Ministro da Administração Interna

Rec. nº 133/A/94
Proc.: R-2248/94
Data: 1994-08-16
Área: A6

Assunto: ESTRANGEIROS – PROCESSO DE EXPULSÃO DO TERRITÓRIO NACIONAL – PERDA DE NACIONALIDADE – USURPAÇÃO DE PODERES – ARQUIVAMENTO DO PROCESSO DE EXPULSÃO

Sequência: Acatada

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

– DOS FACTOS –

1. Deu entrada nesta Provedoria uma reclamação apresentada pelo Senhor A. … tendo por objecto o procedimento de expulsão do território nacional, o qual corre os seus termos no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

2. O Senhor A. … nasceu em 15 de Fevereiro de 1969 na freguesia de Santa Catarina, Ilha de Santiago, arquipélago de Cabo Verde, à data, território nacional.

3. O interessado, ora reclamante, veio a perder a nacionalidade portuguesa, por força das disposições contidas no Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de Junho, hoje revogado pela Lei nº 113/88, de 29 de Dezembro.

4. A sua entrada no território português foi feita na qualidade de cidadão caboverdeano, na altura, menor, acompanhado de seus pais e irmãos, o que se processou de forma legal, com a apresentação, para o efeito, do passaporte dos progenitores.

5. Com a idade de 16 anos obteve autorização de residência própria, emitida em 11 de Agosto de 1987 com a validade de um ano.

6. Caducada a autorização de residência acima mencionada, pelo decurso do prazo nela estabelecido, não foi possível ao interessado obter a renovação da mesma, dado o facto de se encontrar desempregado no momento, não podendo satisfazer o requisito previsto na alínea b), do artigo 32º, do Decreto-Lei nº 264-B/81, de 3 de Setembro, então em vigor.

7. Nesse mesmo ano de 1988 passou o reclamante a viver em união de facto com a cidadã portuguesa, T. … . Dessa união veio a nascer o P. …, filho de ambos, em Agosto de 1989. Com o casal vive ainda um filho de T. …, a quem o reclamante trata como seu próprio filho.

8. O Senhor A. … tem exercido a profissão de pedreiro, trabalhando a sua companheira como empregada doméstica, revertendo os proventos de ambos para o sustento da família.

9. No ano de 1992, foi concedida a nacionalidade portuguesa aos pais do reclamante, A. … e P. …, por despacho de 03.11.92, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Novembro de 1992.

10. Os irmãos do reclamante, todos menores àquela data, adquiriram igualmente a nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 2º da Lei da Nacionalidade Portuguesa, aprovada pela Lei nº 37/81, de 3 de Outubro.

11. Não beneficiou o reclamante da disposição legal acima invocada, pelo facto de ter atingido a maioridade à data dos factos relatados nos pontos 9 e 10 da presente Recomendação.

12. Pretendeu o interessado obter a autorização de residência em território nacional, de modo a regularizar a sua situação.
Esse pedido foi indeferido, conforme notificação de 18 de Outubro de 1993.

13. Atente-se que, tendo sido formulado o mencionado pedido no ano de 1992, o mesmo deveria ter sido analisado à luz das disposições contidas no Decreto-Lei nº 212/92, de 12 de Outubro, o qual visava regularizar, em termos excepcionais, a situação dos imigrantes clandestinos, prevendo-se, até, a sua aplicação “aos processos de autorização de residência pendentes nos serviços do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras” (cfr. artigo 10º do Decreto-Lei nº 212/92, de 12 de Outubro).

14. 0 desconhecimento do conteúdo da decisão refenciada, bem como do seu autor e respectivos fundamentos, motivaram a exposição dirigida a Vossa Excelência, em 29 de Outubro de 1993.

15. Em 14 de Julho de 1994, o requerente recebeu em sua casa um postal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no qual era solicitada a sua comparência, nesse mesmo dia, para “tomar conhecimento do recurso apresentado ao Exmo. Senhor Ministro da Administração Interna em 29.10.93, para o efeito deverá fazer-se acompanhar dos seus documentos pessoais”.

16. No dia imediatamente seguinte, a representante legal do reclamante dirigiu-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tendo-lhe sido comunicado que se pretendia efectuar a detenção do requerente, nos termos do artigo 84º do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março.

17. Foi igualmente na pessoa da sua representante legal, na data de 26 de Julho pp., que o reclamante foi notificado para comparecer no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no dia 28 de Julho, o que se funda no Despacho de Sua Excelência, o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, de 10. 05.94, nos termos do qual é determinada a organização de um processo de expulsão contra o interessado por se encontrar em situação irregular.

18. A não comparência do interessado no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no passado dia 28 de Julho foi devidamente justificada por razões de saúde, segundo informação prestada pelo próprio Serviço a este órgão do Estado.

19. De qualquer forma, o procedimento de expulsão ora iniciado contra o Senhor A. … é um procedimento administrativo, previsto e regulado nos artigos 84º e seguintes do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, facto contra o qual se insurge o reclamante, motivando o pedido de intervenção a mim dirigido.

20. Estando em causa a legitimidade da instauração de um procedimento administrativo de expulsão no caso vertente, foi solicitado a Vossa Excelência que se dignasse suspender o mesmo, por se entender o assunto merecedor de uma mais cuidada ponderação, conforme Ofício nº …, de 29 de Julho de 1994.

21. Nesses termos, passo a analisar as razões de direito que subjazem o pedido de intervenção deste órgão do Estado.

(B)
– DO DIREITO –

22. O regime de entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros do território nacional está hoje contido no já citado Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, nos termos da autorização legislativa da Assembleia da República expressa na Lei nº 13/92, de 23 de Julho.

23. Nos termos das alíneas d) e e) do artigo 2º da Lei de autorização, prevêem-se dois procedimentos distintos de expulsão dos estrangeiros do território português – o judicial e o administrativo.

24. A delimitação legal da competência dos órgãos judiciais e administrativos na matéria sempre teria que respeitar a imposição constitucional no sentido da obrigatoriedade da determinação judicial da expulsão nos casos em que se verifique que o expulsando “tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, (…) tenha obtido autorização de residência, ou (…) tenha apresentado pedido de asilo não recusado”, como dita o nº 5, do artigo 33º, da Constituição da República Portuguesa.

25. São estas mesmas situações contempladas nas três alíneas do artigo 76º do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, para além dos casos em que a expulsão revista a natureza de pena acessória, completando-se assim o leque de situações que exigem a determinação judicial e respeitando-se o imperativo constitucional acima mencionado.

26. No caso em análise verifica-se que o interessado não só entrou legal e regularmente em Portugal, como obteve autorização de residência própria, hoje caducada.

27. Acontece que os requisitos previstos no já citado artigo 76º são de aplicação alternativa e não cumulativa, bastando a verificação de um deles para poder exigir-se um processo judicial de expulsão.

28. O Senhor A. … respeita dois dos requisitos legalmente fixados, não me parecendo sequer passível de dúvida a escolha do processo judicial de expulsão, caso se entenda esta necessária, o que também não me parece ser o caso.

29. Independentemente da questão da bondade de uma eventual decisão de expulsão do cidadão A. … – e eu permito-me aqui sumariar uma série de razões que apontam no sentido da sua integração na comunidade nacional: o facto de falar a língua portuguesa; a circunstância de todos os membros da sua família serem portugueses, incluindo aqui a sua companheira, com quem deseja casar, e o seu filho menor, naturalmente, estando em causa o fundamental direito de constituir família; a sua situação económica, que lhe permite sustentar os que dele dependem e a não verificação de qualquer outro motivo de expulsão que não o da irregularidade da sua permanência em território nacional, o que é sanável por outros meios, por diversas vezes solicitados (embora negados) – não poderia nunca a mesma decisão ser determinada por autoridade administrativa.

30. A autonomia dos requisitos do acima mencionado artigo 76º é notória. Assim não se invoque o facto de a autorização de residência concedida ao interessado ter caducado em 11.08.88, pois a lei não exige que a mesma se encontre em vigor à data da decisão de expulsão. De outro modo, não se compreenderia o requisito da permanência regular em Portugal (cfr. alínea a), in fine da disposição citada), por redundância.

31. Insista-se igualmente na autonomia dos dois critérios contidos na alínea a), do artigo 76º, do Decreto-Lei nº 59/93. Como já foi dito, bastaria a verificação de um deles para aplicação da norma legal em apreço, como é o caso.

32. Duvidosa é a formulação legal do nº 1, do artigo 84º, do mesmo Decreto-Lei, quando prevê a possibilidade de expulsão determinada por autoridade administrativa no caso de “estrangeiro que penetre ou permaneça ilegalmente em território nacional”.

33. Entendida literalmente, esta disposição legal legitimaria a actuação administrativa no presente caso, pois o Senhor A. …, não obstante ter entrado legalmente em Portugal, não tem actualmente a sua situação regularizada perante as autoridades portuguesas. A alternância dos critérios sugere que a verificação de um deles é suficiente para se proceder administrativamente à expulsão de um cidadão estrangeiro.

34. Ora acontece que, assim entendida, esta disposição colide frontalmente com a aplicação dos critérios enunciados no artigo 76º, acima citado. Com efeito, no caso vertente concluiríamos pela legitimidade de aplicação de um ou outro procedimento de expulsão, o que é absurdo, pois quer a Lei, quer a Constituição, procuram definir e garantir, para certos casos, a intervenção de um tribunal.

35. Assim – e a epígrafe do artigo 84º do Decreto-Lei nº 59/93 vai nesse mesmo sentido – a aplicação da disposição legal ora citada só tem razão de ser nos casos em que se verifiquem cumulativamente as situações de entrada ilegal e permanência ilegal.

36. São, pois, considerações de ordem sistemática que afastam a aplicação do artigo 84º na situação em análise. Acresce que podemos aqui invocar as relações estabelecidas entre norma de carácter especial e norma de carácter geral. Parece-nos que as normas contidas no artigo 76º do diploma sempre invocado revestem-se de natureza especial, pois definem com clareza as situações abrangidas pelo seu dispositivo, enquanto a norma do artigo 84º do mesmo diploma é aplicável às situações não especialmente definidas na outra disposição e para as quais não entendeu o legislador afigurarem casos merecedores de uma maior tutela da ordem jurídica.

37. Não posso deixar de concluir que a instauração de um procedimento administrativo de expulsão no caso do Senhor A. … constituiria um exemplo do grave vício da usurpação de poderes, pois tal acarretaria a ingerência naquilo que a Constituição e a Lei reservaram ao Poder Judicial, à luz do princípio da separação dos poderes e funções do Estado.

II
CONCLUSÕES

De acordo com o que ficou exposto e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (artigo 23º, nº 1, CRP), entendo fazer uso dos poderes que me são confiados pelo Estatuto, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, no seu artigo 20º, nº 1, alínea a) e, como tal,

RECOMENDAR:

O arquivamento do procedimento administrativo de expulsão do Senhor A. …, nos termos da competência conferida pelo nº 2, do artigo 70º do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março.

Recordo a Vossa Excelência, por fim, ser a presente Recomendação formulada nos termos do art. 20º, nº 1, al. a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, vinculando, como tal, à estrita observância dos deveres contidos no art. 38º, nºs 2 e 3, do mesmo diploma. Permito-me, de resto, sugerir a Vossa Excelência que me mantenha informado sobre a evolução do procedimento dentro dos próximos quinze dias (cfr. art. 29º, nº 4, idem).

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel