inadiáveis ao filho, uma limitação importante na mobilidade da mãe, dificultando em grande medida as deslocações com vista a obter informações ou a tratar de assuntos do foro administrativo.

18. Há, pois, neste caso, uma evidente desigualdade de posições entre a Administração e a administrada que é premente equilibrar, em obediência aos princípios da proporcionalidade, da justiça e da boa fé.

18.1. O princípio da proporcionalidade postula que (3) “…a lesão sofrida pelos administrados deve ser proporcional e justa em relação ao benefício alcançado para o interesse público…”.

18.2. O princípio da justiça constitui “…uma última ratio da subordinação da Administração ao Direito, permitindo invalidar aqueles actos que, não cabendo em nenhuma das condicionantes jurídicas expressas da actividade administrativa, constituem, no entanto, uma afronta intolerável aos valores elementares da Ordem Jurídica, sobretudo aos plasmados em normas respeitantes à integridade e dignidade das pessoas, à sua boa fé e confiança no Direito.”

18.3. O princípio da boa fé – que o Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro introduziu expressamente no elenco de princípios gerais de direito administrativo -, como decorrência que é da tutela da confiança, implica que se tenham em conta “os valores fundamentais do direito” – o que é o mesmo que dizer que a Administração e os particulares não se devem bastar somente com a vertente formal das situações – e, em especial, impõe a consideração da “confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” e do “objectivo a alcançar com a actuação empreendida” (artº 6º-A do Código do Procedimento Administrativo).

Tanto assim é, que o Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, no seu art.º 2º, veio, recentemente, anunciar diversos princípios orientadores da acção dos serviços e organismos da Administração Pública que mais não são do que explicitações do sentido e alcance do princípio da boa fé. E, de acordo com os agora designados princípios da qualidade, da protecção da confiança e da comunicação eficaz e transparente, os serviços devem garantir que a sua actividade se oriente para a satisfação das necessidades dos cidadãos, aprofundar a confiança nos cidadãos, valorizando as suas declarações e assegurar uma comunicação eficaz e transparente, através do acesso à informação e da cordialidade do relacionamento.

Ora, no caso em apreço, o respeito da boa fé impõe à Administração que se não prenda a razões formais e que atenda à verdade material e, que, desse modo, devolva o equilíbrio a uma relação que a falta de informação desvirtuou.

Em face do exposto,RECOMENDO:

no sentido de transmitir ao Centro Regional de Segurança Social de Lisboa orientação no sentido de promover a revisão do processo em causa e revogar o acto de indeferimento da atribuição do subsídio de maternidade, com fundamento de mérito, nos termos do art.º 140º, do Código do Procedimento Administrativo.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) Cfr. Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, pág. 922

(2) “Da boa fé no direito civil”, volume I, a pags. 47

(3) Cfr. Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, 2ª edição de Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Paccheco de Amorim, na nota I , a pags. 104