Secretário de Estado da Administração Interna da Administração Interna

RECOMENDAÇÃO Nº 15/A/99
Proc.R-1358/98
Data:1999.02.19
Área:A1

Assunto:ESTRANGEIROS – AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA – MOTIVOS HUMANITÁRIOS – LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DO NÃO REENVIO.

Sequência:Recomendação substancialmente acatada (com diferente fundamentação)

A-Exposição de Motivos

§ 1 Dos Factos

1. Foi-me exposta a situação do cidadão paquistanês S. A., na sequência da decisão desfavorável do pedido de asilo pelo mesmo formulado, apreciado no âmbito do Processo de Asilo nº 75C/96 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

2. Mais se conheceu o teor do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Fevereiro de 1998 (Processo nº 41953, 1ª Secção-3ª Subsecção), que negou provimento ao recurso de impugnação do despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, datado de 4 de Fevereiro de 1997 (que consubstancia a citada decisão de recusa de asilo).

3. Os fundamentos dessa decisão são revelados nos seguintes termos:
“No uso da competência que me foi delegada pelo despacho nº 14/95, do Ministro da Administração Interna publicado no D.R. nº 291 – II Série de 95/12/19, com base no parecer do Senhor Comissário Nacional para os Refugiados e nos termos do art. 16º, nº 3 da Lei nº 70/93, de 29 de Setembro, não é concedido o direito de asilo ao cidadão S. A., de nacionalidade paquistanesa, por não haver prova nos autos que ele preencha os requisitos do art. 2º da mesma Lei.
Nos termos do art. 18º da mesma Lei, o cidadão pode permanecer no território nacional durante um período transitório, até 30 dias, para o efeito de procurar asilo noutro país, findo o qual fica sujeito à legislação geral sobre estrangeiros”.

4. Foi então requerida autorização de residência, ao abrigo do disposto no art. 64º, nº 1, do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, segundo o qual “em casos excepcionais de reconhecido interesse nacional verificados por despacho do Ministro da Administração Interna pode ser concedida ou renovada autorização de residência a estrangeiros com dispensa dos requisitos exigidos no presente diploma”.

5. A entrada em vigor do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, determinou a apreciação do pedido formulado de acordo com o disposto no art. 88º, do citado diploma legal. Assim, “em casos excepcionais de reconhecido interesse nacional ou por razões humanitárias, o Ministro da Administração Interna pode conceder a autorização de residência a cidadãos estrangeiros que não preencham os requisitos exigidos no presente diploma”.

6. Por ofício datado de 22 de Janeiro de 1999, foi informado o requerente que, tendo solicitado “Autorização de Residência ao abrigo do art. 88º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, após a análise do processo verificou-se não estar preenchido nenhum dos requisitos previstos no art. 88º, do referido diploma, ou seja, o reconhecido interesse nacional e/ou razões humanitárias.
(…) Os factos descritos demostram que se está perante interesses meramente individuais, não podendo beneficiar do regime excepcional previsto no art. 88º, do D.L. nº 244/98, de 8 de Agosto”.

7. Notificando-se, do mesmo passo, o interessado para, no prazo de dez dias, e por escrito, dizer o que se lhe oferecer, nos termos do direito de audiência prévia previsto e regulado no artigo 100º (e 101º), do Código do Procedimento Administrativo, direito esse que foi oportunamente exercido pelo Senhor S. A..

8. Aguarda-se a decisão final sobre o pedido de autorização de residência, a qual deverá ser tomada após ponderação das razões e argumentos aduzidos pelo interessado.

§ 2 Do Direito

9. Descrita sumariamente a situação que motivou o pedido de intervenção do Provedor de Justiça, cumpre apreciar o projecto de decisão de indeferimento do pedido de autorização de residência por motivos humanitários formulado pelo cidadão paquistanês S. A..

10. Os motivos que baseiam o projecto de decisão – os quais, recorde-se, apontam como factor determinante da não concessão da autorização excepcional de residência o facto de se considerar que os interesses aduzidos revestem natureza individual, sem mais – não se mostram conclusivos.

11. Com efeito, numa primeira análise, parece resultar que se procedeu, tão só, a uma contraposição entre o interesse nacional (constante da norma que habilita a autorização requerida) e os interesses individuais, que, alegadamente, baseiam a pretensão do requerente.

12. Mas o que sejam interesses individuais também fica por esclarecer. Dificilmente se imagina uma situação em que o requerente formula o pedido com vista a prosseguir tarefas do Estado, iluminadas pelo interesse nacional (interesse de toda a comunidade política que funda o Estado). O que pode suceder é que se reconheça que a permanência do indivíduo no território português vai também ao encontro do interesse nacional, o que deverá ser ponderado em concreto.

13. De todo o modo, não pode bastar-se a fundamentação do acto a emitir nas breves considerações levadas ao conhecimento do interessado, para que o mesmo se pronunciasse.

14. Isto, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a fundamentação aduzida é manifestamente insuficiente, não esclarecendo as razões de facto nem de direito que permitem a formulação de tal conclusão. Em segundo lugar, mostra-se postergada a aplicação da norma na parte em que, em sede de previsão, aduz motivos humanitários para a concessão da autorização requerida, quando, ao fim e ao resto, é disso que aqui se trata. Ainda aqui se mostra insuficiente a argumentação expendida no projecto de decisão. Veja-se porquê:

15. A mera referência a interesses individuais, sem sequer dar a conhecer os factos que permitem tal conclusão, não pode ter-se como fundamentação clara, adequada e suficiente, pois não permite conhecer as razões que, no caso concreto, determinam a denegação do pedido de permanência em território nacional (o qual consubstancia um pedido de protecção do Estado português).

16. Uma fundamentação constitucionalmente adequada (art. 268º, nº 4, CRP) sempre observará três princípios essenciais:”(a) princípio da suficiência, devendo a fundamentação estender-se a todos os elementos em relação aos quais a Administração dispõe de poder discricionário de escolher (e o exerce), de forma a poder reconstituir-se o íter lógico e jurídico do procedimento que terminou com a decisão final (“motivação ou fundamentação de todo suficiente”); (b) princípio da clareza, de modo que a fundamentação seja inteligível, sem ambiguidades nem obscuridades, tendo em conta a figura do destinatário normal ou razoável que, na situação concreta, tenha de compreender as razões decisivas e justificativas da decisão; (c) princípio da congruência, de tal modo que se verifique existir uma relação de adequação e consonância entre os pressupostos normativos do acto (de facto e de direito) e os motivos do mesmo, devendo, por isso, considerar-se como equivalente à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por contradição, não esclareçam concretamente a motivação do acto”.(1)

17. É doutrina assente que a obscuridade ou insuficiência dos fundamentos corresponde à falta de fundamentação, como aliás se conclui da leitura do art. 125º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro).

18. Assim, mostra-se desde logo postergada a função garantística indissociavelmente ligada ao dever de fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, assinalando-se que “em relação aos actos praticados no exercício de poderes discricionários a fundamentação é mesmo um requisito essencial, visto que sem ela ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar com êxito os seus vícios mais típicos. Nesse domínio, a fundamentação é mesmo um requisito essencial, visto que sem ela ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar com êxito os seus vícios mais típicos. Nesse domínio, a fundamentação é uma garantia do próprio direito ao recurso contencioso”.(2)

19. Além de que à fundamentação dos actos administrativos é ainda assinalada uma importante função objectiva , como regra essencial do dever de boa administração, ou “norma de acção administrativa (…) que visa assegurar uma correcta e ponderada realização dos interesses públicos (legalidade, imparcialidade, justiça, eficiência)”.(3)

20. Nem se diga que o dever de fundamentação cede por motivo de a concessão da autorização de residência nos termos do art. 88º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, se enquadrar no exercício de um poder discricionário. É que o exercício de um poder discricionário não isenta a Administração do dever de fundamentação dos seus actos; pelo contrário, antes o “exige especialmente”, nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE.(4)

21. Estas são as linhas gerais que disciplinam o dever de fundamentação dos actos administrativos que decidam desfavoravelmente pretensões. Considero, porém, que no presente caso, como em geral nas autorizações de residência que sejam pedidas por motivos humanitários, a fundamentação deve revelar clara, suficiente e adequadamente a ponderação de quais sejam as razões que possam impelir um estrangeiro perseguido por motivos religiosos a regressar ao seu território, ao invés do que sugere a Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa nº R (84)1.

22. É que deverá ter-se presente que a norma constante do art. 88º, do Decreto-Lei nº 244/98, procura acautelar a situação dos que, por razões humanitárias, não possam ou não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou residência.

23. O que, no presente caso, não pode deixar de ser ponderado, pois não será descabido atentar no facto de que ao Senhor S. A. foi recusado o estatuto legal de refugiado (com a denegação do pedido de asilo) por razões que se prenderam apenas com a prova dos factos inerentes à perseguição ou receio de perseguição pelas autoridades oficiais e pelos seus concidadãos.

24. Foram também as questões probatórias que mereceram revisão judicial, pois foi essa a base da argumentação que sustentou a decisão desfavorável impugnada. Por outras palavras, a concessão de asilo foi-lhe recusada por alegada falta de provas que abonassem o preenchimento dos requisitos legais.

25. Não sendo, neste domínio, rara a dificuldade de apresentação de provas que permitam, sem margem de dúvida, concluir pela justeza dos receios dos requerentes de asilo(5), certo é que a prova é requerida para afastar os pedidos manifestamente infundados, nomeadamente, quando se trata de distinguir entre o asilo (político) e a imigração (económica).

26. Mas tal não significa que um pedido de asilo mal sucedido (por insuficiência de provas, como no presente caso se decidiu, ou por não se configurar, como em outros casos, uma situação subsumível em todos os requisitos enunciados no art. 1º, da Convenção de Genebra de 1951(6) represente necessariamente uma tentativa encapotada de emigração (por motivos económicos) para o Estado cuja protecção foi requerida. É que também o princípio de não-reenvio (non-refoulement) consagrado no art. 33º, da citada Convenção, deve estar presente na ponderação da decisão a tomar.

27. É nesta linha que não se poderá ignorar a já citada Recomendação nº R(84)1, adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, em 25 de Janeiro de 1984, nos termos da qual se “recomenda aos governos dos Estados membros que assegurem, sem prejuízo das excepções previstas no art. 33º, parágrafo 2, da Convenção de Genebra, o princípio segundo o qual nenhuma pessoa deve ser sujeita a recusa de admissão na fronteira, a extradição, a expulsão ou a qualquer outra medida que tenha por efeito obrigá-la a regressar ou a permanecer num território onde ela crê com razão ser perseguida em função da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a um certo grupo social ou das suas convicções políticas, seja aplicado independentemente do facto de determinada pessoa ser ou não reconhecida como refugiada conforme a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 28 de Julho de 1951 e o Protocolo de 31 de Janeiro de 1967”.

28. A questão da protecção dos refugiados de facto ou por razões humanitárias, não obstante a tanto apontar a letra e o espírito da Lei(7) não transparece do projecto de decisão em análise.

29. Chegados a este ponto, e não havendo ainda sido proferida decisão final sobre o pedido formulado pelo Senhor S. A., motivado pelas razões pelo mesmo explicitadas e reafirmadas na exposição apresentada em sede de audiência prévia dos interessados, trata-se, sobretudo, de conhecer a ponderação dada aos factores de ordem humanitária que devem enquadrar a decisão de autorização de residência temporária, o que, pelo que fica exposto, não mereceu a atenção devida no projecto de decisão em análise.

30. Tanto mais que o requerente, reconhecido como crente da religião ahmadia do Islão, encontra-se, no seu país de nacionalidade, sujeito a pena de prisão pelo simples facto de afirmar junto de outros o seu credo religioso, ou de se referir ao mesmo credo como islâmico ou de se referir a si próprio como muçulmano.

31. Ao que acresce o estabelecimento da pena de morte para quem, por palavras ditas ou escritas, ou por qualquer outro meio, directa ou indirectamente, desrespeitar o sagrado nome do profeta Maomé (crime de blasfémia).

32. É que, de acordo com os relatórios da Amnistia Internacional, a detenção e prisão dos fiéis ahmadi, em obediência a normas de direito criminal, tem sido verificado reiteradamente, não se podendo reputar caídas em desuso.(8)

33. Sendo, pois, proibido o culto da religião em causa e vedado aos seus seguidores a afirmação dos princípios corânicos que os inspiram.

34. Sendo estes factos públicos, sem prejuízo de outros elementos que instruam o processo de concessão de autorização de residência, não posso deixar de insistir na necessidade de o projecto de decisão se lhes referir.

35. Em face do mesmo devo concluir que a apontada insuficiência da fundamentação parece revelar a falta de ponderação dos elementos contidos na previsão da norma que incluem, a par do interesse nacional, razões humanitárias em sede de autorização de permanência no território nacional daqueles que carecem da protecção do Estado português e tanto invocam, mesmo que ao poder de concessão da autorização de residência a título excepcional não corresponda formalmente o reconhecimento do estatuto de refugiado (de direito ou, sequer, de facto) ao beneficiário da autorização.

Senhor Secretário de Estado Adjunto da Administração Interna,
Excelência,

De acordo com o que ficou exposto, e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção de injustiças (art. 23º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), entendo fazer uso dos poderes que me são confiados pelo Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, no seu art. 20º, nº 1, alínea a), e, como tal, RECOMENDO :
A revisão do procedimento reclamado, por forma a que Vossa Excelência pondere de forma suficiente as razões de ordem humanitária

a) abstraindo do facto de ao requerente ter sido indeferido o pedido de concessão de asilo, pois de outro modo a autorização de residência por motivos humanitários seria entendida como um expediente redundante, se não mesmo superabundante, e
b) reflectindo na avaliação dos factos e do direito a consideração da Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa nº R (84)1.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
________________________________
(1) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 936.
(2) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 936.
(3) Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., loc. cit.
(4) Cfr. O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 1991, p. 136.
(5) A prova é, para HÉLÈNE LAMBERT, um dos elementos cruciais no procedimento de admissão dos pedidos de asilo (Cfr. SEEKING ASYLUM, Comparative Law and Practice in Selected European Countries, Dordrecht, 1995, p. 72 e ss.).
(6) Portugal aderiu aos dois instrumentos de Direito Internacional mais relevantes sobre o estatuto dos refugiados: a Convenção de Genebra de 28 de Julho de 1951 (aprovada para adesão pelo Decreto-Lei nº 43201, de 1 de Outubro de 1960) e o Protocolo Adicional de Nova Iorque de 31 de Janeiro de 1967 (aprovado para adesão sem reservas pelo Decreto-Lei nº 207/75, de 17 de Abril).
(7) Refiro-me quer ao disposto no art. 88º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto , quer à norma constante do art. 8º, da Lei nº 15/98, de 26 de Março, diploma que veio estabelecer o novo regime jurídico-legal em matéria de asilo e refugiados.
(8) Como, aliás, como foi reconhecido no parecer do Comissário Nacional para os Refugiados, de 3 de Outubro de 1995, proferido no âmbito do Processo 255-F/95-SEF, no qual se decidiu (favoravelmente) o pedido de asilo formulado por um outro cidadão paquistanês seguidor do mesmo culto religioso.