Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos

Processo:R-1212/94
Rec. nº 45A/95
Data: 1995-05-16
Área : A1

Assunto:ESTRANGEIROS – ASSOCIAÇÕES – CIDADÃO BRASILEIRO – MÉDICO – ORDEM DOS MÉDICOS – INSCRIÇÃO – CONDICIONAMENTO – CESSAÇÃO DA INSCRIÇÃO – ORDEM PROFISSIONAL ESTRANGEIRA.

Sequência: Acatada

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

1. Em 20 de Abril de 1994 foi apresentada na Provedoria de Justiça pelo Senhor Dr. …, médico licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e inscrito no Conselho Federal de Medicina do Brasil, uma queixa na qual referia que,
pretendendo inscrever-se na Ordem dos Médicos, foi informado pelos serviços desta que só o poderia fazer se previamente fizesse cessar a sua inscrição na congénere brasileira.

2. Pedidos esclarecimentos ao Senhor Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, foi recebido em resposta o oficio n° … de 5 de Abril p. p., que confirma os factos narrados na queixa, fundados em deliberação genérica do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, tendo por base o “princípio da proibição da medicina itinerante”.

3. O art. 47°, n° 1, da Constituição, estabelece que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o gero de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade.

4. Este direito fundamental, inserido no Título II da Constituição, que contém os direitos, liberdades e garantias, é reafirmado no art. 23°, n° 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

5. A liberdade de profissão deve ser reconhecida aos estrangeiros e apátridas, nos termos do art. 15°, nos 1 e 2, da Constituição, uma vez que não é um direito político, não acarreta o exercício de funções públicas, nem está reservada pela Constituição ou pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses, como resulta do disposto no art. 9° do Decreto-Lei n° 282/77, de 5 de Julho, que prevê expressamente a possibilidade de inscrição na Ordem dos Médicos de cidadãos estrangeiros (cfr., no sentido de que os direitos constantes dos arts. 24° a 47° da Constituição deverão ser reconhecidos também aos estrangeiros e apátridas, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, pp. 178 e ss.).

6. Acresce que, ao abrigo do art. 15°, n° 3, da Constituição, a Convenção sobre a Igualdade dos Direitos e Deveres entre os Brasileiros e os Portugueses, aprovada para ratificação por Resolução da Assembleia Nacional publicada em 29 de Dezembro de 1971, prevê, nos seus arts. 1° e 5°, regulamentados pelos arts. 15° e 16° do Decreto-Lei n° 126/72, de 22 de Abril, que os brasileiros têm em Portugal um tratamento idêntico ao dos portugueses no que toca, entre outros, ao direito ao trabalho e ao direito ao exercício de actividades económicas.

7. O conteúdo da liberdade de profissão integra, além da liberdade de escolha, a liberdade de exercício da profissão (cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais, 28 ed., Coimbra, 1993, p. 439, e J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 38 ed., Coimbra, 1993, p. 262).

8. Por sua vez, a liberdade de exercício de profissão integra o direito de escolher o lugar, no país ou no estrangeiro,de exercício da profissão, e o direito de inscrição em associações profissionais e de participação, através delas, na organização e promoção da profissão (JORGE MIRANDA, Ob. cit., pp. 440-441).

9. A recusa da inscrição, pela Ordem dos Médicos, de licenciados em Medicina que se encontrem inscritos em ordem profissional estrangeira, configura uma verdadeira restrição à liberdade de profissão, pois impede o exercício da medicina, o qual, nos termos do art. 8° do Decreto-Lei n° 282/77, de 5 de Julho, depende de inscrição na Ordem dos Médicos.

10. Sendo a liberdade de profissão um direito fundamental incluído no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, a sua restrição apenas poderá ter lugar nos termos do art. 18°, nºs 2 e 3, da Constituição, ou seja, apenas serão admissíveis restrições nos casos expressamente previstos na Constituição, efectuadas mediante lei geral, abstracta e não retroactiva, que se limitem ao
necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito fundamental em causa.

11. A Constituição admite, no seu art. 47°, n° 1, in fine, restrições à liberdade de profissão impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade dos cidadãos.

12. No caso vertente, não ocorrem restrições inerentes à capacidade do Reclamante: sendo licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, preenche os requisitos necessários à inscrição na Ordem dos Médicos, nos termos do art. 9° do já referido Decreto-Lei n° 282/77.

13. Os esclarecimentos prestados pelo Senhor Presidentes Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, -ao pretenderem fundar a restrição aqui em causa no “princípio da proibição da medicina itinerante”, indiciam implicitamente que aquela se baseará no interesse colectivo. No entanto, como afirma JORGE MIRANDA “( …) não basta a alegação do interesse colectivo: é mister fazê-lo patente, tem de ser um interesse compatível com os interesses constitucionais e ele só pode projectar-se sobre a liberdade de profissão na medida do necessário” (Ob. cit., p. 441). Ora, no caso vertente não se vislumbra em que medida a “medicina itinerante” afecte o interesse colectivo. Nem o Senhor Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, concretiza, nos esclarecimentos prestados, esse prejuízo para o interesse colectivo. Não pode, pois, deixar de concluir-se pela impossibilidade
de aferir a existência de prejuízo para o interesse colectivo na situação aqui versada.

14. Além disso, a recusa de inscrição na Ordem dos Médicos de médicos inscritos em ordem ou ordens profissionais estrangeiras não pode ser estabelecida por deliberação do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, mas apenas por lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo, precedendo autorização da Assembleia da República, nos termos do
art. 18 °, n° 2, conjugado com o art. 168°, n° l, al. b), todos da Constituição.

15. Assim, a restrição aqui em causa padece inquestionavelmente de vício de forma, uma vez que, estando sujeita a reserva de lei, não pode ser criada ou disciplinada por regulamento ou acto administrativo.

16. Pode pois concluir-se que a recusa de inscrição na Ordem dos Médicos do Dr. … viola a liberdade de profissão, consagrada no art. 47°, n° 1, da Constituição, e ainda o disposto no art. 9° do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n°
282/77, de 5 de Julho.

CONCLUSÕES

Em face do exposto, e tendo em vista a atribuição de pugnar pela prevenção e reparação de injustiças (art. 23° da Constituição), entendo, no uso dos poderes que me são conferidos no art. 20°, al. a), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n°9/91. de 9 de Abril, RECOMENDAR:

1° – Que a inscrição na Ordem dos Médicos do Dr. … não seja condicionada à cessação da sua inscrição no Conselho Federal de Medicina do Brasil, de tal se dando conta ao interessado.
2° – Que em situações futuras em que seja requerida a inscrição na Ordem dos Médicos por médicos inscritos em ordem ou ordens profissionais estrangeiras, a mesma não seja condicionada à cessação da inscrição naquela ou naquelas ordens profissionais.

Permito-me, por fim, recordar a V. Exa. ser a presente Recomendação formulada nos termos do art. 20°, n° 1, al. a), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n° 9/91, de 9 de Abril, o que faz determinar a observância do disposto no art. 38°, nos 2 e 3, do mesmo diploma.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel