Presidente da Junta de Freguesia de Santo Estevão das Galés
Número:58/A/97
Processo:R-2826/88
Data:21.07.1997
Área: A1

Assunto:DOMÍNIO PÚBLICO – CAMINHO PÚBLICO – PROPRIEDADE PRIVADA – DELIMITAÇÃO – ACÇÃO JUDICIAL – DECRETO-LEI N.º 100/84, DE 29 DE MARÇO.

Sequência:Não Acatada.

I-Exposição de Motivos

Dos Elementos Recolhidos na Instrução

Foi apresentada na Provedoria de Justiça, pela população do lugar de Santa Eulália, freguesia de Santo Estevão das Galés, concelho de Mafra, queixa relativa à alegada ocupação de terreno do leito de dois caminhos públicos, pela proprietária de um prédio rústico com eles confinante.

1. De acordo com os factos articulados, a Sr.ª… terá praticado actos de ocupação e apropriação de dois caminhos públicos sitos em Santa Eulália, comummente denominados por “Azinhaga da Camponesa” e “Azinhaga do Ferrador”, no período compreendido entre os anos de 1983 e 1986. A proprietária confinante procedeu à execução de trabalhos de prolongamento do muro que demarcava o seu terreno, barrando transversalmente a Azinhaga da Camponesa, caminho sito a Poente do seu prédio. Os vizinhos derrubaram a extensão do muro edificada sobre o terreno afecto ao trânsito público, repondo, dessa forma, a situação inicial. Subsequentemente, procedeu a Sr.ª… à destruição integral do muro de pedra solta confinante, integrando, assim, a anterior travessia, cujos traços se diluíram, no seu imóvel. Do mesmo modo, foi erguido muro de vedação, tendo em vista a definição dos novos limites do terreno particular. Ordenou a Sr.ª…, alguns meses volvidos, a destruição do muro e a edificação de outra vedação, em ordem ao novo alargamento do seu domínio, pela apropriação de um outro caminho público, perpendicular ao primeiro, sito a Sul da sua propriedade, designado por “Azinhaga do Ferrador”, obras essas que foram suspensas por intervenção da população e do Exm.º Presidente da Junta de Freguesia de Santo Estevão das Galés.

2. Para apreciação da queixa formulada, foram desencadeadas diligências diversas destinadas a conhecer qual a posição assumida pela Câmara Municipal de Mafra e pela Junta de Freguesia de Santo Estevão das Galés, tendo, ainda, a Sr.ª… entendido prestar depoimento acerca do assunto.
2.1. A Junta de Freguesia de Santo Estevão das Galés declarou não possuir quaisquer responsabilidades na criação da situação reclamada, nem na sua resolução. Sustentou ter a Câmara Municipal de Mafra permutado terrenos com a proprietária confinante, negócio que permitiu o alargamento de estrada municipal que estabelece a ligação entre Santa Eulália e a Malveira.
Sobre o assunto, jamais pediu o município parecer ou esclarecimento à Junta de Freguesia. Os trabalhos reclamados mereceram a anuência da Câmara Municipal.
Os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz predial sob os arts. 151, por um lado, e 145 e 331, por outro, foram separados por um caminho público. No seu novo traçado, a estrada municipal n.º 539 atravessa os prédios rústicos inscritos sob os arts. 151 e 331.
A Sr.ª… destruiu o muro de pedra solta sito entre o seu prédio e o aludido caminho público, a poente do actual traçado da EM 539 e murou, parcialmente, aquela fracção com parede de tijolo. Iniciou, do mesmo modo, a erecção de muro no caminho, não tendo aquela obra, contudo, atingido o seu termo em razão da oposição exercida pela população de Santa Eulália. A saída do caminho para a estrada municipal n.º 539 encontra-se obstruída por parede de tijolo, sendo o acesso à via efectuado por travessia do prédio supra identificado. A Sul do prédio inscrito sob o artigo n.º 331, situa-se outro caminho, outrora dele demarcado por parede de pedra solta, destruída pela Sr.ª…, com o consequente desvanecimento dos limites daquela via de comunicação. Tanto a “Azinhaga do Ferrador” como, bem assim, a “Azinhaga da Camponesa” constituem caminhos públicos e não integram o domínio municipal.
2.2. A Câmara Municipal de Mafra informou ter ocupado uma faixa de terreno propriedade da Sr.ª… mediante a abertura de estrada municipal, no decurso do ano de 1984. Prestou à munícipe, a título de indemnização, materiais, cujo valor estima em Esc. 42.000$00, para construção de muro de vedação, consoante deliberação de 24.4.1985. Perante a oposição exercida pelos moradores, foi apresentada pela proprietária documentação comprovativa de que por despacho judicial lhe foi restituída a posse provisória da propriedade onde foi construída a vedação. Em reunião de 18.12.1985, deliberou a Câmara Municipal permutar terreno considerado municipal, com a área de 65 m2, contíguo à propriedade da Sr.ª…, com parcela de terreno por ela cedido para construção da estrada municipal com a área de 582 m2. No entanto, não foi celebrada a respectiva escritura de permuta. O terreno municipal a permutar não integra o domínio público, nem é assinalado em carta topográfica do concelho. Sustenta a Câmara Municipal de Mafra que “muitas vezes e nas zonas rurais difícil é distinguir uma servidão ou um atravessadouro de um caminho público e este de terreno baldio que, entretanto, por prescrição se tornou propriedade privada do Município e por vezes até de particulares”. Mais afirma que: “Os moradores com todo o seu entusiasmo e porque julgam defender os interesses da população lutam contra o uso por particulares dessas nesgas de terreno, embora não haja qualquer título que justifique o carácter público ou não dessas áreas. Nesta situação, a Câmara Municipal limitou-se a não fazer a escritura de permuta e a notificar a proprietária em causa a não efectuar quaisquer obras no local. Espera e deseja a Câmara Municipal que a questão seja solucionada em termos definitivos, o que só com a intervenção dos tribunais, ao que se julga, poderá concretizar?se” (ofício de 25.10.1989). Em 4 de Janeiro de 1990 informou a Câmara Municipal de Mafra que “não obstante o tempo decorrido, até hoje não foi possível encontrar uma solução extra-judicial que ponha termo à situação criada. Crê-se, assim, que a resolução do assunto passará pela intervenção do Tribunal para se definir quanto à dominiabilidade da nesga de terreno que serve de fundamentação à reclamação (…). Dado existir um certo apaziguamento em relação à questão, esta Câmara entende ser prudente e aconselhável não interpor ela própria qualquer acção judicial, aguardando-se que o reclamante ou outro eventual lesado o façam. Entretanto, a propriedade desse terreno continua a ser do Município que a não transmitiu a quem quer que fosse.” Em 17.07.1991 foi remetida à Provedoria de Justiça a informação do Instituto Geográfico e Cadastral, em anexo reproduzida, nos termos da qual não se encontra assinalado no acervo de documentos que compõem o arquivo do Instituto qualquer caminho ou servidão que atravesse o prédio rústico inscrito sob o artigo 331. Em vistoria camarária ordenada por despacho de 30.12.1991, foi verificado existir no limite sudoeste daquele prédio, um caminho afecto ao trânsito de pessoas, com limites laterais definidos. Acresce ter-se apurado existirem vestígios pronunciados da existência de trânsito de pessoas no sentido Nascente/Poente do dito prédio. Por fim, em 19.3.1993, esclareceu o município não terem sido obtidos mais elementos que permitam aferir da existência de um segundo caminho, não possuindo a Câmara Municipal dados que a habilitem a tomar posição sobre o assunto.
2.3. A Sr.ª…, em depoimento prestado a este Órgão do Estado em 15 de Julho de 1997, declarou ser proprietária do prédio rústico denominado “A Cuca”, sito no lugar de Santa Eulália, composto de cultura arvense e prado natural, com a área de 8.500 m2, a confrontar, a Norte, com F. P., a Nascente com F. R., a Poente com caminho, e a Sul, com M. P., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 28537, a fls. 128 v do Livro B-76 e inscrito na matriz cadastral sob o art. 331, secção D. Em 5 de Julho de 1948 foi o prédio atravessado pela estrada municipal n.º 539, a qual ocupou uma área correspondente a 528 m2 do terreno. Acordou a declarante com a Câmara Municipal de Mafra, a título de compensação, a integração do caminho sito a Poente, na seu terreno, o qual, passaria, desse modo, a confrontar directamente com prédio urbano de A. R. Deparou a Sr.ª…, ao proceder à execução do acordo, com a oposição de elementos da população. Alega a declarante ter requerido licença municipal para construção de muros de vedação da sua propriedade, no local onde se situaram, outrora, os muros de pedra solta, com respeito pela área do caminho público e pela configuração inicial do seu prédio. Mais sustenta que o dito caminho que denomina de “Azinhaga”, não se encontra afecto à circulação pedonal desde a data da abertura da estrada municipal que estabelece a ligação entre Santa Eulália e Negrais e que, no âmbito do processo camarário n.º 433-1092-RD, cuja abertura foi desencadeada no ano de 1992, terá apresentado elementos comprovativos de que a Azinhaga foi ocupada por barrancos e arrecadações. Nega a existência de um segundo caminho de pé posto ou de serventia na extrema poente do seu prédio.

Da Apreciação

Não permitem os elementos recolhidos no âmbito da instrução do processo concluir com segurança sobre a natureza dos caminhos invocados pelos reclamantes (pública ou privada) e sua dominialidade (paroquial ou municipal). Nem se pronunciaram as autoridades administrativas acerca das circunstâncias que, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, relevam para a caracterização de um caminho como público, em particular a sua afectação, desde tempos imemoriais, ao uso directo e imediato do público e a respectiva apropriação e administração por parte de pessoa colectiva de direito público. Entende a Câmara Municipal de Mafra que o caminho denominado “Azinhaga do Ferrador” integra o domínio privado do município. A respeito da “Azinhaga da Camponesa”, não toma o município posição sobre a existência do caminho. Em sentido concordante com aquele Órgão autárquico, nega a Sr.ª… a existência de um segundo caminho de pé posto na extrema do seu prédio (a “Azinhaga da Camponesa”). Declara expressamente confrontar o prédio rústico denominado “A Cuca”, a poente, com caminho (a “Azinhaga do Ferrador”), cuja existência foi, de resto, observada pelos serviços municipais em vistoria promovida ao local, e ter acordado com a Câmara Municipal a integração do mesmo no seu terreno. A Câmara Municipal de Mafra considera que o assunto não poderá ser resolvido sem recurso à via judicial, mantendo-se, no entanto renitente em desencadear os mecanismos adequados. Absteve-se aquele Órgão, perante as reclamações apresentadas, de celebrar escritura de permuta, e notificou a dona do terreno a não efectuar quaisquer obras no local, remetendo para a iniciativa dos munícipes interessados a interposição de acção judicial tendente à definição jurídica da situação e à reintegração da legalidade violada. No entanto, posteriormente a tal notificação, terá a proprietária construído no terreno armazém de alfaias agrícolas, segundo informação facultada pelos reclamantes. A população de Santa Eulália e a Junta de Freguesia de Santo Eulália são unânimes na afirmação da publicidade dos caminhos e da prática de actos de ocupação dos mesmos por parte da proprietária do terreno confinante, com lesão do fim de interesse público daquelas vias de comunicação. De resto, o caminho afecto ao trânsito de pessoas, de limites laterais bem definidos, identificado pelos técnicos dos serviços camarários parece corresponder, ao que tudo indica, ao troço da propriedade da Sr.ª…, utilizado, após a obstrução do acesso à estrada municipal n.º 539, pela erecção de parede de tijolo, como travessia, pelos proprietários dos prédios vizinhos. A Junta de Freguesia de Santo Estevão das Galés afirma a publicidade dos dois caminhos, considerando que os mesmos se encontram sobre a alçada da jurisdição da freguesia enquanto caminhos vicinais, muito embora não se proponha desenvolver esforços extra-judiciais nem, tão pouco, diligenciar junto das instâncias judiciais competentes no sentido de repor a situação inicial à respectiva ocupação e restabelecer o uso pelo público. A actual situação de indefinição a respeito de ligações de interesse local, pode comprometer a regular prossecução do interesse público. Com efeito, a verificar-se a natureza pública de caminho, independentemente do seu carácter municipal ou vicinal, reclama aquele interesse que sejam tomadas as medidas necessárias para defesa da utilidade pública do terreno. Cumpre, pois, exercer o direito de acção a fim de obter decisão jurisdicional que defina a natureza e a propriedade dos dois caminhos, sob pena de não ser possível aferir sobre o prejuízo dos interesses próprios e específicos da população. Assim o impõe, também, a prossecução da atribuição cometida à freguesia no sentido de prover pela administração de bens sob a sua jurisdição. A lei confiou à Junta de Freguesia o poder de instaurar pleitos e neles confessar desistir ou transigir, competindo ao Presidente daquele órgão a representação da freguesia em juízo (v.d. art. 27.º, n.º 1, al. e) e art. 28.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março). A autarquia local é livre de escolher para a representar em juízo ou o Ministério Público ou quem esteja habilitado a exercer o patrocínio judiciário, como o é para revogar o mandato judicial conferido a um advogado, transferindo a sua representação para o Ministério Público e vice-versa. Entre as competências do Ministério Público contam-se a representação das autarquias locais, possuindo o Ministério Público intervenção principal nos procedimentos judiciais quando mandatado por autarquia local ou, nos demais casos, intervenção acessória, nos termos estabelecidos na lei processual (art. 3.º, al. a) e arts. 5.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, al. a) da Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro). A este respeito, sustenta o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, no parecer proferido no âmbito do processo n.º 169/80, livro n.º 62, publicado no D.R. 2.ª série, n.º 188, de 18.8.1981, e homologado por despacho de Sua Excelência o Ministro da Administração Interna de 6 de Março de 1981, que “o art. 368.º do Código Administrativo, norma que não foi expressamente revogada pelo art. 114.º da Lei n.º 79/77, atribui competência ao Ministério Público para propor ou seguir, como parte principal, as acções em que estiverem em causa interesses dos corpos administrativos”. Nem há razões que permitam inferir a sua tácita revogação pela lei das autarquias locais. O reforço autonómico que a Constituição consagrou para o poder local e que a lei das autarquias locais (Lei n.º 79/77) e a Lei das Finanças Locais (Lei n.º 1/79, de 2 de Janeiro) vieram desenvolver, esforçando-se por concretizar uma efectiva “descentralização administrativa”, não prejudica que a representação dos entes autárquicos em juízo possa ser feita pelo Ministério Público. Este intervirá apenas quando as autarquias locais, através dos seus órgãos próprios, assim o deliberarem.

De acordo com a motivação exposta,RECOMENDO:

Que, no uso da competência prevista no art. 27.º, n.º1, al. e), do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, se digne instaurar acção judicial destinada a obter decisão sobre a natureza dos caminhos designados por “Azinhaga do Ferrador” e “Azinhaga da Camponesa” e sua titularidade, mandatando para o efeito advogado, ou, em alternativa, confiando a sua representação ao Ministério Público. Concomitantemente, deverá a Junta de Freguesia requerer na petição inicial que, a concluir-se pela natureza pública de qualquer um ou dois caminhos, seja a Sr.ª… condenada a desocupar o respectivo terreno, promovendo a demolição dos muros erigidos com violação dos seus limites, de modo a que seja restabelecida a circulação pelo público.
Parece-me tempo de resolver esta questão controvertida e apenas os Tribunais se mostram competentes para o fazer em definitivo. A solução mais justa que ao Provedor de Justiça cumpre recomendar é, no caso presente, a de sugerir à Junta de Freguesia que promova o exercício da acção judicial sem a qual sempre cada uma das posições será contestada.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel