Governador Civil do Distrito de Leiria
Processo:R-2056/95
Número:66/A/96
Data:18.07.1996
Área:A1

Assunto:AMBIENTE – RUÍDO – BAR – DISCOTECA – ESTABELECIMENTO SIMILARES – HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO – PODERES DE POLÍCIA – COMPETÊNCIA – IRRENUNCIABILIDADE.

Sequência:Acatada

1. O Provedor de Justiça recebeu uma reclamação relativa ao funcionamento do estabelecimento similar de hotelaria … .

2. A queixa referia que o estabelecimento, inicialmente licenciado para funcionar até às 00,00 horas, passou a dispor de licença de funcionamento até às 02,00 horas; e que este facto, ao qual acrescia a ausência de mecanismos de insonorização, era causador de grande incomodidade pelos níveis de ruído produzido e pelas vibrações provenientes da aparelhagem de som.

3. Face ao teor da reclamação, e atendendo ao disposto no Regulamento Geral sobre o Ruído, designadamente no seu art.º 33.º, entendi dever solicitar a V.ª Ex.ª a realização de um exame acústico para determinar o nível de emissão de ruído verificado na habitação do reclamante.

4. Pedi, ainda no mesmo ofício, que V.ª Ex.ª me informasse em que data fora emitido o alvará de licença de funcionamento do estabelecimento, bem como qual o horário de abertura previsto.

5. Por ofício de 6 de Outubro de 1995, o Governo Civil do Distrito de Leiria veio prestar os esclarecimentos solicitados, tendo tecido considerações várias sobre o horário do estabelecimento referido, o Regulamento Municipal de Caldas da Rainha, as medições de ruído para apuramento de eventual violação do limite legal e a realização por entidades oficiais dos testes acústicos. Foi, mais do que a situação reclamada, o conteúdo da resposta desse Governo Civil que motivou a presente Recomendação.

I-Exposição de Motivos

6. No dia 1 de Janeiro de 1988, entrou em vigor o Regulamento Geral sobre o Ruído, o qual foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho.

7. O art.º 20.º, integrado no capítulo relativo às actividades ruidosas, definia os requisitos a que deveria obedecer o licenciamento dos locais destinados a espectáculos, diversões e outras actividades ruidosas.

8. O limite sonoro máximo permitido era de 10 dB, uma vez que, nos termos da alínea a) deste art.º 20.º, a diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente, corrigido do ruído proveniente dos locais em questão, e o valor do nível sonoro do ruído de fundo, que é excedido, num período de referência, em 95% da duração deste (L95), deve ser inferior ou igual aquele valor.

9. Por outro lado, a realização de espectáculos ao ar livre, em tendas ou instalações provisórias, fixas ou móveis, deveria, nos termos do art.º 21.º, obedecer ao disposto no art.º 20.º.

10. O Decreto-Lei n.º 292/89, de 2 de Setembro, veio alterar a redacção, entre outros, dos art.ºs 20.º e 21.º, deixando inalterado o limite de 10 dB.

11. Não obstante, a nova redacção do n.º 2 do art.º 20.º introduziu uma presunção juris tantum, nos termos da qual a licença ou a imposição de condicionalismos para a realização de espectáculos, diversões ou quaisquer actividades ruidosas presume-se concedida sob condição de respeito por aquele limite.

12. O art.º 21.º, dispondo, como na anterior redacção, sobre espectáculos e actividades que não carecem de prévio licenciamento, alargou, no entanto, a natureza dos seus condicionamentos. Nestes termos, só deve ser autorizada a realização de espectáculos e actividades nas proximidades de edifícios de habitação, escolares, hospitalares ou similares e de estabelecimentos hoteleiros e meios complementares de alojamento, quando:

a) Seja respeitado o limite sonoro máximo de 10 dB (A);
b) Ocorra a sua suspensão
– entre as 22,00 e as 8,00 horas do dia seguinte, de domingo a quinta-feira;
– entre as 24,00 e as 8,00 horas do dia seguinte, à sexta-feira, ao sábado e nas vésperas de dias feriados.

13. Excepcionalmente, pode ser autorizado (pelo Governador Civil) o funcionamento ou o exercício contínuo dos espectáculos ou das actividades ruidosas, por ocasião dos festejos tradicionais das localidades, salvo a proximidade de edifícios hospitalares ou similares.

14. O n.º 3 do art.º 20.º – a que correspondia o anterior n.º 2 – determina que incumbe às entidades competentes para o licenciamento ou autorização, ouvidas as entidades fiscalizadoras, a imposição, expressamente e a título excepcional, dos condicionamentos tendentes ao cumprimento das imposições do Regulamento Geral sobre o Ruído.

15. O art.º 33.º do Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho, dispõe sobre a competência para fiscalizar o cumprimento das disposições do Regulamento. Primeiramente, a atribuição foi feita às autoridades policiais e às entidades com superintendência técnica em cada sector; após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 292/89, para além destas entidades, a competência foi estendida ao director regional do ambiente e recursos naturais da comissão de coordenação regional respectiva.

16. O n.º 3 do art.º 21.º – totalmente inovador em relação à redacção inicial do Decreto-Lei n.º 251/87 – impõe a suspensão imediata, pela intervenção da autoridade policial, oficiosamente ou a pedido de qualquer interessado, dos espectáculos ou das actividades que produzam ruído a níveis superiores a 10 dB (A), ou dos que se realizem entre as 22,00 e as 8,00 horas, nos domingos, terças-feiras, quartas-feiras e quintas-feiras, ou entre as 24,00 e as 8,00 horas, às sextas-feiras, sábados e vésperas dos dias feriados.

17. Os poderes de fiscalização incluem, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 33.º, a realização de vistorias e ensaios julgados pertinentes.

18. Constituem contra-ordenações, nos termos do disposto no art.º 36.º, as infracções ao preceituado, entre outros, no n.º 4 do art.º 20.º (violação das condições de licenciamento) e n.ºs 1 e 2 do art.º 21.º (realização de espectáculos ou actividades produzindo ruído a níveis superiores a 10 dB (A), depois das 22,00, nos domingos, terças-feiras, quartas-feiras e quintas-feiras, ou depois das 24,00, às sextas-feiras, sábados e vésperas dos dias feriados).

19. O processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas competem às entidades com superintendência técnica em cada sector (determinada em razão da matéria), ao director regional do ambiente e dos recursos naturais e às autoridades sanitárias concelhias ou distritais (cfr. art.º 37.º).

20. Nos termos do Decreto-Lei n.º 252/92, de 19 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro, diploma que define o estatuto e a competência dos governadores civis, compete a estes assegurar a ordem e a segurança públicas na área do respectivo distrito [Cfr. art.º 2.º e art.º 4.º, n.º 3, al. a)].

21. Ao Governador Civil, no exercício das suas funções de polícia, cabe fiscalizar o cumprimento das disposições do Regulamento Geral sobre o Ruído, nos termos do disposto no art.º 33.º do Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 292/89, de 2 de Setembro.

22. Acresce que, como ficou exposto, a autoridade policial deve intervir, mesmo oficiosamente, para suspender (imediatamente) a realização dos espectáculos ou das actividades que produzam ruído a níveis ilícitos, ou que ocorram entre as 22,00 e as 8,00 horas, nos domingos, terças-feiras, quartas-feiras e quintas-feiras, ou entre as 24,00 e as 8,00 horas, às sextas-feiras, sábados e vésperas dos dias feriados.

23. Essa acção policial acontecerá, por maioria de razão e ainda nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 21.º, a pedido de qualquer interessado.

24. O Governo Civil do Distrito de Leiria informou este Órgão do Estado que – após consulta ao Comando da Secção da P.S.P.-Polícia de Segurança Pública de Caldas da Rainha – havia autorizado a abertura do estabelecimento reclamado até às 2,00 horas.

25. A informação prestada pela P.S.P. consiste, unicamente, em depoimentos de moradores do edifício onde se situa o ….. . Uma das moradoras do prédio – presumivelmente a mulher do reclamante – ter-se-á revelado incomodada pelo funcionamento do estabelecimento, referindo a existência de fumos e ruído dali proveniente; os restantes ocupantes afirmaram não se sentirem prejudicados.

26. O teor da informação da P.S.P. – embora não tenha determinado o indeferimento do pedido de prolongamento do horário de funcionamento até às 2,00 horas – continha elementos que, por si só, deveriam ter impedido o alargamento do período de abertura. Com efeito, não é relevante para a instrução do processo de alteração de horário a quantidade de moradores afectados nem o número de reclamações apuradas; o que importa é, tão somente, a existência de incomodidade proveniente da poluição sonora, emissão de fumos, produção de cheiros ou outra, que seja susceptível de afectar o direito a um ambiente são, genericamente considerado, ou os direitos ao descanso e ao sono dos habitantes de prédios vizinhos.

27. Terá sido essa mesma preocupação que levou o legislador a impor limites horários mais restritos à realização de espectáculos e actividades nas proximidades de edifícios de habitação, escolares, hospitalares ou similares e de estabelecimentos hoteleiros e meios complementares de alojamento.

28. No entanto, face ao disposto no Regulamento Geral sobre o Ruído, e designadamente aos limites horários previstos no n.º 1 do art.º 21.º, era irrelevante saber do entendimento dos moradores sobre o alargamento do período de funcionamento. Com efeito, mesmo a autorização de abertura até às 24,00 horas apenas significava que o …. poderia permanecer aberto até essa hora às sextas-feiras, aos sábados e nas vésperas dos dias feriados. De domingo a quinta-feira, o encerramento deveria ocorrer às 22,00 horas, não obstante a autorização genérica de abertura até mais tarde.

29. E, caso o estabelecimento permanecesse aberto depois daquelas horas, a autoridade policial deveria proceder, oficiosamente, à imediata suspensão da sua actividade. Não o fazendo “de per se”, fá-lo-ia a pedido de qualquer interessado.

30. No caso em apreço, é irrelevante que o Regulamento de Abertura e Encerramento dos Estabelecimentos Comerciais do Município de Caldas da Rainha permita o funcionamento até às 3,00 horas, uma vez que, no que concerne ao exercício de actividades ruidosas nas proximidades de edifícios de habitação, o Regulamento Geral sobre o Ruído constitui norma especial em relação ao diploma municipal.

Assim, a instalação de estabelecimentos comerciais nas condições previstas no n.º 1, do art.º 21.º, do Decreto-Lei n.º 251/87, na redacção do Decreto-Lei n.º 292/89 (perto de edifícios de habitação, escolares, habitacionais, hoteleiros e meios complementares de alojamento), deve conformar-se com o disposto no Regulamento Geral sobre o Ruído, antes de respeitar o Regulamento Municipal de Caldas da Rainha. E prevendo aquela norma especial horários mais restritos de funcionamento, devem estes ser obedecidos, sob pena de serem aplicadas as sanções previstas na lei.

31. O Governo Civil do Distrito de Leiria afirma, ainda, na resposta à solicitação do Provedor de Justiça de realização de uma medição acústica, que “(…) deixou de tomar a iniciativa de promover a realização de medições acústicas para apurar se” as “queixas têm, ou não, fundamento (…)”.

32. Esta posição desse Governo Civil poderá constituir, objectivamente, uma situação de deficiente colaboração para com o Provedor de Justiça, dever previsto no art.º 29.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça); aparte isto, e no que concerne aos cidadãos afectados por actividades ruidosas, tal comportamento integra uma situação de renúncia de competência.

33. Com efeito, ao exigir, nos termos do disposto no art.º 88.º do Código do Procedimento Administrativo, que os alegantes apresentem exame acústico comprovando a existência de violação ao Regulamento Geral sobre o Ruído, o Governo Civil do Distrito de Leiria não mais faz do que recusar o exercício da sua competência própria de fiscalização, nos termos dos art.ºs 33.º e 21.º, n.º 4, já mencionados.

34. Nos termos do disposto no art.º 29.º, do Código do Procedimento Administrativo, a competência é irrenunciável e inalienável, sendo nulo todo o acto que tenha por objecto a renúncia ao exercício da competência legalmente conferida.

35. Por outro lado, não se justifica a invocação do ónus da prova que o art.º 88.º impõe aos alegantes, uma vez que este apenas se aplica ao procedimento administrativo – como resulta da leitura dos art.ºs 74.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo – e não, como é o caso, ao exercício das funções de polícia que, nas áreas do distrito, são próprias dos governos civis.

36. Acresce que, como parece ser facilmente entendível, tal apresentação apenas seria exequível em casos de actividades ruidosas persistentes e – para que fosse possível a negociação, a marcação e a realização das medições acústicas – que durassem semanas ou meses.

II-Conclusões

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art.º 20.º, n.º1, alínea a), da Lei 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO:

1.º Que o Governador Civil do Distrito de Leiria determine a realização da medição acústica solicitada através do ofício n.º 17716, de 21/09/95, deste Órgão do Estado;

2.º Que o Governo Civil do Distrito de Leiria exerça as suas demais competências de fiscalização do cumprimento das disposições do Regulamento Geral sobre o Ruído e, designadamente, que determine a intervenção das autoridades policiais, nos termos do prescrito no n.º 3, do art.º 21.º, do Regulamento, para fazer cessar as actividades que violem o disposto nas alíneas a) e b) do art.º 20.º e n.º 1 do art.º 22.º, todos do Regulamento Geral sobre o Ruído.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel