Ministra da Saúde

Rec. n.º 38/A/00
Proc.:R-3064/93
Data: 2000-05-09
Área: A 3

Assunto: FUNÇÃO PÚBLICA. NEGLIGÊNCIA MÉDICA. ASSISTÊNCIA PÓS-PARTO. INDEMNIZAÇÃO. VER TB. REC. N.º 51/A/2000

Sequência: Não acatada

1. Em 19.11.93 foi-me dirigida uma exposição relativa ao sucedido com a Senhora … em 20.1.93, na sequência de um parto por cesariana na Maternidade Alfredo da Costa.
2. Com base na referida exposição, e nos elementos recolhidos posteriormente junto da Inspecção-Geral da Saúde, que instaurou o processo de inquérito n.º 11/94-I, foram apurados os seguintes factos:

I – Dos factos

3. A parturiente foi admitida às 8:30h do dia 20.1.93 na Maternidade Alfredo da Costa, com 40 semanas de gestação, e em trabalho de parto.
4. Às 17:20h do mesmo dia a equipa de serviço decidiu realizar uma cesariana, sob anestesia geral, por se verificar distócia dinâmica e incompatibilidade céfalo-pélvica, que ocorreu, sem incidentes, entre as 17:40h e as 17:55h.
5. As notas referentes à cirurgia efectuada identificam como agentes anestésicos e outras substância utilizadas “Tiopental, Succinilcina DHBP e Fentanyl, na dose de 0,25 e Dextrose a 4% e Syntocin, entre outros”, e como tempos de início e fim da anestesia, respectivamente, 17:20h e 18:05h, com indicação de “Bom recobro imediato”.
6. Às 18:30h a doente foi transferida para o Recobro, apresentando-se em boa estabilidade cardiovascular, consciente, orientada no espaço e no tempo e com boa coordenação motora.
7. Por volta das 19:00h uma das enfermeiras de serviço no Recobro apercebeu-se de que a parturiente se encontrava cianosada. Aproximando-se, verificou que esta não respondia a estímulos, e iniciou manobras de reanimação, auxiliada por outra enfermeira presente, enquanto a terceira enfermeira de serviço chamou a médica anestesista que assistira a parturiente.
8. Quando esta última chegou ao local, procedeu a intubação oro-traqueal. No entanto, a parturiente permaneceu inconsciente, em coma profundo.
9. Em 22.3.93 a doente foi transferida, sem alterações no seu estado, para o Hospital de S. José, onde permaneceu até 6.10.93, data em que foi transferida para o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. À data da alta deste Centro, a doente é acompanhada do seguinte relatório “a … é uma doente que apresenta reacções intelectuais e emocionais adequadas para uma criança em idade pré-escolar: reconhece os familiares, os médicos, enfermeiros e terapeutas com quem mais contacta, manifestando reacções de agrado ou desagrado em relação a pessoas, alimentos, temperatura ambiente, sonoridade, etc., com dificuldade na adaptação a pessoas ou ambientes estranhos, reagindo com retracção de membros e choro. (…)A doente fica sentada com apoio e nesta posição passa várias horas por dia, necessitando para as transferências, alimentação e higiene da intervenção de terceira pessoa(…)”
10. Em 26.11.93, a doente é reenviada para o Hospital de S. José, sendo transferida em 14.1.94 para a Obra Social do Pousal, onde permanece actualmente.

II – Dos pareceres especializados citados no Processo de Inquérito n.º 11/94 instaurado pela Inspecção-Geral da Saúde

11. Analisados os elementos e as peritagens recolhidas pela Inspecção-Geral da Saúde (1), quanto aos actos médicos e terapêuticos praticados, verifica-se que:
12. Concluiu-se que a causa imediata do coma profundo da doente a partir das 19.00h de 20.1.93, melhor descrito como “encefalopatia anóxia-isquémica e distrofia simpática reflexa” e estado subsequente, foi “a paragem cardiorrespiratória que se verificou cerca de 30 minutos após a transferência para a sala de recobro” (resposta da Senhora Directora do Serviço de Obstetrícia da Clínica Obstétrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra ao quesito colocado pela I.G.S.).
Por seu turno, o Senhor Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital de Santo António dos Capuchos, afirma que “a encefalopatia anóxia-isquémica foi, seguramente, consequência da paragem cardiorrespiratória.”
13. Importa, pois, apurar as causas e as circunstâncias em que ocorreu a paragem cardiorrespiratória da parturiente, na sequência da qual esta ficou no estado diminuído em que se encontra actualmente. Para o efeito, e não obstante a sua extensão, terá interesse citar os pareceres dos peritos ouvidos pela I.G.S., já que os mesmos analisam de forma completa os motivos daquela paragem cardiorrespiratória.
Assim, o Senhor Dr. … refere que ” Se esta paragem cardiorrespiratória), como decorre da questão anteriormente respondida (2) , não teria ocorrido durante a cesariana, pode, no entanto, ter sido consequência de um acidente anestésico e dos agentes utilizados pela anestesia e acontecido cerca de 90 minutos depois do seu início.”
Como agentes utilizados, como consta da ficha do Serviço de Anestesiologia, a anestesia inciou-se pelas 17:20h com a administração de Tiopental e Succinilcolina e cerca das 18h foram administrados DHBP e Fentanyl.
O fim da anestesia dá-se pelas 18:05h e o seu final é descrito como “bom recobro imediato”. A doente é transferida do Bloco para o Recobro às 18:30h, orientada no espaço e no tempo, colaborante tendo passado da maca para a cama sozinha e foi monitorizada com parâmetros vitais normais. Cerca de 30 minutos depois estava em coma, e neste intervalo de tempo deu-se a paragem cardiorrespiratória.
Ora o Fentanyl é um analgésico opióide, habitualmente utilizado na analgesia durante uma anestesia, permitindo reduzir as doses dos outros fármacos na sua indução e permitindo manter uma acção analgésica no pós-operatório. As suas principais acções colaterais são a depressão respiratória, por vezes com apneia, e a depressão cardiovascular com bradicardia.
A sua acção analgésica é rápida, após a sua administração I.V. ou I.M., entre 5 a 15 minutos, e a sua acção persiste durante cerca de 1 a 2 horas. No entanto, a sua acção depressora cardiorrespiratória pode manter-se durante mais tempo, mesmo durante algumas horas. Mesmo em doses adequadas e recomendadas para cirurgias de curta duração, de 2 a 20 mp/k de peso em administração I.V., o risco de depressão cardiorrespiratória pode persistir durante várias horas, parecendo persistir uma susceptibilidade individual – dados recolhidos em American Hospital Formulary (AHFS) Drug Information de 1995 – pelo que o laboratório fabricante do produto recomenda que os doentes sejam devidamente vigiados e com meios adequados de reanimação disponíveis (intubação orotraqueal para ventilação, administração do seu antídoto o Naloxone e de atropina no caso de bradicardia acentuada).
Admito que o tempo que decorreu entre o fim da anestesia e a transferência da doente do Bloco para o Recobro deveria ter sido mais prolongado, uma vez que existia na sua história pregressa uma informação que considero relevante “2 paragens cardíacas pós-operatórias de causa desconhecida pelos familiares” (3).
(…) é um facto que quando a doente foi admitida no Recobro estava consciente e colaborante e acredito que a experiência da Anestesista tenha permitido que essa transferência tenha sido efectuada com segurança e consciência profissional.
Se no Recobro existissem meios de vigilância e de monitorização adequados para que a paragem cardiorrespiratória tivesse sido detectada em tempo útil, todas as medidas terapêuticas e actos médicos e de enfermagem teriam evitado a encefalopatia anóxia-isquémica.
Quando a monitorização depende da maior ou menor atenção ou disponibilidade do médico ou enfermeiro, em serviço no Recobro, e não de equipamentos que teriam sido indispensáveis e life-saving neste caso, é difícil afirmar que tenha havido qualquer conduta médica incorrecta ou negligente. (…)
Apenas durante os cerca de 30 minutos que decorrem entre a transferência do Bloco e a permanência da doente no Recobro, período em que localizo a paragem cardiorrespiratória, teria existido uma atitude de menor vigilância, que seria de exigir perante a história pregressa da doente e o fármaco (…)”
14. Foi ainda consultada pela I.G.S. a Senhora Chefe de Serviço de Anestesiologia do Hospital de Santo António dos Capuchos, que emitiu o seguinte parecer:
“(…) Conforme exposto anteriormente, do processo clínico deduz-se que a informação das paragens cardíacas não era do conhecimento do médico anestesista. De qualquer modo, o facto de a informação ser conhecida não justificaria, só por si, um prolongamento do tempo entre o fim da anestesia e a transferência da parturiente do Bloco Operatório para a Sala de Recobro. Este só seria justificado pela presença de qualquer intercorrência, com instabilidade clínica manifesta, que contra indicasse o transporte, que não foi o caso, conforme registo anestésico (…)”.
Sobre a correcção e adequação dos agentes anestésico utilizados no caso da utente, a mesma perita afirma que “(…) A dose de fármacos a usar, à semelhança de outras formas de anestesia, é feita em função do estado físico e peso da doente e, ainda, do tempo necessário de actuação dos mesmos. O referido registo é omisso no peso da parturiente (…). Admite-se, no entanto, que o Fentanyl (opiáceo) administrado, apesar de não haver referência à dose exacta, pelas suas características farmacocinéticas e farmacodinâmicas (depressor respiratório bifásico) possa ser responsável por uma depressão respiratória tardia. Os restantes fármacos utilizados não parecem preencher os requisitos inerentes à complicação verificada (…)”.
Sobre a correcção, adequação e suficiência das condições de monitorização e vigilância disponibilizadas, refere que “A monitorização da parturiente intra-operatória foi adequada (…). Quanto à monitorização e vigilância do pós-operatório, não encontro no processo clínico dados que permitam inferir a sua adequação. Há referência à avaliação de parâmetros vitais, com medição da Pressão Arterial, Pulso e Temperatura, não havendo referência a monitorização cardíaca por ECG ou respiratória, nomeadamente frequência respiratória ou Saturação Periférica de Oxigénio, sendo a vigilância respiratória imperativa no caso presente. Desconhece-se igualmente a disponibilidade de pessoal de enfermagem, à altura, nomeadamente a relação Enfermeira/Doente, para poder ajuizar da capacidade de vigilância” (4).
15. Em conclusão, a Senhora Dr.ª … emite o seguinte parecer:
“De acordo com a análise das questões anteriores e com base nos dados referentes ao processo clínico, conclui-se:
Complicação no pós-operatório imediato da qual resultou uma encefalopatia anóxica, por provável depressão respiratória com bradicárdia extrema, de origem farmacológica atribuída ao Fentanyl, presumindo que a dose registada é em mg. Admite-se ser uma dose elevada a menos de 1 hora do final da intervenção cirúrgica exigindo, portanto, uma vigilância ventilatória no pós-operatório imediato. Isto obriga a uma informação precisa do médico que o administra à enfermeira responsável pela vigilância posterior. Ignoro se há normas protocolares na Sala de Recobro, em relação a esta questão ou se a obrigatoriedade da referida informação foi cumprida, de forma oral ou escrita, sendo portanto difícil individualizar responsabilidades neste campo.
No processo clínico não encontro dados referentes aos parâmetros de vigilância considerados necessários de modo a poder avaliar, com precisão, da precocidade do diagnóstico da complicação, que pudesse ter permitido uma actuação mais precoce, impedindo assim a progressão do quadro. No processo refere-se apenas que à entrada da sala de recobro a parturiente se encontrava com os parâmetros vitais normais (Pressão Arterial, Pulso e Temperatura) e que 30 minutos depois “a doente ficou com os lábios roxos e com pele pálida com frequência cardíaca de 40/min, tendo baixado de imediato para 14″, o que justificou a ressuscitação cárdio-respiratória imediata, correctamente iniciada pela Enfermeira, enquanto aguardava a comparência da Anestesista de serviço, entretanto contactada para o Bloco Operatório”.
16. Em face dos pareceres acima transcritos, conclui-se que:
16.1. A situação da doente (encefalopatia anóxia-isquémica e distrofia simpática reflexa, e estado posterior descrito no ponto 9 supra) teve como causa a paragem cardiorrespiratória ocorrida nos 30 minutos que mediaram a sua entrada no Serviço de Recobro e o momento em que uma enfermeira deste Serviço se apercebeu do estado da doente, ou seja, entre as 18.30h e as 19.00h.
16.2. A referida paragem cardiorrespiratória teve origem farmacológica, concretamente a administração à parturiente do fármaco Fentanyl às 18.00h de 20.1.93.
16.3. Pelas características desta substância, que provoca depressão respiratória, por vezes com apneia, e depressão cardiovascular com bradicardia, e cuja acção persiste durante cerca de 1 ou 2 horas, se não mais, tornava-se imperativo que a doente tivesse uma vigilância ventilatória apertada no pós-operatório imediato.

III – Das conclusões alcançadas pela Inspecção-Geral da Saúde

17. Não obstante as conclusões dos peritos acima citados apontarem claramente para a causa do acidente ocorrido com a parturiente …, impondo que se curasse saber em que termos foi exercida a vigilância pós-operatória, e quais os cuidados, a este nível, tidos pela médica anestesista e pelas enfermeiras da Sala de Recobro, o relatório final do inquérito levado a cabo pela I.G.S. é omisso quanto a esta questão, concluindo, após citar os pareceres também aqui citados, que:
“Não lograram os autos, quer através de prova pessoal, quer documental ou pericial, demonstrar a existência da prática de qualquer conduta infractória ou negligente por parte dos profissionais de saúde que intervieram no processo assistencial da utente, aquando do seu internamento na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, para realização do parto, não resultando possível estabelecer qualquer nexo de causalidade com a paragem cardiorrespiratória pós-operatória de que foi vítima”.
E prossegue, dizendo que “as apreciações suscitadas pelo participante sobre a correcção e adequação dos procedimentos adoptados pelos profissionais de saúde (…) não procedem (…) uma vez que não se verifica a existência de indícios que qualquer profissional tenha actuado de forma digna de censura disciplinar, outrossim, foram considerados correctos, suficientes e adequados os procedimentos e vigilâncias médica e da enfermagem efectuados, bem como a terapêutica administrada e exames complementares de diagnóstico realizados”.
Em face de tais conclusões, o processo foi arquivado por decisão do Senhor Inspector-Geral de 12.5.99.
18. Atentas as conclusões acima referidas, e a omissão de descrição das diligências instrutórias eventualmente levadas a cabo para esclarecimento das questões da vigilância e da monitorização da doente no pós-operatório, os serviços que dirijo solicitaram à I.G.S. outros elementos que tivessem sido recolhidos ao longo da instrução do processo e que pudessem melhor esclarecer este aspecto, considerado essencial.
19. Em resposta ao solicitado, a I.G.S. enviou em 28.3.00 a esta Provedoria de Justiça uma Informação sobre as questões suscitadas, e cópia de declarações prestadas pela Senhora Directora do Serviço de Anestesiologia da MAC, pelo Senhor Director do Serviço de Neurologia do Hospital de S. José, chamado a assistir a doente na MAC logo após o acidente, pela médica anestesista que interveio no parto e assistência posterior à utente, e pelas enfermeiras de serviço no Serviço de Recobro e na URCI à data dos factos.
20. Antes de entrar na análise dos elementos assim recolhidos, uma palavra breve sobre o teor da Informação ora remetida pela I.G.S.:
Esta Informação dá conta de terem sido recolhidos testemunhos dos intervenientes directos nos factos (5) e cita um excerto do depoimento prestado pela então Directora do Serviço de Anestesiologia da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, de acordo com a qual a médica anestesista cujo comportamento estaria em causa terá seguido os protocolos e “pensa que também o fez quanto à dose de Fentanyl administrada”.
Não posso deixar de estranhar que este depoimento seja citado, uma vez que a depoente afirma, de início, que “do que lhe foi contado pela Dr.ª … e pelo Dr. …, bem como da leitura do processo clínico respectivo, concluiu que a assistência prestada foi correcta”. Verifica-se, pois, que esta médica não interveio directamente na assistência prestada à doente, não presenciou os factos, e a sua razão de conhecimento é, acima de tudo, o que “ouviu contar”.
Por outro lado, fez afirmações quanto à monitorização das doentes no recobro contraditadas pelas das enfermeiras que aí prestavam serviço no momento dos factos.
Não pode, pois, merecer crédito a citação utilizada na Informação ora em apreço com o objectivo de reafirmar a correcção da assistência e vigilância prestadas à doente.
Por fim, alega ainda a Inspecção-Geral da Saúde que ainda que fossem realizadas novas diligências instrutórias que concluíssem pela existência de infracção disciplinar, esta estaria amnistiada ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 7º da Lei n.º29/99, de 12 de Março.
Não se questionando tal afirmação, sempre se dirá que permanece a crítica feita: em face dos pareceres reunidos, impunha-se que a I.G.S. apurasse concretamente se foram dadas ordens no sentido de uma vigilância especial da parturiente, e se estas foram ou não cumpridas. Cumpria-lhe ainda verificar porque razão a parturiente não se encontrava monitorizada com o oxímetro, e se as obras então em curso na Maternidade teriam concorrido para essa falta.
É que não estaria apenas em causa a atribuição de responsabilidades disciplinares, mas o mau funcionamento do estabelecimento de saúde em causa, que não oferecia, à data dos factos, as necessárias condições de segurança.
Saliento que a competência da Inspecção-Geral da Saúde não se esgota no apuramento de eventuais infracções disciplinares, uma vez que o artigo 2.º da sua lei orgânica expressamente determina que esta “tem como atribuições assegurar o cumprimento das leis e regulamentos no sistema de saúde, tendo em vista o bom funcionamento e a qualidade dos serviços, a defesa dos legítimos interesses e bem-estar dos utentes, a salvaguarda do interesse público e a reintegração da legalidade violada”.
21. Atente-se agora nos depoimentos prestados pelas intervenientes directas na assistência prestada:
21.1. De acordo com a Enfermeira …, quando recebeu a parturiente na Sala de Recobro esta encontrava-se “bem, consciente e orientada no espaço e no tempo, tendo sido de imediato monitorizada com monitor cardíaco e dinamap. Nessa altura não tinham oxímetro na sala de recobro(6). (…) prosseguiu o seu trabalho junto das outras parturientes, estando sempre atenta ao estado
clínico da I. e das restantes.
A determinada altura, quando cuidava de uma parturiente que merecia vigilância especial devido a hemorragia grave, reparou que a senhora se encontrava com a face virada para a parede e a face visível se encontrava macilenta, que lhe chamou a atenção.
De imediato largou a doente em vigilância e foi socorrer a senhora. Chamou-a e não obteve resposta, virou a face para si e verificou que tinha os lábios cianosados e o olhar fixo, pelo que chamou a ajuda das colegas que se encontravam ali ao pé, tendo acorrido a enfermeira … e a enfermeira ….
Quando olhou para o monitor este tinha traçado normal mas com valores baixos, assim que virou a face ouviu-se o alarme sonoro do monitor
cardíaco.
A enfermeira … fez de imediato a massagem cardíaca, a declarante utilizou o ambú, para dar oxigénio, e a enfermeira … foi ao telefone para chamar as anestesistas com urgência. (…) A primeira médica a chegar foi a anestesista, não sabendo precisar exactamente quanto tempo esta demorou a chegar, talvez um minuto.
Nessa altura decorriam obras no acesso ao recobro, pelo que os médicos tinham de se deslocar do Bloco situado no rés-do-chão para ir ao recobro no primeiro andar.
Hoje em dia o Bloco encontra-se ligado ao recobro e à URCI (…)”.
21.2. As restantes enfermeiras ouvidas, … e … (esta última de serviço na URCI), confirmaram as declarações da enfermeira …, designadamente a monitorização da doente com monitor cardíaco e dinamap e a inexistência de oxímetro na sala de recobro, e o decurso de obras na Maternidade (obras no Bloco Central, sito no primeiro andar, pelo que apenas estava em funcionamento o Bloco do rés-do-chão). As enfermeiras … e … declararam ainda que as camas da sala de recobro e as da URCI se encontravam totalmente preenchidas, num total de seis camas no recobro e três nesta Unidade.
21.3. Importa ainda citar as declarações prestadas pela médica anestesista, que fazia parte da equipa que realizou a intervenção cirúrgica à parturiente, e que foram também remetidas a esta Provedoria de Justiça em 28.3.00:
“(…) a parturiente permaneceu ainda no Bloco Operatório cerca de trinta minutos após o fim do acto anestésico-cirúrgico por dificuldade de transporte, uma vez que não havia maqueiro disponível. De qualquer modo, enquanto esteve no Bloco Operatório a doente esteve sempre sob vigilância.(…)
Nesse dia o recobro estava cheio e uma das parturientes exigia mais cuidados por se encontrar com hemorragias pós-parto. (…)
(…) o número de enfermeiras indicado para aquela sala de recobro deveria ser, no mínimo, três. Deseja a declarante acrescentar que actualmente existe uma necessidade urgente de os recobros existirem na área do Bloco Operatório (…) para permitir uma resposta rápida às complicações de um pós-operatório imediato. Na MAC o recobro, hoje em dia, depois dessas obras, já funciona no Bloco Operatório”.
22. Sintetizando os elementos supra referidos, e sendo certo que a doente necessitava de especial vigilância respiratória, impõe-se a conclusão de que a vigilância prestada no pós-operatório não foi suficiente:
a) O fármaco Fentanyl, utilizado no parto por cesariana sob anestesia geral, tem uma acção de depressão respiratória;
b) Atento o fármaco anestésico utilizado, e a hora da sua administração (18.00h) o efeito deste prolongar-se-ia até às 19/20h, se não até mais tarde;
c) O laboratório fabricante aconselhava uma especial vigilância da doente, ou até a sua ventilação, durante o período de eficácia daquele fármaco;
d) Em virtude da acção de depressão respiratória do fármaco Fentanyl durante, no mínimo, uma ou duas horas após a sua administração, e uma vez que os efeitos de uma situação de falha ou insuficiência respiratória são irreversíveis ao fim de um curto período de tempo de anóxia cerebral, impunha-se uma vigilância pessoal ininterrupta da doente, à semelhança da que ocorre durante o período operatório, ou a sua monitorização com um oxímetro, único meio de diagnóstico capaz de detectar, em tempo útil, uma situação de oxigenação insuficiente;
e) A doente não estava monitorizada com oxímetro (monitor respiratório);
f) Não se pode concluir que, no recobro, a doente estivesse com vigilância especial, quer por recomendação da médica anestesista que interveio na cesariana às enfermeiras da sala de recobro, quer por iniciativa destas: na verdade, quer a médica anestesista, quer as enfermeiras de serviço referiram estar a ser exercida vigilância especial sobre uma parturiente com uma hemorragia grave, nada referindo quanto a uma especial vigilância da parturiente …;
g) Encontravam-se na Sala de Recobro e na URCI três enfermeiras para nove doentes, sendo que a ratio correcta, neste tipo de serviços, e de acordo com o perito médico deste órgão do Estado, é de uma enfermeira por dois doentes;
h) À data dos factos decorriam obras na Maternidade Alfredo da Costa, em virtude do que o acesso dos médicos à sala de recobro era mais demorado.
23. Resulta, assim, inequívoco, que houve uma falha na vigilância pós-parto da parturiente, entre as 18.30h e as 19.00h do dia 20.1.93, da qual resultaram danos irreversíveis.

IV – Da responsabilidade civil extracontratual do Estado

24. Expostos os factos que estão na origem do presente processo, importa avaliar a sua relevância do ponto de vista jurídico, designadamente para aferir da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Toda a responsabilidade pressupõe que se encontrem reunidas três condições: a existência de um dano, a ocorrência de um acto simultaneamente ilícito e culposo, e a existência de um nexo de causalidade entre esse acto ilegítimo e o dano sofrido.
Neste sentido dispõe o artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Vejamos sucessivamente se estes elementos se encontram reunidos no caso em apreço.
24.1. Quanto à existência de dano, de tudo o que ficou dito atrás resulta claramente que o mesmo se verificou. Na sequência do internamento da parturiente, esta padeceu de danos físicos muito graves, sem recuperação possível, na sequência dos quais ficou dependente do auxílio permanente de uma terceira pessoa, e impossibilitada de prestar assistência quer à criança nascida em 20.1.93, quer ao outro filho que já tinha.
Assim, na ponderação do dano haverá necessariamente que ter em conta não só as lesões físicas e morais da doente, como o evidente sofrimento dos familiares, em especial dos seus filhos.
24.2. Analisemos agora se existiu um “comportamento ilícito culposo” na assistência prestada à parturiente … no dia 20.1.93.
Do exposto anteriormente resulta claro que a parturiente não teve a vigilância devida no período pós-operatório.
Ao incumprir tais regras de vigilância especial, estamos indubitavelmente perante uma ilicitude, tal como é definida no artigo 6.º do referido Decreto-Lei 48051: “Para efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
Temos, pois, que a vigilância especial que deveria ser exercida sobre a doente, e que tanto poderia ser uma vigilância pessoal, como por monitorização especificamente respiratória, v.g. através de oxímetro, não foi exercida.
Uma vez que a I.G.S. não realizou as diligências necessárias com vista a apurar a causa de tal omissão, que tanto pode ter sido uma falha da médica ou das enfermeiras de serviço, como das próprias condições de funcionamento do serviço, atento o lapso de tempo decorrido desde a data dos factos, não é hoje possível imputá-la a um sujeito determinado.
No entanto, isso não obsta a que se afaste a responsabilidade do Estado. Com efeito, desde há muito que a doutrina vem defendendo a noção de culpa administrativa, ou institucional, designada por culpa de serviço (“faute du service”). De acordo com este conceito, “a culpa de serviço significa uma deficiência no funcionamento normal do serviço, atribuível a um ou vários agentes da Administração, mas que não lhes é imputável a título pessoal” (7).
O Professor Freitas do Amaral refere que “cada vez mais nos nossos
dias pode suceder que o facto ilícito e culposo causador de danos, sobretudo se revestir a forma de uma omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, antes o deva ser ao serviço globalmente considerado”.
Na verdade, o sucedido no caso em apreço não pode ser imputado a um autor determinado, uma vez que não se apurou se a médica anestesista recomendou às enfermeiras de serviço no recobro que a parturiente tivesse uma
especial vigilância, ou se estas não seguiram tais instruções. Sabe-se, no entanto, que a Sala de Recobro não dispunha do equipamento qualificado, no caso, como “life saving” (concretamente, do oxímetro), isto é, como indispensável para garantir a sobrevivência da doente. Nas palavras do perito Neurologista amplamente citado, “quando a monitorização depende da maior ou menor atenção ou disponibilidade do médico ou enfermeiros, e não de equipamentos que teriam sido indispensáveis e life-saving neste caso, é difícil afirmar que tenha havido qualquer conduta médica incorrecta ou negligente”.
Desconhece-se porque motivo tal aparelho não foi utilizado, considerando que já seria de uso comum à data dos factos.
Por outro lado, ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que o equipamento em causa não estivesse disponível, ou não existisse naquela Maternidade, então uma vigilância pessoal apertada e rigorosa seria indispensável, atentas as características conhecidas do fármaco administrado e a hora da sua aplicação.
Verifica-se, pois, que o pressuposto de verificação de um comportamento ilícito culposo se encontra preenchido no caso em apreço.
24.3. Por fim, quanto ao nexo de causalidade entre o dano (encefalopatia anóxia-isquémica) e o acto ilícito culposo (falta da vigilância exigível na situação em apreço), os peritos consultados foram unânimes:
Se a doente estivesse a ser vigiada como se impunha, a paragem respiratória teria sido detectada a tempo de se reverter a situação, evitando-se o dano produzido. Assim, e em conformidade com a doutrina dominante, conclui-se que o dano em concreto, no caso em apreço, é efeito do facto lesivo praticado uma vez que “à luz das regras práticas da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos” (8). É de crer, pois, que o dano ocorrido poderia ter sido evitado se a doente tivesse tido a especial vigilância que se impunha.

Em face do exposto, RECOMENDO
a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a atribuição de uma indemnização à Senhora … e aos seus familiares, a título de responsabilidade extra-contratual pelos danos causados em virtude da deficiente vigilância pós-parto a que foi submetida no dia 20.1.93 na Maternidade Dr. Alfredo da Costa.
A Provedoria de Justiça disponibiliza-se, desde já, para auxiliar no cálculo da indemnização, à semelhança do que tem sucedido noutras situações (9).

O PROVEDOR DE JUSTIÇA
Menéres Pimentel
__________________________________
(1) O processo que correu termos na I.G.S. foi concluído em 12.5.99.
(2) A questão colocada era a de saber se teria ocorrido qualquer paragem cardíaca durante o parto por cesariana o que, de acordo com a ficha do Serviço de Anestesiologia, não sucedeu, uma vez que desta ficha não consta qualquer registo nesse sentido, que necessariamente constaria caso tivesse ocorrido, considerando que a parturiente estava monitorizada para registo dos parâmetros vitais.
(3) De acordo com o apurado, este facto não era do conhecimento da equipa que assistiu a doente, muito embora esta tivesse sido acompanhada durante a gravidez na Maternidade Alfredo da Costa. Esta informação não constava do processo clínico da doente, compilado durante a gravidez, e não foi possível reunir elementos sobre o mesmo, sendo apenas referido pelos diversos médicos ouvido pela IGS que a informação foi prestada pelos familiares. No entanto, de acordo com as declarações prestadas pela médica anestesista que assistiu a doente, a mesma indagou junto do Hospital Pulido Valente, onde a utente foi operada, se existiriam registos da ocorrência de paragem cardíaca pós-operatória, não havendo aí qualquer registo nesse sentido. Fica, pois, a dúvida da efectiva ocorrência anterior de acidentes deste tipo.
(4) Sobre a questão da monitorização da parturiente no pós-operatório, vide infra Parte III.
(5) Não obstante, as declarações dos intervenientes directos não são citadas no relatório final, sendo também este omisso quanto a aspectos importantes apurados no decurso do inquérito, como a inexistência de monitorização por oxímetro no recobro e o número de enfermeiras aí a prestar serviço.
(6) De acordo com o perito médico desta Provedoria, o monitor cardíaco mede o ritmo cardíaco, o dinamap mede a tensão arterial, e o oxímetro mede a saturação periférica de oxigénio, ou seja, a percentagem de saturação do oxigénio na hemoglobina, sendo necessário, caso esta percentagem seja inferior a determinado valor, proceder a ventilação artificial. Em caso paragem, ou insuficiência respiratória, o oxímetro seria o primeiro meio de diagnóstico a alertar para a situação, uma vez que apenas em momento posterior se dariam alterações na pressão arterial e ritmo cardíaco.
(7) Jean Rivero, “Direito Administrativo”, Ed. Almedina, 1981
(8) Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os pressupostos da Responsabilidade Civil”, Coimbra, 1995
(9) cfr. Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 90/96, de 19.6.96, 27/97, de 30.5.97 e 19/98, de 12.2.98.

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REITERAÇÃO

Ministro da Saúde

Proc.: R- 3064/93
Data: 07-01-2002
Área: A 3

Em 09.05.2000 o meu antecessor entendeu dirigir à então Ministra da Saúde a Recomendação n.º 38/A/2000, relativa aos cuidados de saúde prestados na Maternidade Alfredo da Costa, em … .93, à Senhora D. …

Esta Recomendação suscitou uma primeira resposta, prestada por meio do ofício com a referência n.º …, de 26.07.2000, na sequência do que veio a ter lugar uma reunião entre um membro do Gabinete da então Ministra da Saúde, um Inspector da Inspecção-Geral da Saúde e colaboradores da Provedoria de Justiça. Apenas após esta reunião foi tomada uma posição sobre a Recomendação em apreço, por meio do ofício do Gabinete da Senhora Ministra da Saúde com a referência n.º …, de 06.10.2000.

Para melhor identificação do assunto, permito-me remeter, em anexo, fotocópia da aludida Recomendação e das respostas que me foram transmitidas.

Por crer que a apreciação então feita não deu resposta adequada às questões suscitadas e não teve em atenção o carácter excepcional da situação ocorrida, entendo reiterar aquela Recomendação, solicitando a Vossa Excelência uma nova apreciação da mesma, no sentido de ser tomada uma posição mais justa e consentânea com os interesses em presença e, até, mais conforme aos objectivos que os XIII e XIV Governo Constitucional traçaram para si próprios.

1. A Recomendação n.º 38/A/2000 baseou-se no Relatório Final do Processo de Inquérito n.º 11/94-I da Inspecção-Geral da Saúde, bem como nos demais elementos recolhidos por esta Inspecção-Geral no âmbito da instrução do referido processo, que teve início em 07.02.94 e foi concluído em 12.05.99.

Muito sumariamente, aquela Recomendação propunha o pagamento de uma indemnização à Senhora D. … na sequência de acidente ocorrido durante o recobro de uma cesariana efectuada na Maternidade Alfredo da Costa no dia 20.01.93.

Com efeito, analisados os elementos recolhidos pela Inspecção-Geral da Saúde, em especial o processo clínico e os pareceres emitidos pelos peritos consultados por aquela Inspecção, verificou-se que foi ministrado à parturiente uma substância anestésica denominada Fentanyl por volta das 18h, na parte final da cesariana então realizada.

Às 18:30h a puérpera foi enviada para o recobro (que, por a maternidade se encontrar então em obras, se situava em andar diferente do da sala de operações/cesarianas) e cerca de 30m depois estava em coma, tendo ocorrido neste intervalo de tempo uma paragem cardiorrespiratória.

Embora esta paragem cardiorrespiratória tenha sido revertida, deixou sequelas irreversíveis, sendo o seu estado, a partir daí, descrito pelas técnicas do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão como o de “uma criança em idade pré-escolar: reconhece os familiares, os médicos, os enfermeiros e terapeutas com quem mais contacta; manifestando reacções de agrado ou desagrado em relação a pessoas, alimentos, temperatura ambiente, sonoridade, etc., com dificuldade na adaptação a pessoas ou ambientes estranhos, reagindo com retracção de membros e choro. (…) A doente fica sentada com apoio e nesta posição passa várias horas por dia, necessitando para as transferências, alimentação e higiene da – intervenção de terceira pessoa (…) “

Sucede que o Fentanyl tem uma acção depressora cardiorrespiratória que se pode prolongar por algumas horas após a sua administração, mesmo quando esta é feita nas doses adequadas e recomendadas. Assim, o laboratório fabricante do produto recomenda que os doentes sejam devidamente vigiados, com meios adequados de reanimação disponíveis.

Constando do registo do acto operatório a administração do Fentanyl por volta das 18h e sendo certo que às 19h a doente já estava em coma, com danos cerebrais irreversíveis, concluiu-se, dos elementos e peritagens recolhidos pela Inspecção-Geral da Saúde, que houve deficiente vigilância da doente no período pós-operatório já que não foi determinada vigilância especial para aquela parturiente (quer vigilância pessoal, quer com recurso a oxímetro).

Muito embora a IGS tenha entendido não ter ficado demonstrada a prática de qualquer conduta infractória ou negligente por parte dos profissionais de saúde que intervieram no processo assistencial da utente …, entendeu o meu antecessor que se encontravam reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado.

2. Também assim o entendo. Com efeito, resulta bem claro dos elementos acima resumidos que existiu um dano (lesões físicas e psíquicas, graves e irreversíveis, que impossibilitam a Senhora D. … de ter uma vida normal e de prestar assistência à família, desde logo ao filho então recém-nascido), um comportamento ilícito culposo, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11, já que não foram observadas pelos profissionais que intervieram no processo assistencial em causa as regras de ordem técnica que determinavam que fosse exercida sobre a puérpera em causa uma vigilância especial (ainda que não se tivesse atribuído a esta falha relevância disciplinar, pois é claro o mau funcionamento do serviço em causa no episódio relatado).

É também certa a causalidade entre esta deficiente vigilância e os danos sofridos, já que resulta claramente das peritagens efectuadas pela IGS que se a vigilância tivesse sido realizada como se impunha, a paragem cardiorrespiratória teria sido detectada precocemente, evitando-se o dano ocorrido.

3. Resumi acima os elementos de facto e de direito que justificaram que o anterior Provedor de Justiça recomendasse à antecessora de Vossa Excelência o pagamento de uma indemnização a título de responsabilidade civil extracontratual à lesada e aos seus familiares, em valor que este órgão do Estado se propunha calcular conjuntamente com os Serviços desse Ministério.

No entanto, a referida Recomendação não veio a ser acatada, conforme decorre do ofício com a referência n.º …, de 06.10.2000, cuja cópia se anexa. Não que a Senhora Ministra da Saúde tivesse entendido que a assistência prestada à doente tivesse sido a adequada, mas por considerar:

a) Por um lado, que não houve nenhum profissional concretamente responsável, pelo que não estaríamos perante uma situação de “comportamento ilícito culposo”, relevante para efeitos de apuramento da responsabilidade civil do Estado, mas perante uma “responsabilidade objectiva do Estado”, que não deveria ser assumida na matéria (vide ponto 4.1. infra).

b) Por outro lado, foi ainda alegado que esta matéria deveria ser apreciada em sede judicial, quer para efeitos de determinação da entidade a quem caberia suportar os custos da eventual indemnização (vide ponto 4.2. infra), quer para decidir da existência, ou não, do dever de indemnizar (vide ponto 4.3. infra).

4. Salvo o devido respeito, a argumentação aduzida não colhe, como de seguida procurarei demonstrar:

4.1. Quanto à inexistência de um “comportamento ilícito culposo”, o que resulta bem patente quer da Recomendação n.º 38/A/2000, quer das peritagens recolhidas pela IGS, é que houve desrespeito de determinadas regras técnicas. Ou seja, deveria ter havido lugar a vigilância especial da puérpera … entre as 18h e as 19/20h, na sequência da administração do fármaco Fentanyl. Esta vigilância especial ocorreu apenas até às 18.30h, antes da doente ser transferida para a URCI, e a paragem cardiorrespiratória deu-se entre as 8:30h e as 19h, altura em que não estava a ser exercida sobre a utente vigilância especial.

Esta vigilância tanto podia ser pessoal (conforme se verificou, alias, durante o acto operatório e no pós-operatório imediato), como por recurso a um equipamento específico, o oxímetro.

De todo o modo, esta vigilância especial deveria ter sido determinada pelos médicos que assistiram a parturiente ou, caso a Unidade de Recobro e Cuidados Intensivos dispusesse de enfermeiros e equipamentos suficientes e adequados, deveria ser assegurada pela própria URCI. Acresce que, à data dos factos, estavam a decorrer obras “no acesso ao recobro, pelo que os médicos tinham de se deslocar do bloco situado no Rés-do-Chão para ir ao recobro no Primeiro andar”.

Assim, o que o Provedor de Justiça concluiu foi que ainda que a Inspecção-geral da Saúde não tivesse logrado apurar quais os agentes concretamente responsáveis pelo desrespeito das mencionadas regras técnicas, ou ainda que esta tivesse entendido que o comportamento destes não relevava para efeitos disciplinares (por exemplo, em face das condições de trabalho, ou de se encontrarem obras em curso ou ter sido um dia em que a URCI se encontra completa, etc.), o certo é que houve um comportamento ilícito que, se não é imputável a ninguém em concreto, decorre do próprio mau funcionamento dos serviços.

Foi neste domínio (1) que se fez apelo à “faute du servisse”; tal como foi definida pela jurisprudência e doutrina francesas e que tem sido aplicada pelos Tribunais portugueses. Não posso deixar de evidenciar que esta figura consta, aliás, da actual proposta de Lei apresentada à Assembleia da República sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado (2).

Saliento que, de todo o modo, no caso de violação de regras técnicas, a jurisprudência tem entendido que a culpa se apaga em face da ilicitude, sendo hoje em dia também inquestionável que o mau funcionamento dos serviços, no seu todo, ainda que não se apure a culpa de um agente determinado, tem relevância do ponto de vista da responsabilidade civil do Estado.

4.2. Quanto à questão de saber se a entidade a que o Provedor de Justiça se deveria ter dirigido deveria ser o estabelecimento hospitalar visado, tal parece-me de somenos importância. Com efeito, esgotada que estava a via disciplinar, não me pareceria adequado solicitar ao estabelecimento visado que se pronunciasse sobre a matéria.

Antes creio ser de todo o interesse que o Ministério que superintende e tutela aqueles serviços e que aprova o respectivo orçamento tenha conhecimento cabal do funcionamento daquele serviço. Por outro lado, creio que, atendendo quer à necessidade de ponderação da decisão a tomar para efeito de eventuais actuações futuras, quer à relevância orçamental que a questão em apreço pode assumir, o assunto sempre seria levado ao conhecimento do Ministro responsável, ou pelo próprio estabelecimento hospitalar, ou por estes Serviços.

Foi, assim, em atenção aos princípios da economia processual, da eficácia e da justiça (se a justiça não for rápida, não é justa) que o Provedor de Justiça optou por se dirigir directamente à Tutela.

4.3. Por fim, quanto ao argumento aduzido de que esta questão deveria ser dirimida pelos Tribunais, não posso deixar de manifestar a minha consternação perante tal sugestão.

Com efeito, creio que uma pessoa que entra num estabelecimento de saúde no uso pleno das suas faculdades e sai de lá totalmente incapaz para ter uma vida normal e independente, na sequência de acidente que poderia ter sido evitado se o estabelecimento de saúde em causa tivesse funcionado adequadamente, ficaria gravemente desprotegida se a única via de defesa dos seus direitos fosse a via judicial.

O Provedor de Justiça é um órgão constitucional com competências especiais no âmbito da prevenção e reparação de injustiças, conforme estabelece o artigo 23º da Constituição da República Portuguesa, que se vê seriamente posto em causa – em claro desfavorecimento dos cidadãos que defende – pela posição assumida. Não existindo dúvidas de que há um direito fundamental a defender, muito embora haja que precisar os contornos desse direito, não se vislumbra o motivo pelo qual o Provedor de Justiça não será um interlocutor válido para o efeito.

Creio que é precisamente nestas situações, de maior fragilidade e em que os valores ofendidos são aqueles em que assenta a pessoa humana, que a Administração de um Estado Social de Direito deve assumir o primeiro papel na defesa daqueles valores, não procurando colocar-se à margem do processo, ou por pretender protelar uma decisão ou por temer as consequências de adoptar uma posição justa, que “crie um precedente”.

Estamos, como atrás referi, perante uma situação verdadeiramente excepcional, com contornos humanos e sociais complexos, que carece de adequada protecção. Situações de excepção devem ser tratadas como tal, sendo objecto de análise individual para determinarão, caso a caso, da posição a adoptar.

Penso que Portugal se pode orgulhar de ser um Estado que reconhece a dignidade da pessoa humana e que assume como reais e efectivos os direitos conferidos aos cidadãos portugueses, desde logo o direito à vida e à integridade física, pelo que, conforme Vossa Excelência decerto compreenderá, não me posso contentar com a resposta recebida.

Acresce que tem sido notória a actividade de Sua Excelência o Ministro da Justiça no sentido de aliviar os tribunais, em geral, do excesso de processos, com vista a permitir a sua conclusão mais célere.

Tanto assim é que, no Orçamento do Estado para 2000, aprovado pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril se estabelecia, no artigo 72.º, como medida excepcional para o descongestionamento das pendências judiciais, que as quantias pagas na sequência de acções cíveis pendentes, bem como os pedidos de indemnização em processos de outra natureza, propostas até 31 de Dezembro de 1999, que terminassem por extinção da instância, em razão de desistência do pedido, confissão, transacção ou compromisso arbitral relevassem integralmente como custo de exercício para efeitos de IRC ou IRS.

Ainda que as circunstâncias actuais não impusessem parcimónia no recurso aos tribunais, sempre se diria que incumbe a estes órgãos de soberania, nos termos do artigo 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. Tal disposição significa, naturalmente, que quando a defesa dos direitos dos cidadãos se encontra assegurada, não se justifica o recurso aos tribunais.

Assim, não restando dúvidas de que no caso em apreço impende sobre o Estado o dever de indemnizar os lesados, para satisfação do legítimo direito que lhes assiste, não se vislumbra o motivo pelo qual se alega a necessidade de ser um Tribunal a arbitrar esse direito.

Não posso deixar de fazer referência ao exemplar procedimento adoptado no caso de Entre-os-Rios, precisamente em sentido oposto ao da posição veiculada pela anterior titular da pasta da Saúde: aqui o Estado, assumindo a responsabilidade civil extracontratual que lhe cabia naquela situação, sem apelar à intervenção de um tribunal, reconheceu o direito de indemnização dos familiares das vítimas (3).

Saliento ainda que, contrariamente ao afirmado, o Provedor de Justiça não pretende aqui abrir caminho à assunção pelo Estado de um novo tipo de responsabilidade civil ou ao alargamento da sua responsabilidade objectiva.

Pelo contrário, estamos perante um caso em que os próprios serviços inspectivos do Ministério da Saúde apuraram a existência de falhas concretas na assistência a um cidadão, com consequências excepcionalmente graves. Adianto que, felizmente, a generalidade das queixas submetidas à minha apreciação nesta matéria não revestem tais características, quer no que respeita ao funcionamento dos serviços, quer no que concerne à gravidade das consequências e à clara relação de causalidade entre o dano e as falhas verificadas.

Certo do melhor empenho de Vossa Excelência na análise desta situação e na expectativa de que seja alterada a posição assumida pela sua antecessora que creio não ter logrado avaliar todos os aspectos da questão e os contornos da fundamentação apresentada.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

H. NASCIMENTO RODRIGUES

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(1) Parece-me que na resposta dada pela antecessora de Vossa Excelência terá havido alguma confusão entre os conceitos de responsabilidade civil extracontratual e de responsabilidade objectiva (ou independente de culpa). Não foi defendido pelo meu antecessor que no caso em apreço houvesse responsabilidade objectiva do Estado. Pelo contrário, o que se concluiu da análise dos elementos recolhidos pela Inspecção-Geral da Saúde foi ter existido uma violação de regras técnicas, o que constitui um acto material ilícito, nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67, perante a qual se deduz a culpa, se não de algum agente individualmente considerado, pelo menos do serviço no seu todo, que funcionou de forma deficiente, não atingindo os padrões objectivos de actuação e rendimento que, atendendo às circunstâncias e ao estabelecimento em causa, seria razoavelmente de exigir que fossem observados. Não existe qualquer confusão doutrinária ou jurisprudencial sobre este conceito, nem tão pouco foi defendido na Recomendação n.º 38/A/2000 estarmos perante um caso de responsabilidade objectiva do Estado.
(2) Vd. artigo 7.º, n.º 2 da Proposta de Lei 43/Prop/20001, de 23.05.2001, com epígrafe “Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”, que propõe que “O Estado e demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado de comportamento concreto de um titular de órgão funcionário ou agente determinado, ou que não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas que se verifique um funcionamento anormal do serviço, por não terem sido satisfeitos os padrões objectivos de actuação e rendimento que, atendendo às circunstâncias, seria razoavelmente de exigir que fosse observados”.
(3) Acresce que, conforme referido na Recomendação n.º 38/A/2000, já em ocasiões anteriores o Estado assumiu responsabilidade pelo pagamento de indemnizações devidas em virtude de responsabilidade civil extracontratual, sem prévia condenação judicial, tendo solicitado ao Provedor de Justiça auxílio no cálculo dos respectivos montantes, nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 90/96, publicada em 19.06.96, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 27/97, publicada em 30.07.97 e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/98, publicada em 03.03.98.