Director do Hospital de S. Sebastião

Rec. n.º 51/A/00
Proc. R-3206/99
Área:A 3
Data: 08-06-2000

Assunto: FUNÇÃO PÚBLICA. MÉDICO OBSTETRA. ESTABELECIMENTO PÚBLICO DE SAÚDE. EXERCÍCIO CLÍNICA PRIVADA. DECRETO-LEI N.º 151/98, DE 5 DE JUNHO. VER REC. N.º 38A/2000.

Sequência: Não Acatada

Foi-me apresentada em 2.8.99 uma reclamação que se prende com o exercício de clínica privada no Hospital que V.Ex.ª dirige.

De acordo com a referida reclamação, e conforme veio a ser confirmado pelos serviços que dirijo, foi determinado por V.Ex.ª em 7.5.99 que o Serviço de Pediatria do Hospital de São Sebastião deveria assegurar toda a assistência necessária às crianças nascidas naquele Hospital, “mesmo daquelas cujo nascimento ocorre como resultante de um parto realizado no âmbito do exercício da actividade privada dos médicos obstetras”.

Esta ordem de serviço, inicialmente dada oralmente, foi dada também por escrito, conforme cópia que junto, dirigida ao Director do Serviço de Pediatria, e abrange todos os médicos daquele serviço, ou seja, funcionários públicos ou contratados, quer tenham ou não celebrado com o Hospital o necessário contrato para o exercício de clínica privada.

Atentas as dúvidas que esta ordem de serviço suscita, relacionadas por um lado com questões de direito do trabalho e do regime dos funcionários e agentes da administração pública e, por outro, com a sua compatibilidade com as “normas em vigor para o Serviço Nacional de Saúde que não contrariem” o disposto no Decreto-Lei n.º 151/98, de 5 de Junho, foi solicitado a V.Ex.ª em 7.9.99 que esclarecesse diversos aspectos relativos ao seu teor.

Assim, questionou-se esse Hospital quanto à situação dos médicos que não aderiram ao regime estabelecido pelo Regulamento do Exercício de Clínica Privada no Hospital de São Sebastião chamados a assistir crianças nascidas na sequência de parto realizado no âmbito do exercício da actividade privada de médicos obstetras e quanto à compatibilização dessa assistência com o atendimento aos utentes do S.N.S. a cargo do Serviço de Pediatria.

a) Da qualificação dos menores nascidos na sequência de um parto realizado no âmbito do exercício da clínica privada de um médico obstetra como utentes do S.N.S..

Veio V.Ex.ª argumentar que os menores nascidos nesse Hospital no âmbito da Clínica Privada eram utentes do S.N.S. e, como tal, todos os médicos lhes deveriam prestar assistência. Esta posição de V.Ex.ª baseia-se no parecer elaborado pelo gabinete jurídico desse Hospital, que refere, entre outros aspectos que:
“para que a criança nascida de um parto realizado por obstetra no exercício de clínica privada pudesse ser considerada um doente privado do hospital teriam os pais da criança – em representação desta – de celebrar um contrato particular com um médico pediatra.

Optando os pais por não o fazer – e não estão obrigados nem pode ser imposto que o façam – a criança, desde o momento em que nasce, porque de imediato adquire personalidade jurídica que lhe confere o gozo de todos os direitos inerentes à pessoa humana, sendo, desde tal momento, considerada como uma pessoa individual e autónoma da mãe (parturiente), passa a ser beneficiária do Serviço Nacional de Saúde, sendo obrigação deste hospital, nomeadamente através do Serviço de Pediatria, prestar-lhe toda a assistência que se mostre necessária”.

É falacioso o argumento jurídico invocado, já que, muito embora seja certo que a personalidade jurídica se adquire, no Direito Português, com o nascimento completo e com vida, nos termos do artigo 66º do Código Civil, a verdade é que os menores em questão se encontram no Hospital de São Sebastião no âmbito da Clínica Privada – por opção dos seus representantes legais – encontrando-se nas instalações reservadas ao exercício da medicina particular, e na sequência de um parto realizado particularmente, em que o pessoal médico e de enfermagem assistente, os materiais e demais elementos necessários são fornecidos e facturados no âmbito da actividade privada do hospital.

Assim, muito embora o recém-nascido seja utente do S.N.S., tal como os seus progenitores e representantes legais, desde que cidadãos portugueses, nos termos do disposto na Base XXV do Estatuto do S.N.S., resulta amplamente do exposto que estes se colocaram à margem do S.N.S., ao optarem por atendimento particular. E não faz qualquer sentido defender que apenas a parturiente se colocou nessa situação, uma vez que é de esperar que num parto ocorra o nascimento de pelo menos uma criança, ou de pelo menos um novo utente do S.N.S., cujos representantes legais optaram por assistir fora do S.N.S., por médicos particulares, muito embora nas instalações de um hospital público.
Assim, como adiante se desenvolverá, o que é necessário é que o obstetra garanta a assistência ao recém-nascido por um médico pediatra, seja este escolhido pelos pais do nascituro, seja escolhido pelo próprio obstetra, como médico de apoio, de acordo com as regras vigentes para o exercício da clínica privada.

Se assim não fosse, seria desnecessária a celebração de contratos para o atendimento de menores nascidos no âmbito da clínica privada desse Hospital, não havendo assim lugar a qualquer pagamento correspondente, já que os pais certamente prefeririam um atendimento gratuito.
No entanto, apurei recentemente que vários médicos do Serviço de Pediatria celebraram os referidos contratos para o exercício de Clínica Privada, de onde se depreenderá que os representantes legais das crianças nascidas no âmbito da Clínica Privada deixaram de poder optar pelo idêntico e certamente menos oneroso atendimento no âmbito do S.N.S..

b) Do âmbito do vínculo funcional/laboral entre o Hospital de São Sebastião e os seus médicos.

Argumentou ainda V. Ex.ª que, sendo todos os doentes internados no Hospital de São Sebastião “doentes do Hospital” (quer os da clínica privada, quer os utentes do S.N.S.), o “seu atendimento e tratamento estariam abrangidos pelo vínculo contratual estabelecido” entre o Hospital e os seus médicos.

Não posso concordar com esta interpretação, pois qualquer que seja o vínculo entre o Hospital de São Sebastião e os seus médicos (de acordo com os artigos 43º e 47º do Decreto-Lei n.º 151/98, de 5 de Junho, o pessoal do Hospital rege-se pelas normas gerais aplicáveis ao contrato individual de trabalho, permanecendo vinculado à Função Pública o pessoal que já exercesse funções no Hospital de Nossa Senhora da Saúde de São Paio de Oleiros), o certo é que o Hospital que V.Ex.ª dirige é um hospital público, que se rege pelas normas em vigor para os hospitais do S.N.S..

Nessa medida, o Hospital destina-se, em primeira linha, a assistir os utentes do S.N.S., nos termos e de acordo com as regras estabelecidas para o atendimento destes utentes, pelo que o vínculo laboral estabelecido entre o Hospital e os seus médicos tem como âmbito subjectivo, ou como objecto, a assistência a prestar aos utentes do Serviço Nacional de Saúde.

Esta conclusão decorre do disposto no artigo 64.º, n.º 2, alínea a) da Constituição da república Portuguesa, que determina que o “direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”, ou seja, o direito à saúde dos cidadãos é garantido através do S.N.S., pelo que os hospitais públicos destinam-se, em primeira linha, a assistir os utentes no âmbito deste Serviço, sendo para tanto que são nomeados ou contratados os médicos e demais funcionários hospitalares.

Assim, não se pode confundir na expressão “doentes do Hospital de São Sebastião” os utentes que aceitam as regras do S.N.S., nomeadamente de organização dos serviços, que podem implicar a impossibilidade de escolha do médico assistente, ou um tempo de espera mais prolongado, etc., e a consequente tendencial gratuitidade dos serviços prestados, e os que se colocam à margem do S.N.S., procurando a satisfação das suas necessidades de saúde no âmbito da actividade privada do seu médico assistente, ainda que esta seja exercida no Hospital de São Sebastião, mediante o pagamento de importâncias fixadas, a título de honorários médicos e de outras despesas.

É que uma e outra situação não são idênticas e não estão assim igualmente abrangidas pela relação jurídica de emprego público criada pelo Hospital. Não pode pois, sem qualquer dúvida, incluir-se nas obrigações funcionais dos médicos do S.N.S. a obrigatoriedade de atendimento de doentes particulares.

Convém recordar que a remuneração dos médicos do Hospital de São Sebastião, quer dos funcionários públicos, quer dos agentes vinculados por contrato individual de trabalho, provém igualmente do mesmo orçamento hospitalar, destinando-se esta a remunerar a assistência prestada aos utentes assistidos no âmbito do S.N.S., sendo a remuneração da assistência prestada aos utentes seguidos no âmbito da actividade privada dos médicos suportada directamente por aqueles.

c) Do exercício de clínica privada em estabelecimentos públicos de saúde.

Do Decreto-Lei n.º 151/98, bem como do Despacho do Ministro da Saúde n.º 14/90, de 11 de Junho (D.R., II Série, de 19.7.90), decorre que os utentes podem recorrer ao Hospital de São Sebastião no âmbito do S.N.S., situação em que ficarão abrangidos pelas regras de organização deste Serviço, ou no âmbito da actividade privada dos seus médicos assistentes que aí trabalhem.

Para tanto, é necessária a existência de um regulamento do exercício da clínica privada em que se estabeleçam regras para o exercício das duas actividades (pública e privada), estabelecendo-se também as compensações financeiras do exercício da actividade privada, a suportar pelos doentes particulares.

Não posso neste ponto deixar de salientar que é um contra-senso considerar, a um tempo, que todos os médicos do hospital estão vinculados a atender todos os “doentes do Hospital de São Sebastião”, quer no âmbito do S.N.S. quer da Clínica Privada, e simultaneamente estabelecer regras especiais, constantes de um Regulamento do Exercício de Clínica Privada no Hospital de São Sebastião”, aprovado por deliberação do Conselho de Administração do Hospital em 30.12.98, que passam pela celebração de um contrato específico entre o médico e o Hospital, para o atendimento de doentes particulares.

Analisando as regras relativas ao exercício de clínica privada nos estabelecimentos hospitalares oficiais constantes do Despacho n.º 14/90 verifica-se que, em regra, o atendimento em regime de clínica privada só pode efectuar-se fora das horas de funcionamento normal do serviço e que o médico é o único responsável pelos cuidados prestados ao utente, cobrados à parte pelo médico junto do doente.

Pretende-se separar claramente o exercício da clínica privada do exercício das funções cometidas ao Estado no tocante à defesa e promoção da saúde dos cidadãos, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
Resulta da análise destas disposições, bem como do teor do Regulamento do Hospital de São Sebastião, que:
– nem todos os médicos podem exercer clínica privada num hospital público;
– esta actividade privada depende da adesão expressa e voluntária dos interessados, que têm de celebrar com o Hospital onde trabalham um “Contrato para o Exercício de Clínica Privada” (CEPC);
– a actividade privada dos médicos referidos nos pontos anteriores é paga pelo utente que escolheu esses serviços, preferindo-os à assistência no âmbito do S.N.S.;
– o exercício da clínica privada tem de ser realizado fora do horário de serviço do médico.

No entanto, todas estas regras são violadas pela ordem de serviço em apreço, já que não se faz qualquer distinção do médico pediatra chamado a assistir uma criança nascida no âmbito do exercício da clínica privada, mesmo em partos programados, bastando para o efeito que este esteja de serviço, e comprometendo-se, deste modo, o respeito pelo horário hospitalar. Acresce que ao mesmo é exigida tal assistência, com total desrespeito pela sua liberdade de escolha e sem lhe ser paga qualquer retribuição adicional.

Repare-se ainda que o próprio “Regulamento do Exercício de Clínica Privada no Hospital de S. Sebastião” estabelece, no ponto 5.3. que “os meios humanos directamente necessários à realização das intervenções cirúrgicas deste tipo, nomeadamente médicos ajudantes, anestesistas e enfermeiros de sala e de recobro, serão recrutados pelo médico contratante de entre o pessoal contratado pelo HSS, devendo os médicos ter CECP em vigor”.

O respeito por estas normas exigiria que o médico que segue a utente no âmbito da sua actividade privada, enquanto único responsável por todos os actos praticados, se rodeasse da equipa indispensável ao acto a praticar – o parto – da qual faz parte um médico pediatra. Assim, nos partos programados em que o médico obstetra que segue a utente não tenha procurado que um médico pediatra faça parte da equipa, não pode deixar de considerar-se haver uma falha grave da parte desse médico, que não se rodeou da equipa indispensável ao acto médico a realizar.

Em face do exposto, e atenta a sua ilegalidade, quer em face do vínculo estabelecido entre o Hospital e os seus médicos, quer em face das disposições vigentes quanto ao exercício de clínica privada nos estabelecimentos hospitalares oficiais, RECOMENDO que seja revogada a ordem de serviço emitida em 7.5.99.

Agradeço que me seja dado conhecimento do despacho que venha a recair sobre a presente recomendação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL