Ministro da Defesa Nacional

 

 

Rec. n.º 56A/94

Proc.:P-36/91

Data: 1994-03-02

Área: A 4

 

 

Assunto: FORÇAS ARMADAS.FORÇAS DE SEGURANÇA. MILITAR. MORTE NO DECURSO DE EXERCÍCIOS FÍSICPS. CONDIÇÕES CLIMATÉRICAS ADVERSAS. DEVER DE INDEMNIZAÇÃO DO ESTADO. CONDICIONALISMOS NA SELECÇÃO DOS MANCEBOS E NA EXECUÇÃO DE PROVAS FÍSICAS.

 

 

 

Sequência:Não acatada

 

 

 

1. Como é do conhecimento de V. Exa. esta Provedoria de Justiça organizou um processo por iniciativa própria para averiguar das circunstâncias que rodearam a morte do soldado recruta … , morte essa que ocorreu em 19 de Setembro de 1992 e que tinha ligação com a prova "Marcor

12" realizada no Campo de Tiro de Alcochete em 17 de Setembro do mesmo ano.

 

 

2. Tendo em conta os elementos disponíveis, esta Provedoria de Justiça concluiu o que consta do oficio de 1-6-1993, que foi remetido ao Gabinete de V. Exa., e que aqui se reproduz para todos os efeitos (Anexo I ao processo da presente Recomendação).

 

 

3. Formulados os quesitos ao Conselho Médico Legal, foi elaborado parecer onde se conclui que a causa básica da morte do soldado ….. foi um golpe de calor.

 

 

4. Igualmente do mesmo parecer se infere que o golpe de calor de esforço resultou "muito provavelmente" da intensa actividade física do soldado, desenvolvida em condições climatéricas adversas.

 

 

5. Como se salienta no referido parecer foram condições propiciadoras do golpe de calor as circunstâncias seguintes:

 

 

a) Prática de actividade excessiva do ponto de vista físico, que ultrapassou a actividade programada;

 

b) Enorme cansaço denotado pelos instruendos antes de iniciar a prova "Marcor";

 

c) Realização da prova com o equipamento completo;

 

d) Falta de descanso proporcionado pelo sono;

 

e) Incontinência urinária do soldado;

 

f) Excessiva desidratação dos instruendos atendendo às condições climatéricas;

 

g) Condições climatéricas adversas.

 

 

 

6. Das declarações dos soldados A, B, C e D, elementos estes acometidos de desfalecimento no final da prova, é possível concluir o seguinte:

 

a) Todos eles denotavam grande cansaço ao iniciar a prova "Marcor";

 

b) Sentiram tonturas durante a prova e mais acentuadamente na sua parte final;

 

c) Não lhes foi distribuída água durante a prova;

 

d) Sentiram perda de visão na execução da prova;

 

e) Sentiram excesso de esforço físico ao longo do dia;

 

f) Mal descansaram durante a noite precedente.

 

 

 

7. De acordo com as declarações dos soldados atrás referidas poderemos ainda dar como assente que no decurso da prova alguns dos instruendos sentiram os chamados "sinais premonitórios" do golpe de calor apontados pelo Conselho Médico Legal.

 

 

8. Dos factos dados como assentes no ofício de 1-6-93, que aqui reproduzo, e considerando o teor do parecer do Conselho Médico Legal, afigura-se-me poder, com alguma segurança, considerar que a morte do soldado recruta, se ficou a dever às circunstâncias adversas em que foi

realizada a prova "Marcor".

 

 

9. Na verdade, tendo em conta o grande cansaço físico a que os instruendos foram submetidos durante o dia, a falta de descanso nocturno, a grande desidratação em que se encontravam, era manifestamente contra-indicada a realização da prova num dia de intenso calor, sendo certo,

ainda, que os instruendos eram comandados por um oficial que os desconhecia, além de não terem sido realizados exames médicos durante o dia para aquilatar da situação física dos instruendos, e, sobretudo, por não existir no local – campo de Alcochete – um meio de transporte que

possibilitasse uma evacuação rápida e em cima dos acontecimentos.

 

 

10. Impunha-se, assim, que os responsáveis pela instrução do 5º Pelotão, em que estava integrado o Soldado, tivessem providenciado no sentido de não realizar a prova "Marcor" num dia de intenso calor e depois de prolongado esforço físico dos instruendos durante o dia.

 

 

11. Propendo, assim, a estabelecer um seguro nexo de causalidade adequada entre a falta de cuidado dos responsáveis de instrução e a morte do soldado .

 

 

12. Ao compulsar os diversos processos de averiguações, que estiveram juntos aos autos e que oportunamente foram remetidos pelo Ministério da Defesa Nacional, não descortinei a existência de quaisquer sinais que pudessem consubstanciar comportamento culposo de vítima ou de terceiros, a não ser eventualmente dos responsáveis

pela instrução.

 

 

13. Pelo contrário, infere-se ainda que têm sido realizados estudos determinados pelo Despacho nº 150/91, de 21 de Outubro do Senhor Chefe do Estado Maior do Exército.

 

 

E, como não podia deixar de ser, dos estudos realizados, apurou-se que na prova "Marcor" havia necessidade de observar rigorosamente os seguintes condicionalismos:

 

 

a) Cumprimento rigoroso do Manual Técnico de Educação Física do Exército;

 

b) Programação de instrução com distribuição equilibrada do esforço dispendido durante o dia;

 

c) Fiscalização dos Serviços de Educação Física do Exército;

 

d) Inspecção frequente do Serviço de Saúde;

 

e) Execução da instrução após aprovação dos respectivos programas pela Direcção da Arma da Infantaria.

 

 

14. A simples não verificação dos condicionalismos referidos no número anterior mais reforça o grau de responsabilidade que existiu na realização da prova "Marcor" no dia 17 de Setembro de 1991.

 

 

15. Assim, em meu entender, existe o dever de indemnizar por parte do Estado, nos termos do artº 8º do Dec-Lei 48051, de 21 de Novembro de 1967, ou mesmo com base em mera "culpa do serviço" que os artºs 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa parecem admitir (neste sentido, Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral a p. 503 do

III vol. do seu "Direito Administrativo", Prof. Doutor Rogério Ehrardt Soares em nota a p. 312 de "Direito Administrativo" Jean Rivero, traduzido pela L. Almedina, e Ac. do S.T.A. de 4/7/81 in Ac. Dout. do S.T.A. nº 210, p. 1450).

 

 

16. São titulares do direito à indemnização os pais do soldado, devendo a indemnização abranger a perda do direito à vida e, bem assim, os danos não patrimoniais sofridos pelos pais (cf. artº 496º, nº 2, do Código Civil).

 

 

17. Põe-se o problema do valor de indemnização.

 

 

18. A vida humana sendo de valor incalculável, sobretudo para um jovem de 21 anos de idade, não pode valer, a título de danos não patrimoniais, importância inferior a 3.000.000$00.

 

 

19. Penso, assim, que o valor equilibrado da indemnização seria de 9.000 contos, sendo 3.000 contos para ressarcir o direito à vida e 3.000 contos para ressarcir as dores e os desgostos sofridos por cada um dos pais (danos morais) – neste sentido, Acórdãos da Relação de Lisboa de 20/2/90 e 17/3/92 in Col. Jur. de 1990, 1, p. 188 e de

1992, 2, p. 167, e do S.T.J. de 13/5/86, 11/10/89 e 2/2/93 in respectivamente B.M.J. 357 p. 399, 390 p. 124 e Col. Jur. Ac. do S.T.J., 1993, 1, p. 128 .

 

 

20. Acresce que importa assumir uma atitude preventiva, regulamentando em concreto as condições da prática de actividades físicas de grande intensidade em tempo quente e húmido, adoptando uma tabela de graduação de esforço de acordo com as condições de temperatura e humidade, conforme aconselha a Organização Mundial de Saúde.

 

 

Atente-se que normas médicas recomendam até mesmo que as provas de esforço físico de meia maratona (16 Kms) não tenham lugar quando a temperatura de depósito húmido exceda 28º C.

 

 

Tratando-se de treino militar, as equipas médicas de apoio devem dispôr de ambulâncias equipadas com ar condicionado ou outro sistema que permita o rápido arrefecimento do corpo.

 

Crê-se que este tipo de medidas – aliás, já adoptadas em outros países desenvolvidos – contribuirá grandemente para a diminuição de situações como a ocorrida.

 

 

 

 

21. Face ao exposto tenho por bem RECOMENDAR que:

 

 

 

a) O Estado deve pagar aos pais do soldado, uma indemnização de valor não inferior a 9.000.000$00, sendo 3.000.000$00 pela perda do direito à vida e 3.000.000$00 pelos danos morais sofridos por cada um dos pais.

 

b) No momento da selecção dos mancebos deverão realizar-se estudos psicológicos ou sociológicos, em ordem a ter-se

 

c) Nos exercícios físicos praticados deve haver um rigoroso cumprimento do Manual Técnico de Educação Física do Exército.

 

d) Em caso algum pode ser posto em prática um programa de instrução sem aprovação prévia.

 

e) Toda a instrução militar deve ser objecto de fiscalização e inspecção permanente por parte dos Serviços de Educação Física e do Serviços de Saúde.

 

f) A realização de provas físicas do tipo de prova "Marcor" deve ser rodeada das maiores cautelas, sobretudo em dias de condições climatéricas adversas.

 

g) Em dias de grande calor deve mesmo ser impedido o esforço físico intenso e estar disponível sistema de emergência médica que permita um arrefecimento eficaz.

 

 

 

22. Agradeço que me seja comunicado o teor do despacho de V.Exª que recair sobre a Recomendação ora formulada.

 

 

 

 

O PROVEDOR DE JUSTIÇA