Presidente da Câmara Municipal da Horta
Número:67/A/98
Processo: R-2923/96
Data :4.11.1998
Área : Açores

Assunto:URBANISMO E OBRAS – ALTERAÇÃO DE ALVARÁ DE LOTEAMENTO URBANO – EFEITOS PUTATIVOS – COMPONENTE AMBIENTAL – DIMINUIÇÃO DE VISIBILIDADE – RESSARCIMENTO – RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO.

Sequência: Não Acatada.

I-Introdução

1. Foi instruído neste Órgão do Estado (Extensão da Região Autónoma dos Açores) um processo aberto com reclamação relativa à alteração ao alvará n.º …, dessa Câmara Municipal, em virtude da qual se passou a permitir a construção em altura com dois pisos e meio quando, inicialmente não fora autorizada a construção superior a dois pisos.

2. A questão em apreço é, pois, a da alteração ao alvará de loteamento concedido em 04/12/87.

3. A reclamada alteração foi autorizada por deliberação proferida em 22/12/94 pela Câmara Municipal da Horta.

4. Por ofício deste Órgão do Estado, n.º … foi cumprido o dever de audição prévia da entidade visada, tendo sido perguntado à Câmara Municipal da Horta:
– em que consistiram as reclamadas alterações (designadamente quanto a número de pisos cuja construção é autorizada);
– qual o procedimento seguido no âmbito do processo de alterações.

5. Foi, ainda, solicitado o envio de cópia do alvará n.º …, bem como das alterações que eventualmente houvessem sido autorizadas.

6. A coberto do ofício n.º …, a Câmara Municipal da Horta prestou os seguintes esclarecimentos:
“a) O alvará de loteamento 5/87 foi alterado por deliberação da Câmara Municipal da Horta de 22 de Dezembro de 1994;
b) A alteração consistiu na mudança do n.º de pisos das habitações que passou a ser de dois e meio, incluíndo sótão ou cave;
c) A requerida alteração foi efectuada a requerimento do proprietário do lote n.º 6, tendo sido colhido o parecer da DIF da SRHOPTC, na ausência de PU aprovado”.

7. Foi, ainda, remetida cópia do alvará n.º …, bem como do parecer supra mencionado.

II-Exposição de Motivos

8. O alvará n.º …
autorizava a constituição de 19 lotes e prescrevia, em 04/12/97, que “o número de pisos será de 2 incluindo sótão ou cave”. Como foi já referido, o alvará foi alterado, em 22/12/94, por deliberação da Câmara Municipal da Horta, tendo passado a permitir dois pisos e meio, incluíndo sótão ou cave. Foi colhido o parecer da Delegação do Faial da Secretaria Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações (cf. ofício n.º…).

9. Não obstante as diversas alterações já introduzidas no regime jurídico do licenciamento municipal de operações de loteamento e de obras de urbanização – designadamente pelo Decreto-Lei n.º 302/94, de 19 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de Dezembro e pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto – à data em que ocorreram os factos ora em apreciação estava em vigor o regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Dezembro, alterado, por ratificação, pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto. Com efeito, a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, foi posterior à emissão do alvará: nos termos do disposto no n.º 1 do art. 73º entrou “(…) em vigor 120 dias após a sua publicação, com excepção do disposto no n.º 2 do artigo 9º, no n.º 3 do artigo 10º, no n.º 2 do artigo 20º, no n.º 4 do artigo 29º e no n.º 3 do artigo 33º”.

10. Acrescidamente, deve desde já ser deixado claro que o novo regime de qualificação da invalidade do acto em análise (que, em virtude das alterações introduzidas pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto, deixou de considerar nulos os actos de licenciamento de loteamentos não precedidos das consultas às entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações sejam legalmente exigíveis) apenas é aplicável às relações jurídicas constituídas após a sua entrada em vigor. Não se aplica, portanto, à presente situação.

11. Por outro lado, o regime de licenciamento das operações de loteamento era “(…) aplicável às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, sem prejuízo das adaptações decorrentes da estrutura orgânica própria da administração regional autónoma (…)” (cf. art. 73º, n.º 2).

12. O art. 72º previu um regime transitório para os procedimentos de alteração de alvarás emitidos ao abrigo das disposições revogadas pelo Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Dezembro: “as alterações aos alvarás emitidos ao abrigo da legislação agora revogada e dos Decretos-Leis n.ºs 46 673, de 29 de Novembro de 1965, e 289/73, de 6 de Julho, regem-se pelo disposto no presente diploma”.

13. Uma vez que a alteração reclamada ocorreu em 22/12/94, o regime jurídico aplicável é o constante no Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro.

14. Os alvarás – documentos que titulam o licenciamento da operação de loteamento ou das obras de urbanização (cf. art. 28º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, mais tarde rectificado pela Declaração n.º 23/92, publicada no D.R., 1ª Série-A, n.º 76, de 31/03/92) – são susceptíveis de alteração, por iniciativa da Administração ou dos particulares.
15. Importa, neste contexto, ter presente a disposição relativa à alteração dos alvarás:

artigo 36º
Alteração ao alvará

1- As especificações do alvará de loteamento podem ser alteradas a requerimento do interessado.
2- A alteração das especificações do alvará do loteamento obedece, com as necessárias adaptações, ao disposto no presente diploma para o licenciamento da operação de loteamento e das obras de urbanização, designadamente em matéria de pareceres, autorizações e aprovações exigidos por lei, dando origem à emissão de novo alvará.
3- As alterações às especificações previstas na alínea e) do n.º 1 do artigo 29º só podem ser licenciadas mediante autorização escrita de dois terços dos proprietários dos lotes abrangidos pelo alvará, dos edifícios neles construídos ou das suas fracções autónomas.
4- Exceptuam-se do disposto no n.º 2, as alterações às especificações previstas nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 29º, bem como as de pormenor, que são autorizadas por simples deliberação fundamentada da câmara municipal com dispensa de quaisquer outras formalidades.
5- Consideram-se alterações de pormenor apenas as que se traduzem na variação das áreas de implantação e de construção até 3% desde que não implique aumento do número de fogos e alteração dos parâmetros urbanísticos fixados nos planos municipais de ordenamento do território.

16. Por outro lado, dispõe assim a norma relativa às especificações que devem constar dos alvarás:

Artigo 29º
Especificações do Alvará

1- O alvará contém a especificação dos seguintes elementos, consoante forem aplicáveis:
a) Identificação do titular do alvará;
b) Identificação do prédio objecto da operação de loteamento ou das obras de urbanização;
c) Deliberações da câmara municipal relativas ao licenciamento da operação de loteamento e das obras de urbanização ou de sentença que a substitua;
d) Enquadramento em instrumentos de planeamento territorial;
e) Número de lotes e respectivas áreas, localização, finalidade, área de implantação, área de construção, número de pisos e número de fogos de cada um;
f) Cedências obrigatórias, sua finalidade e especificação das parcelas a integrar no domínio público da câmara municipal;
g) Prazo para a conclusão das obras de urbanização;
h) Montante da caução prestada e identificação do respectivo título.
2- O alvará deve conter, em anexo, as plantas confirmativas dos elementos referidos nas alíneas e) e f).
3- As condições estabelecidas no alvará vinculam a câmara municipal e o proprietário do prédio e ainda, desde que constantes do registo predial, os adquirentes dos lotes.
4- Os alvarás obedecem a um modelo tipo a aprovar por portaria do Ministro do Planeamento e da Administração do Território.

17. Como resulta da leitura das disposições transcritas, as alterações às especificações previstas na alínea e) do n.º 1 do artigo 29º – ou seja: relativas ao número de lotes e respectivas áreas, à localização, à finalidade, à área de implantação, à área de construção, ao número de pisos e ao número de fogos de cada um – só podiam ser licenciadas mediante autorização escrita de dois terços dos proprietários dos lotes abrangidos pelo alvará, dos edifícios neles construídos ou das suas fracções autónomas.

18. O procedimento assegurado pela Câmara Municipal da Horta para a alteração do alvará n.º 5/87 desrespeitou o disposto no art. 36º.

19. E não colhe sequer o argumento de estarmos perante meras alterações de pormenor: nesta situação, a autorização de alteração ocorreria “por simples deliberação fundamentada da câmara municipal, com dispensa de quaisquer outras formalidades” (vide art. 36º, n.º 4, in fine). Ao ter obtido o parecer da Secretaria Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações a Câmara Municipal da Horta afastou, desde logo, a aplicação deste procedimento simplificado. Acresce, ainda, que a deliberação camarária carece, em absoluto de fundamentação. Caso a edilidade pretendesse fazer uso deste processo simples impor-se-ia que o mencionasse expressamente na deliberação, que referisse as disposições legais aplicáveis e que justificasse o entendimento de que se estava perante alterações de pormenor.

20. Assim sendo, a Câmara Municipal da Horta apenas poderia ter licenciado as alterações ao alvará relativas ao número de pisos após ter sido obtida a autorização escrita de dois terços dos proprietários dos lotes, edifícios ou fracções autónomas.

21. Não o tendo feito, a deliberação camarária é ilegal, por violar o disposto no n.º 3 do art. 36º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro.

22. A alínea a) do n.º 1 do art. 56º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, qualificava como nulas as alterações aos alvarás “que não tenham sido precedidas de consulta das entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações sejam legalmente exigíveis (…)”. No caso que ora nos ocupa, a deliberação camarária que autorizou a alteração do alvará n.º … é nula.

23. Nos termos do disposto no art. 134º, do Código do Procedimento Administrativo, os actos nulos não produzem quaisquer feitos jurídicos, independentemente da declaração da nulidade. Este juízo é, não obstante, estritamente de direito uma vez que, não nos esqueçamos, foram já executadas – e terminadas – as obras realizadas ao abrigo do alvará alterado.

24. Acrescidamente, deve ter-se presente o direito ao ambiente e qualidade de vida, que vem inscrito no art. 66º da Constituição nos seguintes termos:

“Artigo 66.º
Ambiente e qualidade de vida

1- Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
2- Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.”

25. Note-se, por outro lado, que o art. 6º da Lei de Bases do Ambiente considera como componentes do ambiente o ar, a luz, a água, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna.

26. Não obstante a queixa que motivou a abertura de processo neste Órgão do Estado (Extensão da Região Autónoma dos Açores) não concretizar com rigor as consequências, em termos de diminuição do gozo dos componentes ambientais.da alteração do alvará n.º …, não pode deixar de ser atendida a reclamação de um proprietário de lote a quem as obras decorrentes da alteração concedida ao alvará n.º… causaram diminuição de visibilidade da sua habitação e o obrigaram a dispender determinada quantia (alegadamente 1.500.000$00) em execução de novos trabalhos de construção civil.

27. Importa trazer à colação, igualmente, o entendimento da generalidade da doutrina de considerar nulo por natureza, mesmo na falta de lei expressa, um acto administrativo que violasse o conteúdo essencial de um direito fundamental. A aplicação da referida tese ao caso em análise poderia levar a considerar nulo por natureza o acto administrativo de autorização de alteração de alvará se atingisse o núcleo essencial do direito ao ambiente (cf. art. 66º da Constituição da República Portuguesa) – ou seja, “aquele mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir” (Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, n.º 540, de 15/12/92).

28. Em face deste entendimento, merece ainda especial destaque a posição dos que consideram a luz como componente ambiental natural determinante. E pela relevância assumidade em matéria urbanística, devo lembrar a descrição de JOÃO PEREIRA REIS sobre a inovação que constituiu a introdução, na Lei de Bases do Ambiente, da luz como uma componente ambiental: “foi matéria que gerou acesa polémica na comissão parlamentar que redigiu o texto final da Lei de Bases. Acabou por fazer vencimento a tese defendida pelo deputado Ribeiro Telles que considerava necessário assegurar a todos os seres vivos (…) os níveis de luminosidade adequados, pelo que importava consagrar algumas normas visando a defesa do factor “luz”. (…) Digamos que a classificação da “luz” como um dos componentes do ambiente foi essencialmente um meio para atingir determinados fins. Pretendia-se consagrar na lei certas normas visando [também] o estabelecimento de regras quanto à construção de edifícios (…)” (in Lei de Bases do Ambiente Anotada e Comentada, Almedina, 1992, págs. 27 e 28).

29. Certamente que estas mesmas preocupações influenciaram decisivamente a redacção do art. 9º, da mesma Lei de Bases do Ambiente, nos termos da qual “todos têm direito a um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem-estar e conforto na habitação (…)” (n.º 1), e levaram a que fosse legalmente condicionado “o volume dos edifícios a construir que [prejudicassem] a qualidade de vida dos cidadãos” [n.º 4, alínea a)].

30. Pese embora não existirem elementos que permitam sustentar a nulidade por natureza do acto administrativo de autorização de alteração de alvará n.º …, por atingir o núcleo essencial do direito ao ambiente (designadamente por atentar contra os níveis de luminosidade convenientes), não deixa de ser especialmente relevante a constatação de que a alteração do número de pisos (superveniente e ilegalmente) permitida acarretou consequências negativas para, pelo menos, um dos proprietários dos lotes.

31. Tal verificação é tanto mais grave quanto a alteração desrespeitou uma disposição que visava defender os proprietários dos lotes de modificações com as quais não estivessem de acordo (no caso, a norma contida no art. 36º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro).

32. Pelo conjunto de factos que descrevi, não se me afigura aceitável que a invalidade reclamada fique sem sanção, que os particulares afectados fiquem sem protecção face à actuação ilegal nem, tão pouco, que os prejuízos causados fiquem sem ressarcimento.

33. Não obstante, uma vez que a alteração reclamada já produziu efeitos, é aconselhável a invocação do disposto no n.º 3 do art. 134º, do Código do Procedimento Administrativo, nos termos do qual é acolhida “a possibilidade de situações de facto decorrentes de actos nulos gerarem, ao longo de certo período de tempo, efeitos merecedores de protecção jurídica” (ANTÓNIO REBORDÃO MACHADO, in Código do Procedimento Administrativo, Almedina, 1992, pág. 213). Com efeito, uma vez que mediante a alteração do alvará n.º 5/87 foi já construído um edifício no lote n.º 6, afigurar-se-ia desproporcionado impor a reposição da situação anterior à prática do acto nulo.

34. Nada mais resta, creio, do que tentar reparar, por outra via, os prejuízos causados ao senhor …, proprietário de um lote e a quem as obras decorrentes da alteração concedida ao alvará n.º … causaram diminuição de visibilidade da sua habitação e o obrigaram a despender determinada quantia em execução de novos trabalhos de construção civil.

35. Até porque o ressarcimento dos danos causados aos cidadãos pela actuação das entidades públicas decorre do princípio da responsabilidade civil da Administração Pública por prejuízos decorrentes das acções e omissões praticadas pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes no exercício das suas funções (cf. art. 22º, da Constituição).

III-Conclusões

36. Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art. 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO
A. Que a Câmara Municipal da Horta indemnize o senhor … pelos prejuízos causados pela alteração autorizada ao alvará n.º …;
B. Que a Câmara Municipal da Horta apure a quantia indemnizatória tomando como referência as quantias despendidas em virtude da execução dos trabalhos de construção civil que o senhor … realizou para salvaguardar as componentes ambientais essenciais (v.g. visibilidade e luminosidade) afectadas pela alteração autorizada ao alvará n.º ….

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel