Exm.º Senhor
General Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana

Rec. n.º 213A/93
Proc.: R-1947/92
Data: 1993-12-17
Área: A 5

ASSUNTO: SEGURANÇA INTERNA – ACTUAÇÃO POLICIAL – GNR – ABUSO DE PODER – ARGUIDOS DETIDOS.

Sequência: Sem resposta

1- 0 presente processo teve origem numa certidão extraída de uns autos de interrogatório de arguidos lavrados no 1.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.

2- Da referida certidão consta um despacho da Meritíssima Juíza de Direito, onde se refere que:
“Os arguidos deram entrada no Tribunal com os pulsos amarrados com cordas e os sapatos presos um ao outro com os respectivos atacadores, o que os impedia de andar, fazendo a sua deslocação através de pequenos saltos.
Os seus punhos estavam vermelhos e marcados com traços das cordas que os envolviam”.

3- Ouvido sobre o caso, esse Comando Geral pôs em dúvida que a Mer.ª Juíza tenha constatado pessoalmente a situação por si relatada, alegando ainda ser de presumir que no momento da entrada no Tribunal os detidos já se encontravam libertos de mãos e pés.

Por outro lado, justifica o condicionalismo das detenções com algemas (e não com cordas) e com a utilização dos atacadores, por se tratar de detidos de índole não conformista à detenção e que envidaram várias tentativas de fuga.

4- Para as conclusões a que chegou louvou-se esse Comando Geral em averiguações levadas a cabo pela Brigada de Trânsito.

5- Afasto liminarmente as presunções que serviram de suporte à apreciação do caso feito por esse Comando Geral.

6- É que, por um lado, tais presunções assentaram seguramente nas afirmações dos soldados da GNR a quem são imputados os factos, quando, do outro lado, temos a versão de uma entidade por natureza isenta e imparcial que terá constatado toda a situação (como decorre da forma expressiva como é relatado todo o circunstancionalismo de facto).

7- Tenho, assim, como assente o relato factual feito pela Mer.ª Juíza do 1.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.

8- E, tendo em conta a situação de facto existente no momento da entrada dos detidos no Tribunal, isto é, a situação decorrente dos pulsos atados com cordas e dos sapatos ligados pelos atacadores, o que impedia um andamento normal, poder-se-á aceitar tal quadro à luz das razões de segurança invocadas por esse Comando Geral?
É evidente que não.

9- É aceitável que, no momento da detenção de cidadãos tidos como perigosos, se usem os meios adequados à sua neutralização.

10- Todavia, nada parece justificar que o quadro da detenção se mantenha sempre na condução (salvo casos especiais) e que sobretudo se não altere no momento da apresentação em Tribunal.

É que entretanto os meios humanos necessários à vigilância dos detidos poderão ser reforçados, fazendo-se os mesmos acompanhar de armas ou outros dispositivos adequados para conter os presos em respeito e sob custódia.

11- Tenho, assim, para mim que a apresentação em Tribunal de detidos aos saltos, como se se tratasse de animais, constitui uma prática atentatória da integridade moral dos cidadãos.

De resto, a pessoa humana deve ser tratada com toda a dignidade mesmo na situação de privações de liberdade.

12- Desde há muito que no mundo ocidental estão interditos os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos (cfr. Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 16.12.1966, artigos 7.º e 10.º, convenção esta aprovada por Portugal através da Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais de 4.11.1950, art.º 3.º, aprovada por Portugal através da Lei 65/78, de 13 de Outubro, Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 5.º, aplicável no nosso país por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e Convenção Europeia, de 26.11.87, para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, essa relação às pessoas privadas de liberdade).

13- Os tratamentos degradantes ou desumanos estão, outrossim, proibidos pela nossa lei fundamental (cfr. artigos 9.º e 25.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

14- Nestes termos, tenho por bem:

A- Formular RECOMENDAÇÃO a V.Exª. no sentido de os militares da GNR rodearem a condução dos detidos e a sua apresentação em Tribunal de cautelas e circunstâncias que privilegiem o tratamento humano e digno dos prisioneiros, evitando todo e qualquer comportamento degradante ou desumano;
B- Formular Recomendação a V.Exª. para que seja elaborado, no que toca ao actual caso concreto, inquérito rigoroso e formal (com audição de todos os intervenientes e de pessoas que estes indicarem, bem como com tomada de declarações, no respectivo Tribunal, às Exmªs. Juíza e Magistrada do Ministério Público no 1.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa), em ordem à determinação precisa dos factos e à eventual imputação de responsabilidade penal ou disciplinar.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL