Ministro da Justiça

Rec. n.º 1/B/00
Proc.: R-4924/96
Data:2000-02-15
Área: A 3

Assunto: SEGURANÇA SOCIAL.BENEFICIÁRIO.DESCENDENTE DEFICIENTE.

Sequência: Acatada

1. No âmbito da instrução de um processo aberto neste órgão do Estado, apurei que os Serviços Sociais do Ministério da Justiça haviam excluído irregularmente o Senhor… da qualidade de beneficiário familiar daquela entidade.

Efectivamente:

2. O interessado foi considerado por peritos médicos incapaz total e permanentemente para o exercício de qualquer profissão por declarada esquizofrenia paranóide, de acordo, aliás, com a avaliação oportunamente realizada pela competente junta médica da Caixa Geral de Aposentações, no âmbito do processo de atribuição da pensão de sobrevivência por morte de seu pai, magistrado, beneficiário titular dos referidos Serviços Sociais do Ministério da Justiça.

3. Deste modo, foi reconhecido que o interessado se encontrava impedido de poder angariar meios de subsistência. O interessado foi entretanto excluído dos benefícios dos SSMJ, tendo aquela entidade invocado para o efeito que: “O Regulamento dos SSMJ apenas permite a aquisição/manutenção do direito a estes Serviços aos descendentes dos beneficiários titulares maiores de idade desde que os mesmos ‘sofram de incapacidade total e permanente que obste à angariação de meios de subsistência’. Os meios de subsistência do Senhor… estão assegurados, desde o falecimento do seu pai, pela pensão de sobrevivência que recebe da Caixa Geral de Aposentações, precisamente pela sua situação de incapacidade total e permanente para o trabalho” (cfr. ofício cuja fotocópia me permito juntar como anexo).

4. Salvo o devido respeito, parece existir um lamentável erro na aplicação da norma constante da I parte, ponto 2.3, al. c) do “Regulamento dos SSMJ”(1), a qual estabelece que são beneficiários familiares, nomeadamente, os descendentes do beneficiário titular que “sofram de doença prolongada ou de incapacidade total e permanente que obste à angariação de meios de subsistência”.

5.Conforme se pode verificar a referida norma não estabelece qualquer tipo de condição de recursos por via da qual se reconheça ou não a qualidade de beneficiário familiar (dependente), ou seja, para que possa aceder aos benefícios dos SSMJ apenas se exige que a incapacidade do descendente seja total e permanente de tal forma que obste à angariação de meios de subsistência.

6. Assim sendo, não se compreende nem se pode aceitar que um descendente incapacitado, só pelo simples facto de ter direito a uma pensão de sobrevivência, deixe de beneficiar dos SSMJ, quando, afinal, o que o “Regulamento” exige é apenas a incapacidade para auferir meios de subsistência. E essa única condição que é exigida, o interessado, infelizmente, preenche-a.

7. Acresce que se tivesse sido intenção de condicionar o acesso aos benefícios dos SSMJ por via de uma limitação dos recursos/rendimentos disponíveis do descendente, então o “Regulamento” tê-lo-ia feito expressamente como o fez a propósito dos ascendentes, onde, aí sim, se estabeleceu uma condição de recursos. Efectivamente, quanto a estes refere o “Regulamento” que só são beneficiários dos SSMJ aqueles “…que vivam a cargo do beneficiário titular e não tenham rendimentos próprios mensais iguais ou superiores a 60% da remuneração mínima mensal garantida à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, ou àquela remuneração, tratando-se de um casal de ascendentes. Incluem-se no conceito de rendimentos próprios os proventos de qualquer espécie, nomeadamente retribuições, rendas, pensões e equivalentes que concorram na economia individual do ascendente ou do casal” (ponto 2.6 do mencionado “Regulamento”).

8. Ora, se nenhuma norma do “Regulamento” estabelece uma condição de recursos para a inscrição dos descendentes como beneficiários, não cabe obviamente ao intérprete criá-la. Na interpretação das leis tem de partir-se do pressuposto que o legislador não cria normas inúteis, sem sentido ou imperfeitas. Se o legislador claramente distinguiu as condições de acesso dos descendentes e dos ascendentes à qualidade de beneficiários dos SSMJ é porque, obviamente, não pretendeu que as mesmas fossem iguais.

9. Ora, a posição dos SSMJ sobre o assunto fica necessariamente confrontada com este problema e irremediavelmente prejudicada pela tábua rasa que faz da aplicação do art.º 9.º do Código Civil. Atente-se, para o efeito, no disposto no n.º 3 desse artigo: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”(2). Seguramente, não cabe ao intérprete criar normas jurídicas. E isso foi o que os SSMJ acabaram por fazer.
Efectivamente, nos esclarecimentos prestados a este órgão do Estado, os SSMJ reconheceram: “… que, não estando explicitada na norma (…) o montante mínimo estabelecido para os meios de subsistência considerados suficientes para os descendentes deficientes, e sendo óbvia a intenção de condicionar o acesso aos SSMJ à existência de meios de subsistência, foi estabelecido, por decisão de gestão, limite idêntico ao definido no Regulamento para o caso dos ascendentes, ou seja, aplicando-se ao caso em apreço, 60% da remuneração mínima mensal garantida à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem” (cfr. ofício cuja fotocópia junto em anexo – no processo da presente Recomendação).

Como Vossa Excelência compreenderá, em abono da legalidade e da segurança e certeza jurídicas, a definição das regras dos SSMJ não pode ficar ao livre arbítrio das decisões de gestão que em cada momento os SSMJ entendam por convenientes. Afinal, qualquer eventual alteração ao Regulamento dos Serviços carece de despacho do Senhor Ministro da Justiça e não consta que a referida “decisão de gestão” dos Serviços tivesse sido acolhida como alteração ao Regulamento por parte do Ministro em causa.

10. Não posso deixar de evidenciar que a fonte normativa inspiradora do “Regulamento dos SSMJ” se encontra no próprio regulamento da ADSE (com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 118/83, de 25/2), diploma onde, afinal, se encontram disposições idênticas àquelas que constam do aludido “Regulamento dos SSMJ”. Efectivamente, a situação dos descendentes encontra-se prevista no art.º 9.º, n.º 2, al. b) e, relativamente aos ascendentes, a situação encontra–se regulada pelo art.º 10.º, sendo certo que, no aludido diploma legal, não existe, também, qualquer norma que estabeleça uma condição de recursos para os descendentes.

11. Aliás, como orientação para a interpretação do direito de inscrição como beneficiário importa ter em consideração o disposto no art.º 9.º, n.º 2, al. c), do referido DL n.º 118/83: “Os descendentes maiores de funcionários ou agentes falecidos que se encontrem total e permanentemente incapacitados para o trabalho só podem requerer a inscrição na ADSE desde que seja devidamente comprovado que tal incapacidade já existia à data da maioridade e o falecimento não tenha ocorrido há mais de 1 ano”. Tem-se assim como inquestionável a inscrição como beneficiário da ADSE de um descendente maior de funcionário falecido, desde que preenchidas as demais condições: incapacidade para o trabalho clinicamente comprovada à data da maioridade e o falecimento não se ter verificado há mais de um ano.

Também nesta situação o “descendente maior” tem direito à pensão de sobrevivência paga pela Caixa Geral de Aposentações ao abrigo do art.º 42.º, n.ºs 2 e 3, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (DL n.º 142/73, de 31/3) e, não obstante, é-lhe reconhecido o direito de inscrição como beneficiário da ADSE. Quer isto significar claramente que o legislador, tendo uma visão sistemática e unitária do sistema jurídico (art.º 9.º, n.º 1 do C.C.), quis inequivocamente diferenciar os requisitos de inscrição como beneficiário familiar, consoante se tratasse de ascendente (exigindo-se-lhe para o efeito a verificação de uma condição de recursos) ou de descendente maior incapaz (isentando-o dessa condição).

Ora, considerando a similitude de regimes de assistência na saúde da ADSE e dos SSMJ, e, apesar da autonomia regulamentar de cada um desses regimes, não posso deixar de considerar estranha, também por isso, a posição sustentada, no caso concreto, pelos SSMJ.

12. Acresce que, no caso concreto, os SSMJ só em 21 de Fevereiro de 1997 é que notificaram a mãe do interessado para o cancelamento da inscrição do filho como beneficiário (com efeitos reportados a 1 de Março de 1997), sendo certo que o beneficiário titular (pai) morrera em 21 de Fevereiro de 1995, conforme ofício cuja fotocópia junto em anexo. Durante este período os SSMJ reconheceram o interessado como seu beneficiário sem nada terem oposto. Só volvidos dois anos é que os SSMJ procederam ao cancelamento da inscrição.

Mesmo que se admitisse – por mera hipótese – a razoabilidade e a regularidade do cancelamento da inscrição, sempre se dirá que mesma, pela sua extemporaneidade, importou insanável prejuízo para o interessado, uma vez que, à data da notificação realizada pelos SSMJ, estava já impossibilitado de requerer junto da ADSE a inscrição como beneficiário daquele regime ao abrigo do aludido art.º 9.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. c) do DL n.º 118/83. Até nesta perspectiva esteve mal a actuação dos SSMJ.

13. A decisão tomada no caso concreto, no sentido de excluir o interessado dos benefícios dos SSMJ, além de não ter acolhimento nas próprias disposições regulamentares dos SSMJ, determinou uma injusta e injustificada situação de desprotecção social do interessado.
Permito-me fazer notar que os argumentos economicistas expendidos pela entidade visada tendo em vista o saneamento financeiro e a solvabilidade do sistema de assistência dos SSMJ não se compadecem com os direitos reconhecidos aos beneficiários e com os direitos adquiridos pelos mesmos. Dificilmente concebo e entendo a falta de sensibilidade das instituições de assistência na saúde para com os direitos e a integração dos deficientes mentais, trespassando, no caso concreto, uma discriminação e exclusão social intolerável.

14. Face a todo o exposto, RECOMENDO a Vossa Excelência que:

a) emane as orientações necessárias para que a interpretação e aplicação do Regulamento, quanto a este tipo de beneficiários (dependentes maiores incapazes) seja no sentido de não ser exigível qualquer condição de recursos para o reconhecimento da qualidade de beneficiário familiar (tal como, aliás, se verifica na ADSE por força do disposto no art.º 9.º, n.º 2, als. b) e c) do DL n.º 118/83), evitando assim a exclusão social deste grupo de cidadãos;

b) determine que os Serviços Sociais do Ministério da Justiça procedam à reparação do caso concreto, no sentido de, face à correcta aplicação do Regulamento e da lei, ser reconhecido ao interessado a qualidade de beneficiário familiar dos SSMJ.
Com o pedido de que, com a máxima brevidade possível, me seja comunicada a posição que vier a ser assumida relativamente a esta Recomendação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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Sobrevindo o conhecimento do falecimento do Senhor …., foi enviado o seguinte aditamento:

Ministro da Justiça

Rec. n.º 1/B/2000
R-4924/96
(Aditamento)
2000-02-15

Em aditamento à Recomendação n.º 1/B/2000 que oportunamente dirigi a Vossa Excelência através do ofício com a referência n.º…, cumpre-me informar que tomei conhecimento do facto do Senhor … ter morrido entretanto.

Não obstante tal facto, a referida Recomendação apenas fica prejudicada quanto à resolução do caso concreto do interessado.
Efectivamente, como Vossa Excelência poderá verificar no ponto 14, alínea a) da Recomendação, esta mantém-se no que diz respeito à necessidade de serem emanadas as orientações necessárias para que a interpretação e aplicação do Regulamento dos SSMJ, quanto aos dependentes maiores incapazes seja no sentido de não ser exigível qualquer condição de recursos para o reconhecimento da qualidade de beneficiário familiar (tal como, aliás, se verifica na ADSE por força do disposto no art.º 9ºº, n.º 2, als. b) e c) do DL n.º 118/83), evitando assim a exclusão social deste grupo de cidadãos. A morte do interessado apenas acentua, com o exemplo da sua situação de deficiente profundo, a injustiça da exclusão deste tipo de cidadãos como beneficiários da assistência na saúde por parte dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça.

Espero que o triste e lamentável caso do Senhor … tenha, pelo menos, a virtualidade de despertar a consciência e a sensibilidade dos responsáveis – em toda a sua hierarquia – para com os direitos e a integração dos deficientes (nomeadamente, mentais), obstando a uma intolerável discriminação e exclusão social.

Acredito sinceramente que Vossa Excelência compartilhará este entendimento.

A gestão de um sistema público de assistência na saúde como o dos SSMJ não pode nem deve reconduzir-se à simples expressão economicista e fria dos números, esquecendo que a razão da sua existência é a dos seus beneficiários e, sobretudo, a de garantir a protecção e a assistência dos que mais cuidados exigem. Exclui-los do sistema porque traduzem um encargo maior para o próprio sistema, é um acto inqualificável, contrário à natureza, aos objectivos e ao espírito que norteia este tipo de protecção social. É certo que um sistema de assistência na saúde, qualquer que ele seja, tem forçosamente que ter uma lógica de gestão que permita a sua sustentabilidade futura. Contudo, essa lógica de gestão, não pode, nem deve, como Vossa Excelência compreenderá, assentar alicerces sobre injustiça e exclusão social.

Reitero assim o pedido de que, com a máxima brevidade possível, me seja comunicada a posição que vier a ser assumida relativamente à referida Recomendação n.º 1/B/2000 (art. 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9/4).

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) Permito-me realçar que o Regulamento dos SSMJ foi aprovado por despacho ministerial de 6 de Novembro de 1968 e objecto de alterações introduzidas por despachos ministeriais subsequentes.
(2) “O sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, T. I, 4.ª ed., pág. 58). Ou, como refere MANUEL DE ANDRADE (Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis): “O escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei; interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva”.