Presidente da Câmara Municipal de Setúbal

Rec. n.º 2/A/99
Proc.: R-1923/97
Data:1999-01-14
Área: A 2

Asunto: RESPONSABILIDADE CIVIL – AUTARQUIAS LOCAIS – MUNICÍPIO – MAU ESTADO DA VIA – DANO – INDEMNIZAÇÃO.

Sequência: Não acatada

I – Dos Factos

1. Apresentou o Senhor… neste órgão do Estado queixa contra a Câmara Municipal de Setúbal, em virtude de danos sofridos na sua viatura automóvel … matrícula … ocorrido no dia 29 de Janeiro de 1996 pelas 21H00 na Rua …, em Setúbal.

2. O reclamante alega que circulava com o seu veículo na citada via quando embateu com o “chassis” num buraco existente no pavimento, no seu sentido de marcha, mal coberto com “areia amarela”.

3. Do embate resultaram danos avaliados em Esc.: 183.890$00 (cento e oitenta e três mil oitocentos e noventa escudos).

4. Alega ainda o reclamante que o acidente supra descrito se deveu a culpa exclusiva da Câmara Municipal de Setúbal, por omissão do dever de reparação e de sinalização do referido “buraco”.

5. O reclamante formulou a sua pretensão de indemnização à autarquia, juntando elementos de prova documental e testemunhal, e solicitando uma peritagem, ao que o município respondeu:
a)”constatou-se não existir qualquer buraco no pavimento indicado como sendo o do local do acidente”;
b)”das diligências instrutórias levadas a efeito confirmou-se que a depressão referida na carta de V.Exa. sempre esteve tapada com toutvenant pelo que, estando tapada, não se poderá considerar existir qualquer buraco, e sendo assim, não haveria necessidade de colocar sinalização”;
c)”concluindo, entendemos que a depressão em causa, porque devidamente tapada, não foi a causa dos prejuízos alegados por V.Exa., e nessa medida, não existe responsabilidade civil extracontratual por parte da Autarquia”.

6. Inquirida a Câmara Municipal de Setúbal por esta Provedoria sobre a pretensão do reclamante, foi reiterada, no essencial, a argumentação referida no número anterior, afirmando-se ter inexistido qualquer audição das testemunhas ou peritagem de danos, sendo certo que esta última apenas é feita “quando da instrução do processo resulte a existência de responsabilidade civil”.

7. De acordo com os elementos que me foram transmitidos por V.Exa., o parecer jurídico denegador da pretensão do munícipe baseou-se nas seguintes informações do encarregado de serviços de Obras Municipais:
a)”tenho conhecimento que existia o referido buraco na Avenida …., e que na altura estava tapado com toutvenant (…), até que as condições climatéricas permitiram o tapamento com o betuminoso”;
b)”que nessa artéria o trânsito é contínuo, incluindo as carreiras urbanas, que ninguém se queixou que o buraco prejudicou grandemente qualquer veículo”;
c)”nestas situações os buracos são sinalizados mas acontece que, muitas vezes, por actos estranhos à CMS os sinais são retirados aparecendo destruídos nas artérias mais próximas”.

II – Do Direito

8. A responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais encontra-se regulada no art. 90.º do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março (LAL), normativo lacunar que deve ser necessariamente integrado pelas normas sobre responsabilidade civil constantes do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, e do Código Civil (CC), atento o carácter unitário do instituto da responsabilidade dos poderes públicos (art. 22.º da Constituição).

9. O acidente ocorreu num arruamento de Setúbal, sito em área integrada no domínio público municipal do município de Setúbal, ao qual compete deliberar sobre tudo o que interessa à segurança e comodidade do trânsito nas ruas e demais lugares públicos, promovendo todas as acções necessárias à administração corrente do património municipal e à sua conservação (art.ºs 2.º, n.º 1, e 51.º, n.º 4, al. d), da LAL, e art.ºs 1.º e 2.º da Lei n.º 2110, de 19 de Agosto de 1961).

10. Dos elementos trazidos ao meu conhecimento afirma-se a existência de um buraco na Rua …, artéria de bastante tráfego, nomeadamente de transportes públicos, que os serviços municipais, devido à impossibilidade climatérica de arranjo definitivo, tinham temporariamente coberto com uma areia denominada “toutvenant”.

11. Os locais das vias municipais que possam oferecer perigo para o trânsito, ou onde este deva ser feito com especial precaução, devem ser assinalados com placas com os sinais fixados na legislação em vigor (Ac. STA de 25/7/85, in AD, 289, p. 30), por forma a permitir aos utentes da via “tomar as precauções necessárias para evitar acidentes” (art.ºs 5.º e 6.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio – CE -, 2.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 190/94, de 18 de Julho, e 2.º do Decreto Regulamentar n.º 33/88, de 12 de Setembro).

12. Embora, como afirma o Director do Departamento de Obras da CMS, em tais situações os buracos sejam sinalizados (não obstante os sinais serem por vezes furtados), no caso concreto não se prova que no local existisse a sinalização legalmente exigida.

13. Sendo certo que o ilícito se pode traduzir numa abstenção ou omissão, quando exista a obrigação de praticar o acto (art. 486.º CC), existe facto ilícito (abstenção de agir) quando se infrinjam as normas legais e regulamentares e os princípios gerais aplicáveis e ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser observadas (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48051), devendo a culpa dos titulares dos órgãos e agentes ser apreciada em abstracto, considerada a diligência exigível a um funcionário típico (art. 487.º CC, por remissão do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 48051).

14. À Câmara Municipal de Setúbal incumbe, não só o dever de reparação e conservação das vias municipais, mas também “(…) o encargo ou dever especial de vigiar a eficiência das medidas preventivas dos acidentes no local, nomeadamente o dever de aí colocar obstáculos inamovíveis ou dificilmente manipuláveis e remíveis em ordem a garantir a segurança dos transeuntes e veículos” (Ac. STA de 19/11/91, AD, 364, p.485).

15. E, tendo a Câmara perfeito conhecimento e consciência do perigo que constituem buracos no pavimento, tinha o dever de colocar aqueles obstáculos, e ainda de os sinalizar, por forma bem visível, a uma distância que permitisse evitar qualquer acidente (art. 5.º do CE, e art. 2.º do Decreto Regulamentar n.º 33/88, de 12 de Setembro) – o que não provou ter feito.

16. Pelo exposto, encontra-se suficientemente comprovada a existência de um facto ilícito omissivo imputável à Câmara Municipal de Setúbal.

17. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que vem sendo pacificamente seguida, atenta a noção de ilicitude neste domínio (v. art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48051), a indefinição das fronteiras entre os conceitos de culpa e ilicitude leva “a que, provada a ilicitude, se deva ter como provada também a culpa, salvo se o lesante alegar e provar factos que a descaracterizam” (vd abundante jurisprudência citada no Ac. STA de 18/5/93, in AD, 390, p. 626).

Para afastar esta presunção, competiria à Câmara Municipal provar o cumprimento dos seus deveres legais de vigilância e segurança, nomeadamente colocando obstáculos ou utilizando a sinalização apta a evitar a ocorrência de acidentes no local (Ac. STA. de 19/11/91, AD 364, p. 485).

Verificando-se a omissão do cumprimento dos seus deveres, de que resultaram como consequência adequada os danos sofridos pelo reclamante, e não provando a Câmara factos reveladores da inexistência de culpa, “por provada deve ter-se a culpa da Câmara lesante” (Ac. STA de 18/5/93, cit., p. 634).

18. Verificando-se a omissão de deveres legais funcionais sem que a Câmara Municipal de Setúbal alegue e prove justificação, e considerando-se igualmente provada a sua culpa no facto de que terá resultado, como consequência adequada, o dano sofrido pelo reclamante, encontram-se preenchidos os requisitos da sua responsabilidade civil extracontratual.

III – Conclusões

Pelos fundamentos expostos, Senhor Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, RECOMENDO

a V.Exa, ao abrigo do disposto no art. 20.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que assuma a Câmara Municipal a responsabilidade pela verificação do acidente em causa, indemnizando o lesado dos prejuízos sofridos em consequência do mesmo.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL