RECOMENDAÇÃO N.º 4/A/ 2006
[Artº 20º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Secretária de Estado Adjunta e da Saúde
Processo: R-5223/01
Data: 29.05.2006


Assunto: Regime de acesso à profissão de técnico de farmácia


I
– Enunciado –


1. A queixa que deu origem à abertura do processo supra referenciado, apresentada em 24 de Outubro de 2001, versa sobre o regime jurídico de acesso à profissão de técnico de farmácia, instituído pelo Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto e sobre a sua repercussão na vigência do registo de prática que até então permitia aos ajudantes técnicos de farmácia o acesso à profissão.



2. De acordo com a posição assumida na queixa, a entrada em vigor daquele diploma implicou a revogação do regime do registo de prática, uma vez que ao instituir a profissão de técnico de farmácia estabeleceu como requisito de acesso a detenção de determinadas habilitações académicas distintas da experiência profissional.



3. Nestes termos, não poderia o INFARMED (1) continuar a aceitar a inscrição de novos ajudantes técnicos com base no registo de prática, como o vinha fazendo após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto.



4. Em 19 de Março de 2002 emitiu o então titular do cargo de Secretário de Estado da Saúde um Despacho que incumbia o INFARMED de alterar o procedimento que vinha seguindo, de forma a deixar de aceitar os registos de prática dos ajudantes de farmácia (cópia anexa – doc. nº 1).



5. Tal posição motivou o arquivamento do processo a que havia dado origem esta queixa em 22 de Março de 2002.



6. Sucede, porém, que em Julho de 2002 voltou a ser solicitada a intervenção do Provedor de Justiça neste assunto, uma vez que, à revelia do supra referido Despacho da Secretaria de Estado da Saúde, o INFARMED não só não havia adoptado as providências adequadas ao esclarecimento dos profissionais da actividade farmacêutica a respeito dos requisitos a cumprir pelos candidatos a técnicos de farmácia, como continuou a aceitar novas admissões de “praticantes de farmácia” ao abrigo do revogado registo de prática.



7. Confrontado com esse incumprimento, respondeu o INFARMED que o novo regime jurídico decorrente do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto não se aplicava às farmácias do sector privado, pelo que seria legítimo continuar a aceitar os registos de prática para efeitos de ingresso na profissão de ajudante de farmácia ao abrigo do Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968.



8. Seguiram-se então sucessivas diligências junto da Secretaria de Estado da Saúde, de cuja descrição me dispenso, uma vez que foram exaustivamente relatadas nos vários ofícios anteriores.



9. Sempre se dirá, porém, que, apesar de a Provedoria de Justiça ter reiteradamente advertido essa Secretaria de Estado para o facto de o INFARMED continuar a aceitar os registos de prática, não houve, até ao momento, qualquer tomada de posição conclusiva a este respeito.



10. Na verdade, depois de se ter abandonado a possibilidade de resolver o assunto pela via legislativa que havia sido equacionada pelo anterior Governo, informou agora V.ª Ex.ª que se prevê, no âmbito do Sistema Nacional de Certificação, a criação da figura profissional de “auxiliar de farmácia”, destinado a intervir fora do conteúdo funcional do farmacêutico e do técnico de farmácia.



11. Porém, como vêm afirmando os Reclamantes e a informação veiculada no site do INFARMED facilmente comprova, continua este Instituto a aceitar os registos de prática para o exercício da profissão de ajudante técnico de farmácia, apesar de ser depois negada aos candidatos a emissão da respectiva carteira profissional.



12. Na verdade, como resulta dos ofícios cujas cópias também se anexam, o IDICT (2) recusou a emissão da carteira profissional a candidatos que pretendiam aceder à profissão invocando o registo de prática obtido após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto, posição corroborada também pelo próprio Departamento de Modernização e Recursos da Saúde (doc. nºs 2 e 3, respectivamente).



II
– Apreciação –



13. O Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968 veio reger o exercício da profissão farmacêutica, estabelecendo no seu art.º 98.º que “o farmacêutico fica obrigado a registar a prática dos seus auxiliares quando estes o coadjuvarem na preparação e dispensa de medicamentos ao público, nos termos que forem definidos em portaria conjunta (…).”.


14. Tal registo de prática veio a ser regulamentado através da Portaria n.º 367/72, de 3 de Julho (posteriormente alterada por diversos diplomas), que instituiu a obrigatoriedade do registo de prática dos ajudantes de farmácia (art.º 1.º) e o envio aos Serviços de Saúde das cadernetas desse registo (art.º 9.º).


15. Entretanto, foi publicado em 11 de Agosto de 1999 o Decreto-Lei n.º 320/99, que define os princípios gerais em matéria de exercício das profissões de diagnóstico e terapêutica, procedendo à sua regulamentação.



16. Entre tais profissões está a de “técnico de farmácia” (art.º 2.º, n.º 1), estando expressamente abrangidos por este diploma “os profissionais que exerçam a sua actividade no território nacional, no sector público, privado e cooperativo” (art.º 2.º, n.º 2).



17. Para efeitos de acesso a essa profissão, assim como às demais abrangidas pelo mesmo diploma, estabeleceu-se a obrigatoriedade de detenção de um dos cursos previstos no art.º 4.º, de habilitação que confira equivalência a um desses cursos ou de reconhecimento legal de habilitações.



18. De acordo com o referido no art.º 6.º do mesmo diploma, o reconhecimento do título profissional é reservado a todos aqueles que possuam uma das habilitações constantes do art.º 4.º.



19. Sem prejuízo dessa reserva de título profissional, nos termos do n.º 3 do mesmo art.º 4.º foram igualmente reconhecidos os mesmos direitos aos profissionais que, à data da publicação do novo diploma, estivessem já integrados no regime jurídico de acesso à profissão de ajudante técnico de farmácia, estando também salvaguardados os direitos já adquiridos (art.º 8.º).



20. Ora, só faz sentido ressalvar direitos adquiridos ao abrigo do anterior regime se, naturalmente, se entender que o novo diploma o revogou, instituindo um regime com ele incompatível. 



21. A interpretação literal e teleológica dos referidos preceitos legais autoriza assim as seguintes conclusões:




a) Através deste diploma pretendeu o legislador uniformizar numa única profissão – a de técnico de farmácia – toda a área técnica das farmácias, integrando os até então designados “ajudantes de farmácia” já titulares de carteira profissional, assim como os ajudantes em exercício, ou em prática, em vias de a obter;



b) Para o ingresso na profissão passaram a ser exigíveis determinadas habilitações académicas, através de formação reconhecida por curso superior oficial;



c) Desde a data da entrada em vigor do diploma – 11 de Setembro de 1999 – deixou de ser aceitável o registo de prática;



d) Este diploma aplica-se às farmácias do sector privado ou às farmácias privadas (paralelamente às farmácias do sector público e cooperativo).



22. É certo que este diploma não contém qualquer norma que de forma expressa tivesse revogado os art.sº 97.º e 98.º do Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968, no que à aceitação do registo de prática diz respeito.



23. Contudo, ao passar a exigir que para o ingresso na profissão seria necessária uma formação reconhecida (curso ou equivalência legal), o anterior requisito para acesso a essa profissão – registo de prática – foi tacitamente revogado, por incompatibilidade com o novo regime.



24. Aliás, é esse o princípio que anima o regime da revogação tácita, previsto no art.º 7.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil, isto é, mesmo que o legislador nada diga, em caso de incompatibilidade entre regimes jurídicos, prevalece a lei posterior (3).



25. Por esse motivo a continuação da aceitação do registo de prática por parte do INFARMED contraria o sentido da legislação em vigor.



26. Informou V.ª Ex.ª que se encontra prevista a criação da figura do “auxiliar de farmácia” no âmbito do Sistema Nacional de Certificação.



27. Só que, como V.ª Ex.ª bem reconheceu, tal figura não se confunde, em termos funcionais, com a do técnico de farmácia, pelo que a sua criação não permitirá resolver a ilegalidade do procedimento seguido pelo INFARMED, que continua a aceitar a inscrição de registos de prática para o acesso a uma profissão que, em rigor, já não existe, pois os ajudantes de farmácia que obtiveram as respectivas carteiras profissionais até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto, foram integrados na profissão de técnico de farmácia ao abrigo do princípio dos direitos adquiridos assegurado pelos arts.º 4.º, n.º 3 e 6.º desse diploma e, a partir dessa data, deixaram de ser aceites os registos de prática.



28. Permita-me ainda V.ª Ex.ª que sublinhe o inequívoco interesse público de que se reveste o assunto, desde logo, porque o actual regime da venda de genéricos e de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias, instituído pelo Decreto-Lei n.º 134/2005, de 16 de Agosto, exige dos técnicos de farmácia uma competência que só a detenção das devidas habilitações poderá assegurar e cuja falta não poderá ser colmatada com o simples registo de prática.



29. Por outro lado, muitos candidatos à profissão, confiando que a aceitação pelo INFARMED do registo de prática lhes daria depois o direito de obter as respectivas carteiras profissionais, viram depois essas expectativas frustradas, conforme referido supra (ponto 12), por uma decisão de indeferimento do IDICT e/ou do Departamento de Modernização e Recursos da Saúde.



30. Assim, de acordo com as motivações acima expostas e nos termos do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n.º 9/91, de 9 de Abril), recomendo 







A) A adopção das medidas necessárias junto do INFARMED e das demais entidades tuteladas pela Secretaria de Estado da Saúde com competências no âmbito do licenciamento dos profissionais de farmácia, para que, de forma definitiva, deixe de ser aceite o registo de prática, isto é, para que não sejam admitidos mais “ajudantes de farmácia” ao abrigo do revogado registo de prática;


B) A divulgação desse entendimento junto dos representantes do sector farmacêutico, esclarecendo que o ingresso na profissão de técnico de farmácia está dependente de qualificação e de habilitações profissionais de nível superior;


C) Na hipótese de se entenderem como insuficientes as medidas de carácter administrativo ora sugeridas para assegurar o respeito pelo novo regime jurídico de acesso a essa profissão, então que se proceda à alteração legislativa que se repute necessária à consagração expressa da eficácia revogatória do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto, em relação ao registo de prática previsto no Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968.




Nos termos do disposto no art.º 38.º, n.º 2 do Estatuto do Provedor de Justiça aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, deverá V.ª Ex.ª comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.


 





Notas de rodapé:


(1) Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento.
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(2) Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho.
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(3) Neste sentido, cfr. Oliveira Ascensão in “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 1993, págs. 286 e ss..
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