Presidente do Conselho Superior da Magistratura

Rec. nº 93A/94
Proc.:R-459/94
Data:1994-05-23
Área:A 1

ASSUNTO:MINORIAS – NOTIFICAÇÃO DE ARGUIDO – ANÚNCIO PUBLICADO EM PERIÓDICO – INDICAÇÃO DA ETNIA DO ARGUIDO – MEDIDAS PROCEDIMENTAIS DISCIPLINARES POR PARTE DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA.

Sequência:Não acatada.

Tenho a honra de me dirigir a Vossa Excelência para envio de uma Recomendação que entendo dever formular ao Conselho Superior da Magistratura, ao abrigo do art. 20º,nº 1, alínea a), do Estatuto do Provedor de Justiça,constante da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, nos seguintes termos:

I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

1. Na edição do jornal “Correio da Manhã” de 16 de Fevereiro de 1994, foi publicado anúncio, por ordem do Meritíssimo Juiz de Direito, José António Mouraz Lopes, do 34 Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, nos termos do art. 335º, nº 4, do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro.

2. A publicação do referido anúncio obedeceu ao desiderato de notificar o arguido para, no prazo de 30 dias a contar da segunda e última publicação do mesmo, se apresentar em juízo, sob pena de ser declarado contumaz, em conformidade com o disposto no nº 1, do art. 3359, do Código de Processo Penal.

3. Passa-se a transcrever o primeiro parágrafo daquele anúncio, cujo teor é o seguinte:

“FAZ-SE SABER QUE por este Tribunal correm seus termos uns autos de processo Comum registados sob o nº 4339/93 da secção 3º Juízo, que Ministério Público move contra o arguido …. , solteiro, maior, nascido a 10/05/1973, em Ovar, filho de …e de … , de raça cigana, com última residência conhecida em Cortegaça, Ovar, por haver cometido o crime de artº 260º do Cód. Penal com refª ao disposto no artº 3º nº 1 cf. fls. “in fine”. da Lei 207/A/75.”

4. O anúncio em questão deve identificar devidamente o arguido, contendo elementos necessários para o efeito, sob pena de ficar prejudicado o fim que determinou a sua publicação (cfr. art. 3359, nºs 4 e 2, do Código de Processo Penal).

Não obstante a exigência de identificação do arguido, não se postula, nem tão pouco se justifica, a alusão à respectiva etnia.
Os elementos pessoais do arguido referidos, designadamente nome, estado civil, maioridade, data e local de nascimento, filiação e residência, são elementos que permitem, por si só, a perfeita identificação do arguido. A referência à etnia é desnecessária e como tal despropositada.

4.1. A este respeito, atente-se no teor de outro anúncio publicado na mesma edição referida em 1., por ordem do mesmo Juíz de Direito, o qual indica a filiação do arguido declarado contumaz, sem fazer qualquer alusão à etnia do arguido ou dos seus progenitores.
” 0 Doutor José António Mouraz Lopes, Juíz de Direito deste Tribunal FAZ SABER QUE por despacho de 10.01.94, proferido nos autos de processo comum registados sob o nº …/90, pendente neste Tribunal, que o Ministério Público move contra o arguido …. , casado, Inspector de Seguros da UAP, nascido a …, filho de … , e … , portador do bilhete de identidade nº … , emitido em … , pelo arquivo de Lisboa, com última residência conhecida na Rua … , ou Rua … , por haver cometido o crime de emissão de cheque sem provisão p.p.
pelo artº 24.º n º 2, c/ do Dec. 13004, de 12 /1/1927, foi o mesmo arguido declarado CONTUMAZ – Artº 336º e 337º, 5 e 6 do CPP.(…)”.

4.2. Outro tanto sucede com a generalidade dos editais e anúncios que, continuamente, são afixados ou publicados ao abrigo do disposto no art. 335º do Código de Processo Penal, sem conterem quaisquer referências étnicas.

4.3. Os próprios documentos de identificação pessoal, nomeadamente o bilhete de identidade, o passaporte e a carta indicam a etnia do seu titular, do pai ou mesmo, nem poderiam conter menção daquele teor, como pode ser, à ocorrência de práticas de condução, não da mãe do propícia, discriminatórias.

5. Importa assim averiguar o alcance da indicação da etnia do arguido, à luz do princípio da igualdade.

5.1. A discriminação praticada é injustificada, porquanto se revela necessária em face da finalidade da publicação em questão e é manifestamente desconforme à ordem de valores consagrada.

O Tribunal encontra-se vinculado a respeitar o princípio da igualdade, ao aplicar o direito ao caso concreto, o que se traduz, não só na aplicação de direito igual a casos idênticos, como na observância de um critério objectivo e razoável de igualdade, no que concerne à margem de livre apreciação, na actividade de concretização do direito.

Sustentou – e bem – a Comissão Constitucional que «as diferenciações de tratamento de situações aparentemente iguais se hão-de justificar, no mínimo, por qualquer fundamento material ou razão de ser que não se apresente arbitrário ou desrazoável, por isto ser contrário à justiça e, portanto, à igualdade, de modo que a legislação, não obstante a margem livre de apreciação que lhe fica para além desse mínimo, não se traduza em impulsos momentâneos ou caprichosos, sem sentido e consequência » (vd. Parecer da Comissão Constitucional nº 14/78, de 4 de Maio de 1978, PCC,
V.78, 1979, p. 109-110).

Idênticas considerações importa tecer quanto à actividade judicial. A aplicação jurídica envolve uma ponderação normativa,na qual ocorre sempre um momento normativamente constitutivo. A concretização há-de ser uma tarefa normativamente orientada e objectivamente fundamentada.

5.2. 0 tratamento diverso de situações idênticas traduz, no caso vertente, um comportamento arbitrário que consubstancia uma violação do princípio da igualdade.

A diferenciação estabelece-se com base numa condição meramente subjectiva – a etnia do arguido -, sendo destituída de fundamento objectivo e razoável.

É pois, desrespeitada uma das cláusulas de não discriminação que o legislador constituinte expressamente instituiu (cfr. art. 13º, nº 2, da Constituição).

Considerando que os ciganos constituem uma raça no sentido constitucional, “por mais complexo que seja o conceito científico desta” (Parecer nº 14/80, de 15 de Maio, da Comissão Constitucional, in PCC, XII, [80], 1982, p.168), a utilização da expressão “raça cigana” implica a violação da proibição constitucional de discriminação fundada na raça.

Aquela utilização atenta contra a idêntica dignidade social de todos os cidadãos que, nos termos do art. 13º, nº 1, da Constituição, e a base constitucional do princípio da igualdade (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, p.126), sendo manifestamente impertinente.

Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual constitui parâmetro de interpretação das normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais, proclama a idêntica dignidade de todos os seres humanos e a igualdade dos indivíduos perante a lei e proíbe as discriminações em função da raça (arts. 1º, 2º e 7º).

II – CONCLUSÕES

De acordo com o exposto, e tendo em vista a atribuição constitucional de pugnar pela prevenção e reparação de injustiças (art. 23º, nº 1, da Constituição), entende o Provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo seu Estatuto (Lei nº 9/91, de 9 de Abril), no art. 20º, nº 1, alínea a), e, como tal, RECOMENDAR:

1º- A adopção, pelo Conselho Superior da Magistratura, das medidas necessárias ao apuramento da responsabilidade disciplinar, nos termos dos arts. 4º, nº 2, e 82º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho.

2º- A adopção pelo mesmo órgão de medidas que previnam a ocorrência de situações semelhantes à descrita, ou seja, a publicação de anúncios, bem como a afixação de editais ou a prática de outros actos da mesma natureza que, em face do respectivo teor, estabeleçam um tratamento diferenciado de um ou mais cidadãos com base em condições meramente subjectivas, violando o disposto no art. 13º, nº 2, da Constituição e nos arts. 2º e 7º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

0 PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL