Ministro da Agricultura

Rec. nº 132/A/94
Proc: R-1446/93
Data: 1994-08-16
Área: A1

Assunto: CAÇA E PESCA – REGIME JURÍDICO DA CAÇA – LEI 30/86, DE 27.08 – GARANTIAS AOS PROPRIETÁRIOS DE TERRAS SUJEITAS A ZONAS DE CAÇA ESPECIAIS – PRAZO PARA AS CONCESSÕES DE ZONAS DE CAÇA ESPECIAIS

Sequência: Acatada

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

1. A Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, procedeu a uma profunda reestruturação do regime jurídico da caça, vindo a ser regulamentada pelo Decreto-lei nº 311/87, de 10 de Agosto, o qual veio a ser revogado pelo Decreto-lei 274-A/88, de 3 de Agosto, tendo sido este, por sua vez, revogado pelo Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro.

2. Nos termos do seu art. 19º, foram estabelecidos dois regimes para o exercício da actividade cinegética nos terrenos de caça – o geral e o especial – caracterizando-se o primeiro pela possibilidade de exercício da actividade venatória condicionada apenas ao disposto na lei geral e o segundo pela sujeição suplementar aos planos de ordenamento e de exploração próprios de cada uma das zonas a ele afectas.

3. O art. 19º fixa, no seu nº 6, quatro tipos de zonas de regime cinegético especial: as zonas de caça nacionais, as zonas de caça sociais, as zonas de caça associativas e as zonas de caça turísticas.

4. Qualquer dos tipos de zona de caça acima referidos pode ser constituído sobre terrenos do sector privado, preferencialmente, tratando-se de zonas de caça associativas ou turísticas (cfr. art. 24º, nº 2, 25º, nº 2, 26º, nº 2 e 27º, nº 2, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto).

5. A sujeição de um terreno do sector privado a regime cinegético especial requer o acordo prévio do proprietário, e, se os houver, dos titulares dos direitos reais menores que onerem aquele terreno e arrendatários. É esta a regra contida no art. 21º, nº 1, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto e desenvolvida no art. 70º, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro.

6. Há excepções, porém. A primeira consta do art. 24º, nº 3, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e do art. 70º, nº 4, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, os quais permitem a afectação administrativa de terrenos a zonas de caça nacionais desde que declarada a utilidade pública dos mesmos, ficando os seus titulares e gestores investidos no direito a uma retribuição com base no contributo que prestem para a criação, fomento e conservação das espécies cinegéticas (art. 21º, nº 2, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto).

7. A outra excepção encontra-se no art. 28º, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e no art. 82º, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, ao facultarem a agregação a zonas de caça do regime cinegético especial de terrenos que constituam enclaves em zonas de caça, desde que a superfície daqueles não exceda 10% da superfície resultante dessa agregação, sendo considerados enclaves as parcelas cujo perímetro esteja limitado em mais de três quartas partes por uma zona de caça do regime cinegético especial (art. 28º, nº 2, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e art. 82º, nº 2, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro).

8. Finalmente, pode ainda considerar-se excepção à regra da agregação negocial o caso em que a afectação é obtida nos termos do processo especial previsto nos artigos 71º e ss., do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro. Neste caso, o consentimento dos titulares e gestores dos terrenos em causa é ficcionado com base na falta de participação na assembleia referida no art. 72º e na falta de oposição administrativa à afectação (art. 76º, a contrario).

9. Podendo assentar o processo de afectação dos terrenos na notificação edital dos seus titulares e gestores, quer para a participação na assembleia (art. 72º, nº 2), quer para a dedução de oposição administrativa (art. 75º, nº 1), não é possível sustentar que desta forma se obtém o acordo prévio daqueles titulares e gestores, como prescreve o art. 21º, nº 1, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, cumprindo-se o princípio constitucional da participação dos administrados nas decisões que lhes digam respeito (art. 267º, nº 4, da CRP), a par da salvaguarda do direito dos interessados a serem notificados dos actos administrativos (art. 268º, nº 3, da CRP. Também aqui, ao ser valorado juridicamente como assentimento o silêncio dos titulares e gestores dos terrenos em causa, a agregação é administrativa, e não negocial.

10. Verifica-se, pois, existir um leque amplo de situações em que terrenos do sector privado podem ser afectos a zonas do regime cinegético especial sem o consentimento expresso dos seus titulares ou gestores.

11. A afectação dos terrenos de caça a zonas de regime cinegético especial conduz a uma maior adstrição dos direitos reais ou pessoais de gozo em causa, mercê da mais intensiva exploração dos recursos cinegéticos que os planos de ordenamento e exploração inevitavelmente traduzirão, relegando para segundo plano os benefícios decorrentes da redução do número de caçadores autorizados ao exercício da actividade venatória nestes terrenos.

12. Essa exploração mais intensiva dos recursos cinegéticos, que decorre, desde logo, da extensão do período venatório no regime cinegético especial (cfr. art. 30º, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro), pode conduzir a condicionamentos das faculdades de uso e fruição dos titulares de direitos reais ou pessoais de gozo sobre os terrenos em causa, como sejam a limitação do cultivo dos terrenos, da apascentação do gado ou da prática de desportos, para favorecer a exploração, a conservação ou o fomento dos recursos cinegéticos.

13. Indício seguro da especial oneração dos direitos dos proprietários, dos titulares de direitos reais menores e dos arrendatários dos terrenos de caça sujeitos ao regime cinegético especial reside na necessidade de declaração de utilidade pública e na previsão de justa indemnização nos casos de afectação administrativa de terrenos do sector privado a zonas de caça nacionais (cfr. art. 21º, nº 2, e 24º, nº 3, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e art. 70º, nº 4, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro).
Por seu turno, nos casos de agregação de enclaves apenas está prevista a atribuição de indemnização, mas de forma muito imperfeita e condenável (cfr. art. 28º, nº 3, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, e art. 82º, nº 3, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro). Já no caso da agregação com recurso ao processo especial previsto nos art. 71º e ss. do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, porque baseada numa ficção do consentimento dos titulares acima referidos, não está prevista qualquer indemnização.

14. O cerceamento dos direitos dos titulares dos terrenos de caça sujeitos ao regime cinegético especial ressaltará ainda de forma mais evidente se tivermos presente que o actual regime jurídico da caça não estabelece um limite máximo de duração das concessões de zonas de caça do regime cinegético especial, prevendo apenas um limite mínimo de seis anos, do qual exceptua as zonas de caça nacionais (art. 59º, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro).

15. Ora, se a referência à renovação da concessão, relativamente às zonas de caça associativas e turísticas (cfr., respectivamente, art. 26º, nº 3, e 27º, nº 4, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto) implica a necessidade de fixação de limites máximos de duração, o conteúdo desses limites não resulta especificado nem sequer indiciado. Relativamente às zonas de caça nacionais e sociais, não está previsto, nem implicitamente, qualquer limite máximo de duração das concessões. Resulta daqui a possibilidade de onerações perpétuas ou quase perpétuas sobre os terrenos, gravando os direitos dos proprietários ao longo das gerações.

16. Pode assim concluir-se que a afectação de terrenos particulares a zonas do regime cinegético especial, nos termos do art. 28º, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto e do art. 82º, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, os quais prevêm a agregação de enclaves, bem como a afectação ao abrigo dos arts. 71º e ss., do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, colocam os seus titulares e gestores numa situação particularmente injusta. Vêem os terrenos objecto do seu direito afectos a actividades que podem interferir de forma gravosa com o exercício daquele, sem que nisso tenham consentido e sem estarem presentes as razões de interesse público que fundamentam a afectação administrativa dos terrenos particulares a zonas de caça nacionais.

17. Esta situação resulta praticamente agravada nos casos em que as afectações são operadas segundo o procedimento especial dos arts. 71º e ss., do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, pois não está previsto o pagamento de qualquer indemnização, em colisão com o que se reconhece resultar da consagração do Estado de direito (art. 2º, da CRP). No tocante à afectação de enclaves, está prevista uma compensação a ser fixada pelo Instituto Florestal “com base nos valores médios praticados na zona” (art. 82º, nº 3, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro). Esta formulação dá azo a uma margem de livre apreciação que pode não se compaginar com o princípio geral da justa indemnização (v.g. nos casos em que inexista termo de comparação para a fixação do montante).

18. Acresce que, sendo característica comum a qualquer zona de regime cinegético especial a limitação no acesso ao exercício da caça (que vai da reserva do exercício da caça aos associados – nas zonas de caça associativas -, ao condicionamento aliado ao pagamento de taxas – nas zonas de caça nacionais e sociais -, ou ao pagamento do preço [em geral] – nas zonas de caça turísticas – cfr., respectivamente, art. 25º, nº 6, 24º, nº 5, 26º, nº 9 e 27º, nº 6 da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto e art. 65º, 63º, e 64º, do Decreto-lei nº 252/91, de 12 de Novembro) o proprietário, o detentor de direito real menor sobre a coisa e o arrendatário poderão ver-se impedidos de caçar no terreno objecto do seu direito real ou pessoal de gozo.

19. No nosso ordenamento jurídico, mercê da tradição romanística, o direito à caça não integra o conteúdo do direito de propriedade, pois exerce-se relativamente a coisas que não são fruto do objecto do direito de propriedade – o prédio. Com efeito, as espécies cinegéticas não integram a qualificação de “fruto” dada pelo art. 212º, nº 1, do Código Civil, constituindo antes verdadeiras “res nullius”, susceptíveis de ocupação nos termos do art. 5º, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto e do art. 7º do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro.

20. O fundamento do direito à caça deve ser procurado, ao invés, num princípio geral de liberdade (cfr. RENATO ALESSI in Enciclopedia del Diritto, Vol. V, 1959, p. 750), nos termos do qual é permitido aos cidadãos desenvolver toda e qualquer actividade a que se determinem desde que não vedada pelo ordenamento jurídico, não faltando mesmo quem, indo um pouco mais longe, caracterize o direito à caça como um direito de personalidade (cfr., apontando neste sentido, J. MANSO-PRETO in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. II, Coimbra, 1972, p. 18).

21. Todavia, a diferença de natureza existente entre o direito à caça e o direito de propriedade não implica que a actividade desenvolvida no âmbito de cada um deles não se repercuta no conteúdo do outro. Ao permitir-se o exercício da actividade venatória em todos os terrenos (art. 13º da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto), está a ser comprimido o direito de propriedade pelo direito de caça de terceiros, devido ao atravessamento e permanência nos terrenos de caça, por força da prática dos actos venatórios tendentes à captura da fauna cinegética; ao excepcionarem-se dessa regra os terrenos ocupados com culturas agrícolas ou florestais durante determinados períodos do seu ciclo vegetativo, quando seja necessário proteger aquelas culturas e as suas produções (art. 14º, nº 1, alínea b), da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto), está a restringir-se o direito à caça por força do direito de propriedade.

22. O que diferencia essa relação entre o direito de propriedade e o direito de caça em cada um dos regimes cinegéticos é que, enquanto no regime cinegético geral a oneração do direito de propriedade se deve a uma actividade susceptível de ser exercida por todos os caçadores licenciados – fundando-se essa oneração em interesses sociais ou comunitários -, já no regime cinegético especial, particularmente no caso das zonas de caça associativas, tal oneração aparece mais remotamente ligada a uma função social ou comunitária, uma vez que o exercício da actividade que consubstancia – a actividade cinegética – está reservada a terceiros, no interesse próprio destes, ficando em princípio extremamente condicionado (interdito, salvo autorização expressa no plano de ordenamento e exploração, no caso das zonas associativas), no caso das reservas o seu exercício aos proprietários, aos titulares de direitos reais menores e aos arrendatários dos terrenos de caça em causa.

23. Ora, não pode deixar de reputar-se injusta e desproporcionada esta situação. Seja qual for o regime cinegético a que estiverem sujeitos os prédios, os titulares de direitos reais ou pessoais de gozo que sobre eles incidam encontram a sua situação jurídica cerceada, ainda que de modo qualitativamente diverso (cfr. pontos 11 e 12).
Todavia, da compressão dos direitos dos titulares dos terrenos de caça sujeitos a regime cinegético especial não lhes advém qualquer benefício em termos de exercício da actividade venatória, contrariamente ao que sucede relativamente aos titulares dos terrenos de caça do regime cinegético geral, em que da oneração dos prédios decorre a permissão do exercício da actividade cinegética.

24. Parece, pois, no caso dos terrenos de caça sujeitos a regime cinegético especial, romper-se o equilíbrio (urdido ao longo dos séculos, mas definitivamente consagrado nas Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes de 1821 – cfr. J. MANSO-PRETO in Dicionário cit., pp. 17-18) entre o exercício do direito de caça e o carácter tendencialmente absoluto do direito de propriedade, encontrando-se agora os titulares de tais terrenos numa situação profundamente iníqua relativamente ao exercício da actividade cinegética.

CONCLUSÕES

De acordo com o exposto, e tendo em vista a atribuição de pugnar pela prevenção e reparação de injustiças (art. 23º, nº 1, da Constituição) entende o Provedor de Justiça, no uso dos poderes conferidos no art. 20º, nº 1, alíneas a) e b), do seu Estatuto, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDAR:

1º – A supressão do processo especial de afectação dos terrenos de caça previsto nos art. 71º e ss. do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro, por forma a garantir, em todo e qualquer caso o consentimento livre e esclarecido.

2º – A consagração por via legislativa (ao invés de simples instruções internas, como no caso do despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado da Agricultura, de 7 de Julho de 1994, remetido por telecópia à Provedoria de Justiça, em 8 de Agosto p.p.) de um procedimento de desafectação dos terrenos até agora incluídos em zonas de caça do regime cinegético especial através daquele processo e dos processos similares previstos no Decreto-lei nº 311/87, de 10 de Agosto (art. 63º, nºs 3 a 6), e no Decreto-lei nº 274-A/88, de 3 de Agosto (art. 65º, nºs 3, 4, 6 e 7), caso os respectivos proprietários, titulares de direitos reais menores ou arrendatários o requeiram.

3º – A modificação do regime jurídico da caça, no sentido de ser suprimida a possibilidade de afectar enclaves a zonas do regime cinegético especial sem o consentimento dos titulares e gestores desses terrenos.

4º – A declaração de nulidade dos actos de afectação viciados no seu procedimento por preterição de formalidades essenciais (art. 134º, nº 2, do Código Procedimento Administrativo), como sejam, a afixação dos editais a que se reportam os arts. 72º, nº 2 e 75º, nº 1, do Decreto-lei nº 251/92, de 12 de Novembro.

5º – A fixação legal de um limite máximo de duração das concessões de zonas de caça do regime cinegético especial.

6º – A alteração do regime jurídico da caça, com vista a permitir aos proprietários, aos titulares de direitos reais menores e aos arrendatários de terrenos de caça afectos ao regime cinegético especial que não tenham consentido expressamente nessa afectação, o exercício da actividade cinegética nesses terrenos, bem como a extensão dessa permissão aos que com aqueles titulares vivam em comunhão de habitação.

Permito-me, por fim, recordar a Vossa Excelência ser a presente Recomendação formulada nos termos do art. 20º, nº 1, alíneas a) e b), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, facto que faz determinar a observância do disposto no art. 38º, nºs 2 e 3, do mesmo diploma, sem prejuízo da informação a este órgão do Estado àcerca de todas as medidas eventualmente tomadas quanto aos fins ora visados.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel