Presidente do Supremo Tribunal Militar Campo de Santa Clara

R-3011/92
RECOMENDAÇÃO N° 24 /A/95
Data:1995-03-21
Área: A3

Assunto: FORÇAS ARMADAS – CÓDIGO DE JUSTIÇA MILITAR – TRIBUNAL MILITAR – DECRETO LEI 404/82, DE 24.09 – INCONSTITUCIONALIDADE.

Sequência:

1. O acórdão desse Supremo Tribunal, proferido em 29 de Junho de 1988 no processo n° 751/ DIV-P/ 708 / 88, deu parecer desfavorável à concessão ao tenente miliciano Ângelo José de Oliveira Lopes, de uma pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país, ao abrigo do art. 1°, alínea b), do Decreto-Lei n° 404/82, de 24 de Setembro.

2. Inconformado, requereu o interessado a intervenção do Provedor de Justiça, no sentido de ser reparada a injustiça que considerou ter sido cometida.

3. Face a tal requerimento, suscitou-se-me a questão de saber se essa intervenção tinha justificação legal. Isto, atendendo a que os Tribunais, por serem orgãos de soberania a quem incumbe a função jurisdicional – art. 205° da Constituição – estarem apenas sujeitos à lei, gozando de absoluta independência, conforme ditâme constitucional vertido no art. 206° da Lei Fundamental, no exercício dessa função.

É evidente que, sempre que o Supremo Tribunal Militar (STM) actue no exercício da sua função jurisdicional, a sua actividade escapa à censura do Provedor de Justiça, o que aliás resulta expressamente do art. 22°, n° 2 da Lei n° 9/91, de 9 de Abril.

4. Todavia, foi-me dado concluir que o STM, ao emitir o tipo de pareceres a que se reporta o art. 28° do citado Decreto-Lei n° 404/82, está a exercer uma função de natureza jurídico-administrativa, consubstanciada num parecer vinculativo para a concessão da pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, por feitos em campo de batalha.

Assim, e independentemente da formulação de quaisquer juizos sobre a conformidade constitucional do já referido art. 28°, o acto em causa, sendo formalmente um Acordão, não constitui uma decisão judicial, mas antes um acto praticado no exercício da actividade administrativa do STM, pelo que entendo que élegítima a intervenção do Provedor de Justiça no caso concreto em análise.

5. Como acto administrativo – válido em obediência à presunção de legalidade dos actos administrativos – nos termos do art. 140°, n° 1 do Código do Procedimento Administrativo pode ser revogado a todo o tempo com fundamento na sua inconveniência, sendo que as excepções aí previstas não se verificam no caso em apreço.

6. Deste modo, ultrapassada esta questão prévia, passo a considerar os elementos da folha de matrícula do reclamante.
Consta da mesma o seguinte: “Prémios, Condecorações e Louvores – Antes da Promoção a Oficial: Louvado pelo Comandante Interino do BCP, porque durante o período em que esteve ministrando instrução de combate na Secção de Instrução Táctica, deu mostra de constante espíri o de sacrificio, abnegação e interesse pelo bom cumprimento da sua missão. Militar muito interessado, correcto e disciplinado, o Asp.Lopes colocou o seu pelotão em óptimo nível de instrução, além de que mostrou um notável espírito de sacrificio principalmente nas três semanas do estágio de nomadização em que apesar de que sofria duma lesão grande, acompanhou e comandou o seu pelotão como em condições normais, pelo que se mostrou um óptimo auxiliar do Director da Instrução de Combate, (O.S. do BCP n° 212 de 1961).
DEPOIS DA PROMOÇÃO A OFICIAL: Louvado pelo Exm° Comandante Interino, do BCP 21, por proposta do Comandante da 3ª CC, “porque no decorrer da sua acção em Angola demonstrou ser possuidor de óptimas qualidades de bravura, coragem, sangue-frio, espírito de sacrificio e desprezo pelo perigo, aliadas a uma modéstia de que sempre foi dotado. Oficial possuidor do mais elevado sentido de camaradagem e lealdade, bem cedo tornou o seu pelotão uma unidade eficiente em combate tendo contribuído para o bom rendiemnto das operações levadas a cabo pela sua companhia em especial na MATA SAANGA (Operação GATO FURIOSO, GATO ERIÇADO e DESPEDIDA DOS GATOS). Também num assalto durante a operação GAVIÃO BRANCO, apesar da resistência do inimigo, conduziu o seu Grupo de Combate por forma a infligir-lhe elevadas baixas. Pelo seu comportamento, o Alferes Lopes,
conseguiu em pouco grangear a consideração dos seus superiores e inferiores que por ele nutrem uma grande estima e o tornaram digno de ser apontado como exemplo de Militar Pára-Quedista, (O.S. 156 do BCP21 de 1964). Condecorado com a medalha de
prata dos Serviços distintos com palma, por Portaria de 29 de Janeiro de 1965, (O.A. 5-2ª Série de 1965). Louvado pelo SEA, por Portaria de 29 de Janeiro de 1965, “porque servindo em Angola durante dezanove anos e tendo participado em quinze operações na ZIN, demonstrou possuir um elevado grau de qualidade de Comando, aprumo militar, sangue frio e espiríto de sacrificio.” O seu comportamento em inúmeras acções debaixo de fogo inimigo arrastou pelo seu exemplo os homens sob o seu comando, conseguindo resultados que prestigiam as tropas pára-quedistas. Aliando tão elevadas qualidades militares a uma modéstia por todos reconhecida e a um perfeito sentido de cooperação e camaradagem, o Alferes Lopes merece de todos que com ele serviram a maior estima e consideração. Apesar de fisicamente diminuído por acidente ocorrido em serviço, sempre insistiu para que os médicos da Unidade autorizassem a sua ida para operações garantindo com a sua presença o alto nível de actuação do pelotão que comandava A actividade operacional a que voluntariamente se sujeitou e o entusiasmo posto no cumprimento das missões que foram atribuídas provocaram um desgastamento fisico, de que veio a ressentir-se a sua saúde. Estes factos, aliados a outros méritos de valia militar, levam a considerar os serviços prestados por este oficial como relevantes e extraordinários, (O.A. 5-28 Série de 6 de
Fevereiro de 1965). Medalha comemorativa das Campanhas das Forças Armadas no Norte de Angola. (O. S. 10 do RCP de 12 de Janeiro de 1966)” (sublinhados meus).

7. Do referido curriculum importa destacar o seguinte:
a) Participou em 15 acções na zona do teatro de guerra;
b) A sua conduta pessoal e militar e como comandante de um grupo de combate, tornaram-no digno de ser apontado como exemplo de militar pára-quedista;
c) Foi condecorado com a medalha de prata de serviços distintos, com palma;
d) Em inúmeras acções, debaixo de fogo inimigo arrastou pelo seu exemplo os homens sob o seu comando, levando-os a resultados que prestigiaram as tropas pára-quedistas;
e) Não obstante ter sido vítima de acidente em serviço, não acatou o conselho dos médicos em contrário e insistiu em comandar os seus homens debaixo de fogo inimigo, sendo a sua presença garantia do alto nível da actuação do pelotão que comandava;
f) Dessa actividade operacional, a si mesmo voluntariamente imposta, resultou prejuízo para a sua saúde;
g) Por todos estes factos e outros méritos de valia militar, os serviços por ele prestados, quando embarcou de regresso a Portugal, foram classificados pela O.A. 5-28 Série, de 6 de Fevereiro de 1965, como relevantes e extraordinários.

8. A lei não pormenoriza ou concretiza o que deve entender-se por serviços relevantes, excepcionais ou extraordinários.
Mas, a Procuradoria-Geral da República, no seu parecer n° 51/67, de 27 de Novembro de 1967, entende ser necessário, para que haja prestação de serviços excepcionais e relevantes, ter o seu autor ultrapassado o exigível em circunstâncias de merecerem o reconhecimento do País.
E em outro parecer da mesma Procuradoria n° 49/70, de 7 de Dezembro de 1970, escreve-se que a lei não reconhece o direito à pensão por serviços excepcionais e relevantes quando não se ultrapassou o cumprimento do dever, ainda que por forma exemplar ou com sacrificio da própria saúde. Nesse mesmo parecer, a determinado passo e em referência ao sujeito aí em causa, diz-se que os elementos constantes do processo não mostram que o falecido tenha sido expressamente distinguido ou citado pela prática de feitos de valor nos campos de batalha ou por actos concretos e especificados de coragem cívica. Ora, no caso que ora nos ocupa, existe essa qualificação e esse louvor.
Na falta de uma definição legal concretizada do que deve entender-se por serviços relevantes e extraordinários, não é dificil concluir que os factos anteriormente enunciados, constantes da folha de matrícula do reclamante, se integram na referida conceptualização relativamente indeterminada, preenchendo-a valorativamente, e indo ao encontro do defendido pela Procuradoria-Geral.

9. Renunciando a comparações com outras situações anteriores (sempre ingratas e dificilmente isentas), em que foi reconhecida a prestação de serviços excepcionais e relevantes, resta considerar dois aspectos que foram determinantes para a minha posição final:
9.1. O primeiro desses aspectos é que, como resulta do Acórdão proferido, – onde se enunciam os factores que entraram na apreciação que concluiu pelo entendimento de que “esses factos embora muito meritórios não têm suficiente relevo para a concessão da pensão por serviços excepcionais e relevantes”, não foram tomados em consideração todos os prémios, cndecorações e louvores conferidos ao reclamante. O simples cotejo destes com os referidos naquele Acórdão é elucidativo.
9.1.1. Porque não se levou em conta que o reclamante foi considerado como tendo revelado em combate conduta e qualidades para ser reputado exemplo de militar pára-quedista?
9.1.2. Porque não se atendeu a que o reclamante tomou parte em quinze operações ZIN, ou seja, em zonas de perigo e contacto com o inimigo?
9.1.3. Porque não se deu relevo a que o reclamante, com sacrificio da sua própria saúde e contrariando as indicações dos médicos da Unidade, insistiu em acompanhar os seus homens nas missões que a estes estavam atribuídas, galvanizando-os com a sua presença e exemplo de bravura?
9.2. Por outro lado, não pode deixar de se atentar em que o STM não se deteve na análise desta situação, que igualmente resulta da folha de matrícula do reclamante: é que os serviços por ele prestados já tinham sido declarados como relevantes e extraordinários pela O.A. 5-28 Série, de 12 de Janeiro de 1966.
Assim, decidindo em sentido contrário, o STM, no uso da sua competência em matéria administrativa, contrariou uma decisão já tomada há mais de 26 anos, precisamente a que considerava extraordinários e relevantes os serviços prestados pelo reclamante em teatro de guerra.

10. Para além de se salientar que esse facto não foi tomado em consideração na decisão tomada, importa sobremaneira qualificar juridicamente o acto resultante daquela O.A. 5-2ª Série.
A O.A. 5-28 Serie, em causa, dispõe expressamente: “estes factos, e outros méritos de valia militar, levam a considerar os serviços prestados por este oficial, como relevantes e extraordinários”. Esta classificação constitui, sem dúvida, um acto administrativo constitutivo de direitos.
E a importância desta classificação mais avulta se se tiver em consideração que à data vigorava o Decreto-lei n° 47084, de 9 de Julho de 1966, em cujo art. 6° se dispunha que “origina o direito à pensão por serviços excepcionais prestados ao País a prática por cidadão português, militar ou civil, de feitos de valor no campo de batalha, actos de abnegação e coragem cívica ou altos e assinalados serviços à humanidade ou à Pátria” (sublinhado meu).
Nestes termos, a prática de actos relevantes e extraordinários dá ao seu autor um direito à pensão com esse fundamento, cuja atribuição culminava com o acto de concessão, por decreto da competência do Conselho de Ministros, sendo formalidade essencial desse procedimento um parecer favorável do STM e a sua apresentação ao Ministro das Finanças, o qual, por sua vez, o submetia à apreciação do Governo.
Parece-me, pois, pacífico qualificar esse acto como constitutivo de direitos para o seu destinatário.

11. Assim, o STM quando, no aludido Acórdão, negou aos actos praticados pelo reclamante no campo de batalha a qualificação de actos relevantes e excepcionais veio revogar um acto válido constitutivo de direitos e, portanto, insusceptível de revogação nos termos do art° 18° da LOSTA, então em vigor. Consequentemente essa revogação traduziu-se num acto ilegal, pelo que nada impede que o Provedor de Justiça recomende a sua revogação.
Esta tese, contudo, não impossibilita o oportunamente expendido no ponto 5 desta recomendação. É certo que esse acto secundário originariamente ilegal já se encontra convalidado, aparentemente insusceptível de revogação nos termos do art. 141° do CPA. Contudo, convalidado o acto, este é, para todos os efeitos, válido, dada a sanação do vício pelo decurso do tempo. Assim, decorrido o prazo, a revogação rege-se pelo art. 140° e não mais pelo art. 141° daquele diploma.

Neste contexto, permito-me Recomendar que esse venerando Tribunal proceda à revogação do dito Acórdão.
Solicito ainda que me seja comunicada a posição que vier a ser assumida relativamente a esta Recomendação formulada nos termos do art. 20°, nº 1, alínea a), da Lei n° 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), o que obriga ao cumprimento do disposto no art. 38°, n° 2, do mesmo diploma.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel